02 out, 2024 - 08:30
O Rumor, o Rosto e o Abraço
O que espero da Igreja Sinodal
1. Escutar o rumor da Vida
A cultura de hoje tem virtualidades para a escuta de Deus mais do que teve a do passado. Basta ouvir esse leve rumor com muita atenção. Maria de Nazaré é a figura da Igreja a quem pode ser dada a graça de ouvir a saudação angélica, de responder, no meio da noite, e viver da Incarnação do Verbo. Esta atitude está bem presente na literatura, no pensamento, no anseio de tantos pobres trabalhadores, de migrantes, de gente anónima à procura de Deus. A Igreja é instituída para dar a viver este mistério de escuta. Não olha para si mesma como Narciso, mas contritamente como Maria Madalena. Vive-se como ostensório do mistério não como representação de uma ideia, preservação de um estatuto, como trincheira de resistência a fantasmas. Por isso, tem de pensar como comunidade espiritual, policêntrica e plural, para lá da sua centralização no Vaticano que tudo controla, tudo decide, com uma soberania indiscutida.
2. O desenho inacabado de um Rosto
Velar o rosto do Ressuscitado é a tarefa da comunidade cristã. Toda a realidade se origina continuamente da Páscoa do Senhor que é dado à Igreja celebrar cada domingo na Eucaristia. Uma Igreja sinodal será porta aberta, fundada por uma presença, vivendo do crescimento até à estatura de Cristo. A partir desta centralidade ter-se-ão de compreender todos os outros elementos: os ministérios e serviços, a credibilidade da sua palavra, a utilidade do sinal levantado diante de todos os povos e culturas. A estruturação das comunidades não será já centrada no clero tradicional, mas em servidores e servidoras cujo figura será delineada a partir do carisma e do poder de agir compartilhado. Uma comunidade de reconciliação e terapia que afirma a vida de todos os viventes, para lá da culpa e do crime, e que enfrenta o mal, confiada no silêncio, na palavra e na força sofrida do seu divino fundador.
3. Um abraço sempre ampliado
A caridade é a vivência originária que faz a Igreja. A caridade funda o amor conjugal, o serviço à vida, dilata a amizade e a fraternidade, rompe as fronteiras injustas para que a filiação divina vá dando a si mesmo todos os seres humanos. Ela reúne os pobres da terra, confunde a razão perversa dos poderosos e dos beligerantes, cauteriza os que abusam do seu estatuto de poder, quer dentro quer fora das suas fronteiras. Nos tempos que correm, a Igreja sinodal é a tenda de campanha que dá hospitalidade aos caídos, confirma os que servem a vida no meio de sombras e equívocos. A caridade é o princípio da lucidez para discernir os caminhos da vida na era da tecnologia e a inteligência artificial, da crise da democracia e da universidade, do futuro do trabalho humano e da justiça.
Que o Espírito Santo ilumine a reunião de Roma deste mês de Outubro, de cuja eficácia está ansiosa a Igreja e a humanidade de hoje.
Jorge Cunha, pároco e professor de teologia