Abusos sexuais traíram “de forma atroz a confiança” na Igreja Católica francesa

Véronique Margron, que preside à Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, conta à Renascença como o processo de investigação fez mudar a “cultura do silêncio” que imperava, criando condições para as vítimas denunciarem o que calaram durante anos.

07 fev, 2023 - 18:28 • Stefanie Palma



Entrevista de Véronique Margron, presidente da Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, à jornalista Stefanie Palma
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Se os abusos sexuais são "terríveis em todo o lado", ainda são piores na Igreja, que deveria ser "o lugar da confiança". É a opinião da teóloga Véronique Margron, que se tornou, nos últimos anos, uma das principais figuras da luta contra os abusos sexuais na Igreja em França.

A Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja em França estima que pelo menos 216 mil menores terão sido abusados no país por padres e outros membros da Igreja católica, entre 1950 e 2020. A projeção da Comissão Independente que estudou o fenómeno poderá mesmo ultrapassar as 330 mil vítimas, se forem tidos em conta os abusos perpetrados por leigos, como é o caso de catequistas. Os números podem também estar subestimados, visto que muitas vítimas já terão morrido sem terem quebrado o silêncio.

Margron preside à Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, que representa vários institutos e congregações católicas. Ouviu centenas de vítimas e viu como a problemática dos abusos traiu "de forma atroz" a confiança dos franceses na Igreja.

Em entrevista à Renascença, conta como o processo de investigação fez mudar a “cultura do silêncio” que imperava, criando condições para as vítimas denunciarem o que calaram durante anos.


Segundo a Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja em França (CIASE) projeta-se que tenham sido abusadas, pelo menos, 216 mil vítimas no seio da Igreja Católica, entre os anos 1950 e 2020.

Segundo a estimativa, os números podem mesmo superar as 330 mil vítimas, se tivermos em conta os membros leigos que trabalhavam em instituições católicas e que também cometeram abusos. No geral, quanto tempo é que as vítimas sofreram em silêncio sem nada denunciarem?

É difícil dizer porque, até essa altura, quase ninguém acreditava nas vítimas. A investigação da CIASE remonta aos anos 1950, e o que nos apercebemos é que houve vítimas que tentaram denunciar nessa altura, mas ninguém acreditou nelas.

Há também o fenómeno traumático que faz com que as vítimas falem cinco, 10, 20 ou 30 anos mais tarde, por exemplo, quando os pais morrem e já não têm medo de os magoar. Este sentimento juntou-se ao fenómeno da Omertá (silêncio) na Igreja. De toda a maneira, a sua palavra não era ouvida.

A cultura do silêncio perdurou durante vários anos. Do seu ponto de vista, o que é que levou as vítimas a falar?

Do meu ponto de vista, as vítimas falaram por duas razões. Em primeiro lugar, devido a um fenómeno social: a França e, talvez, Portugal, foram marcados pelo movimento “Me Too” (que começou em 2017 nas redes sociais, contra agressões sexuais); as vítimas começaram a falar dos abusos, quer no trabalho, no seio da família ou até mesmo nas instituições. Isso ajudou.

"França e Portugal foram marcados pelo movimento “Me Too”. As vítimas começaram a falar dos abusos, quer no trabalho, no seio da família ou até mesmo nas instituições. Isso ajudou."

Depois, houve também um grande escândalo em França, na cidade de Lyon. Um padre, Bernard Preynat, antigo capelão dos escuteiros, fez muitas, muitas vítimas, que tiveram depois a sorte e a coragem de se reunir por vontade própria. Trata-se do primeiro coletivo de vítimas que teve uma voz mediática, o que ajudou muitas outras pessoas que passaram pela mesma situação a começar a falar.

Na sua opinião, porque é que as vítimas sofreram tanto tempo sem falar sobre o assunto?

É um fenómeno complexo. Há, desde logo, a vergonha. No fundo, na violência sexual, é a vítima que tem vergonha e não o agressor. Tragicamente, existe este sentimento de vergonha.

Depois, pensam que não vão acreditar nelas. Um inquérito do Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica, no âmbito do relatório CIASE, mostra que uma em duas vítimas tentou denunciar, por vezes logo após os crimes terem sido cometidos, mas ninguém acreditou nelas. Portanto, quando as vítimas dizem algo tão íntimo e, também terrível, e não acreditam nelas, acabam por calar-se durante décadas.

Existe ainda o fenómeno, agora bastante conhecido, da memória dissociativa. O que as vítimas sofreram é de tal forma traumático que a única forma de prosseguirem com as suas vidas é enterrar o assunto.

"O que as vítimas sofreram é de tal forma traumático que a única forma de prosseguirem com as suas vidas é enterrar o assunto."

O escritor jesuíta, e grande intelectual, Patrick Goujon conta no livro “Prière de ne pas abuser” (“Por favor, não abusar”) que se lembra de ter sido abusado por um padre 45 anos antes, quando tinha quatro anos. A sua memória foi completamente apagada ou, pelo menos, a sua primeira memória [de infância] apagou totalmente estes episódios.

E o que é que pode ser feito para ajudar as vítimas a falar?

Acima de tudo, ouvi-las, acreditar nelas e estarmos atentos aos pequenos sinais. Isto é estar atento quando as pessoas não estão bem, um pouco como se faz noutras situações, como nos casos das crianças que são vítimas de incesto.

Quanto mais se tenta estar atento, mais se ajuda as vítimas a falar. É importante formar as pessoas na igreja, dizer-lhes que esses gestos errados de um padre, não são simplesmente ‘gestos inapropriados’, são abusos.

É todo um conjunto de coisas: a formação, a informação, o consciencializar de que o padre não é uma personagem sagrada, e que se ele faz algo de escandaloso, deve ser submetido à lei, como qualquer outra pessoa.


Existe algum relato de um caso concreto de alguém que tenha sofrido abusos que a tenha impressionado particularmente? Será que pode dar-nos um exemplo?

É difícil, porque todos me impressionaram. Ouvi o testemunho de centenas de vítimas. Posso contar-vos o exemplo de uma pessoa que foi abusada quando era muito pequena. Devia ter quatro/cinco anos e tornou-se o objeto sexual de um padre. Tudo isso, após um acordo, mais do que tácito, com o seu pai. A sua mãe não sabia.

O pai, ele próprio, foi incestuoso com todos os seus filhos e, de alguma forma, deu este filho a este padre como sacrifício. Este senhor - atualmente ainda não tem 30 anos -, não sei se algum dia irá conseguir recompor a sua vida depois disto.

Isto mostra o carácter sistémico, de que a CIASE fala. É impossível que tudo isto tenha acontecido sem que ninguém tenha visto. Toda a gente se manteve em silêncio (a tal Omertá), porque este homem era conhecido e célebre [no mundo eclesiástico].

Mas porque é que acha que as pessoas não disseram nada?

Porque é necessário que exista coragem para denunciar, para falar, e penso que este homem, como tantos outros, jogava com o facto de ter uma ligação com o sagrado. O facto de não podermos ‘tocar’ nessas personalidades, como acontece no mundo político, mas aqui é ainda pior porque fazem-no com o pretexto de serem uma espécie de autoridade de Deus, o que é aterrorizador.

Estou a pensar numa pessoa que recebi ontem... Um jovem que foi vítima de um padre, em idade adulta. Foi violado e estava dominado por um sentimento de incapacidade terrível de dizer o que se estava a passar. Todos, à sua volta, diziam o quão ‘sortudo’ ele era por ser amado por este homem, de ser, de certo modo, o preferido. É isso que é devastador, por dentro, e que provoca essa vergonha. Surge o sentimento de culpa por não terem tentado escapar, por não terem dado uma bofetada ou lutado para fugir. Um sentimento que existe também entre quem foi abusado durante a infância. Mas era impossível, porque ora estavam aterrorizados ou impotentes. Nos dois casos, nada podiam fazer.

"Há várias centenas de histórias do género. São todas abomináveis e muitas tiveram enormes consequências traumáticas na vida das pessoas."

Há várias centenas de histórias do género. São todas abomináveis e muitas tiveram enormes consequências traumáticas na vida das pessoas. Mesmo atualmente. Eu vejo, e a Comissão Independente também o vê. Pessoas com mais de 80 anos, que nos contam aquilo que sofreram. Ficamos com a impressão de que, quando nos contam, estão a reviver aqueles episódios. É como se tudo tivesse acontecido ontem.


Durante a assembleia plenária dos bispos de França, Veronique Margron, da Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, e o bispo Eric de Moulins-Beaufort fazem um gesto penitencial com as cinco vítimas de abuso sexual presentes em Lourdes. Foto: Lilian Cazabet / Hans Lucas via Reuters
Durante a assembleia plenária dos bispos de França, Veronique Margron, da Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, e o bispo Eric de Moulins-Beaufort fazem um gesto penitencial com as cinco vítimas de abuso sexual presentes em Lourdes. Foto: Lilian Cazabet / Hans Lucas via Reuters

Quão importante é para a sociedade que as vítimas denunciem publicamente os abusos? Em Portugal, o contexto é diferente. As vítimas não assumiram publicamente os abusos e não existem associações que as representem...

Creio que é muito importante, porque os abusadores colocam as vítimas numa situação como se fossem um objeto. São um objeto nas mãos dos agressores. As pessoas passam a não ter qualquer autonomia. É como se as vítimas voltassem a ter legitimidade para falar, é dizer: “eu estou de pé, apesar do que me fizeram. E vou falar, vou contar tudo”.

Penso que são muito importantes os testemunhos, mesmo os anónimos, desde que as vítimas sejam apoiadas.

Muitas vezes, as vítimas afirmam que, de alguma forma, independentemente do mal que o seu agressor lhes tenha feito, elas não o conseguiriam matar, porque hoje elas estão a falar. Penso que isso é tornar-se novamente ator da sua própria liberdade, o facto de falar.

O que é que pode explicar os abusos no seio da igreja?

O relatório da CIASE diz várias coisas. Fizeram-se vários estudos sobre o assunto, não há apenas uma única explicação, há várias.

Os abusos têm origem num agressor e, infelizmente, há agressores potenciais por toda a sociedade. Na Igreja, no entanto, o que amplia e agrava o fenómeno é o segredo, o facto de ser um mundo muito próprio, onde todos se protegem. Creio que é o falhanço da responsabilidade das hierarquias, seja dos bispos ou superiores religiosos, que deviam ter assumido as suas responsabilidades e não o fizeram. Às vezes, tornaram-se mesmo cúmplices. Pelo menos passivos, visto que tinham conhecimento das situações e faziam de conta de que não sabiam de nada. Pior foi quando substituíram estes homens [abusadores] e os enviaram para outros locais [paróquias], onde estes recomeçaram os abusos. Isto influenciou bastante.

Outra coisa foi que a palavra das crianças não era tida em conta. Na Igreja, há este paradoxo do lugar reservado aos pecadores. E todos estes crimes foram qualificados como pecados, protegendo o pecador e não a vítima.

A atenção estava centrada em como este homem se iria redimir, exercer a misericórdia, com um esquecimento total da gravidade dos factos e das consequências sobre as vítimas.

"Na Igreja, há este paradoxo do lugar reservado aos pecadores. E todos estes crimes foram qualificados como pecados, protegendo o pecador e não a vítima."

Uma última causa é o caráter sagrado, partindo do pressuposto de que o padre não é alguém como as outras pessoas, que é alguém que fala em nome de Deus, colocando-o numa posição poderosa particular.

Considera que os abusos no seio da Igreja Católica são mais graves do que noutros setores da sociedade?

Os abusos são terríveis em todo o lado. São uma tragédia de saúde pública as agressões sexuais, seja contra menores, adultos em vulnerabilidade ou contra mulheres... Mas, quando falamos da Igreja, é particularmente grave, porque a Igreja é o lugar da confiança. Não é como o supermercado... No supermercado, se comprarmos um quilo de beterrabas, e não forem boas, pedimos o reembolso e vamos a outro local. A Igreja não vende nada. Tudo repousa na confiança. E tudo isto traiu, de forma atroz, a confiança. Isso é particularmente grave.

O que é também grave é a manipulação da palavra de Deus. Quando se é crente, a palavra de Deus toca no mais íntimo de nós mesmos. Quando os agressores dizem “mas eu sei o que é bom para ti da parte de Deus... Eu sei o que Deus quer para ti”.

Várias vítimas, crianças e religiosos abusados, contam as consequências terríveis que isso teve sobre a sua fé.

O responsável pela Comissão Independente , Jean-Marc Sauvé acusou a igreja de mostrar uma cruel indiferença para com as vítimas, principalmente até ao início dos anos 2000. Partilha da mesma opinião?

Partilho da mesma opinião, do ponto de vista histórico, mas atualmente penso que já não é assim.

Historicamente ele tem razão, visto que temos muitos, muitos exemplos, em que as vítimas foram ao encontro de um superior, um bispo, e foram ignoradas, ou acusaram-nas de ser mentirosas, ou disseram aos seus pais que não podiam criar um escândalo na Igreja. Como se o escândalo fosse o de denunciar o crime e não o de o cometer! Então, para mim, ele tem historicamente razão, mas depois do relatório, não sei se esta atitude mudou, mas pelo menos está a mudar.


"Creio que é importante que os abusos sejam denunciados publicamente sempre que possível"

Um ano e três meses após a publicação do relatório, que ações concretas levou a cabo a Conferência dos religiosos de França (CORREF) e também a Igreja?

Muitas, felizmente. Criámos Comissões Independentes de Reconhecimento e de Reparação, uma na CORREF (Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses), e outra na CEF (Conferência Episcopal de França), para que estas comissões recebam as vítimas e efetuem todo um processo de justiça restaurativa, reconhecendo os crimes de que foram vítimas, os amplos traumatismos que se seguiram e procurando reparar algo irreparável. E, inclusivé, financeiramente.

Isto é uma consequência direta do relatório Sauvé (como também é conhecido o relatório CIASE), da comissão de trabalho, que recebeu centenas de vítimas, embora não tantas como as que são estimadas pelo relatório...

É difícil dizer como poderemos fazer, mas, em todo o caso, não se parou de receber vítimas e de fazer o longo trabalho de reconhecimento e restauração. Constituímos, ainda, grupos de trabalho, a partir das recomendações do relatório da CIASE, sobre temas como a formação, a governação, o acompanhamento dos autores de violências sexuais, etc. Esses grupos de trabalho vão apresentar as suas conclusões em abril.

Ainda existem, atualmente, vítimas que denunciam estes abusos?

Sim, claro, muitas. Enfim, não suficientemente, mas sim, todos os dias.

O que é que se pode fazer para evitar que situações deste género se reproduzam no futuro?

Uma boa notícia no meio de toda esta escuridão é que, como o crime é sistémico, a resposta é sistémica. Então, de cada vez que conhecemos um caso, participamo-lo.

É necessária formação, para a Igreja ser menos fechada em si mesma, para se saber quais as medidas a tomar quando há um delito ou um crime que pode ter sido cometido por um religioso ou um padre. De cada vez que intervimos a esse nível, participamos na resposta.

A resposta é complexa, mas está ao nosso alcance. E depois continuar a repor a verdade e a refletir sobre as causas da violência sexual na Igreja.

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