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Solidariedade. Bispo de Coimbra diz que "vai ser necessário levantar a voz" junto do Estado

21 dez, 2022 - 06:40 • Henrique Cunha

D. Virgílio Antunes considera que as instiuições sociais devem fazer-se ouvir de forma clara e com objetividade" de modo a que "se encontrem os caminhos" para o "bem dos mais pobres". Em entrevista à Renascença, o também vice-presidente da CEP diz temer que continuem a "viver pobres" muitas pessoas que trabalham "muito e bem".

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O bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, diz que vai ser necessário que as instituições sociais "façam ouvir de forma clara e com objetividade" a sua voz para que "se encontrem os caminhos" para o "bem dos mais pobres".

Numa entrevista de Natal da Renascença, o bispo de Coimbra e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) afirma que estes alertas “não são reivindicações” das instituições de solidariedade e visam essencialmente defender “quem mais necessita”.

O prelado diz que sem uma mudança estrutural "muitos sectores da sociedade podem continuar a trabalhar muito e bem" e continuar a "viver pobres".

D. Virgílio Antunes encara a lei de despenalização da eutanásia como “uma página muito dura e muito triste da realidade que estamos a viver".

"É uma mudança civilizacional no pior sentido; uma derrota para a comunidade humana”, reforça, considerando que "não causaria surpresa" se o Presidente da República voltasse a enviar o diploma para o Tribunal Constitucional.

Noutro plano, o vice-presidente da CEP sublinha que a apresentação do relatório da comissão independente para o estudo dos abusos de menores e vulneráveis, previsto para fevereiro, "é um momento importante da vida da comunidade e da Igreja em Portugal". D. Virgílio Antunes alude a "uma parte muito nebulosa e dura" da Igreja que todos querem “corrigir e com a qual ninguém quer pactuar”.

O bispo de Coimbra acredita que a presença do Papa em Portugal por ocasião da Jornada Mundial da Juventude pode ajudar "a dar passos significativos para ultrapassar estes problemas graves que se têm vivido na Igreja em Portugal e no mundo".

Em relação à Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023), D. Virgílio Antunes diz detetar uma "onda em crescendo" de mobilização da juventude e fala mesmo de um "pequeno milagre" face a alguma apatia que se "vinha a sentir nas comunidades cristãs", em relação aos jovens.


D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, é o convidado da Renascença nesta entrevista de Natal. Senhor bispo, muito obrigado por nos receber aqui...

Obrigado, também eu.

Começo por lhe pedir as ideias principais da sua mensagem para este Natal...

A minha mensagem para este Natal foca-se, em primeiro lugar, na realidade que estamos a viver, dizendo que é o Natal com expressões mais contidas do ponto de vista exterior. Até porque há problemas no que diz respeito ao abastecimento e à questão da eletricidade, e é preciso poupar. E porque o mundo, concretamente Coimbra, o nosso país e a Europa não estão em tempos de euforia tão grande, como porventura noutras épocas. E, dando à palavra euforia um sentido positivo, própria da alegria deste tempo, é uma alegria, com certeza existente, mas mais contida, sobretudo nas suas manifestações exteriores.

Depois, faço um apelo a entrarmos na profundidade daquilo que é o anúncio do Natal de Jesus Cristo. Cristo nasceu para nós. O Menino que nos foi dado é sempre o grito que ecoa na época de Natal aos nossos ouvidos de crentes, mas que tem repercussão na sociedade e na comunidade humana que somos, muito marcada pela matriz cristã.

E depois faço duas referências. Uma aos jovens, uma vez que estamos nesta fase tão importante da vida da Igreja Universal da Igreja em Portugal, como é a expetativa da Jornada Mundial da Juventude, Lisboa, 2023. Não simplesmente para exaltar a importância deste acontecimento ou deste evento, mas para dar um lugar efetivo aos jovens que, do meu ponto de vista, são a possibilidade melhor que nós temos de renovar a Igreja e a humanidade. Porque eles são inconformistas, porque conhecem a realidade que vivemos e têm os sonhos relativamente àquilo que gostaríamos de viver, ao tipo de sociedade e também ao tipo de igreja que gostaríamos de ter no presente e no futuro. E, no fim, é inevitável fazer uma referência à situação de guerra e, concretamente, ao sofrimento de homens e mulheres, crianças, adultos e idosos que se está a viver na Europa, nomeadamente. É uma marca muito profunda neste Natal, com coisas tão concretas como a falta de paz, as casas destruídas, a falta de eletricidade, a falta de aquecimento, a falta de trabalho, a falta de escola, a falta do aconchego familiar, os deslocados e migrantes e refugiados.

E a isso acrescenta-se um inverno rigoroso, como o que é o vivido na Ucrânia...

Que já está a acontecer, com os sucessivos apelos, concretamente das igrejas presentes na Ucrânia, para ajuda e auxílio. E propõem também à Diocese de Coimbra que se una a este grande coro de auxílios que a própria Conferência Episcopal Portuguesa está a patrocinar, para que todas as pessoas, independentemente da sua religião, do seu credo, mas que estão em situação de dificuldade, possam ter um pouquinho mais do aconchego, concretamente do Ocidente, onde nos situamos.

Ou seja, estamos a sair de um processo doloroso de pandemia e esbarramos com uma crise económica sem precedentes, causada sobretudo pela questão da guerra na Ucrânia. Advinha-se um período muito difícil, como já o referiu, A sociedade está preparada para o enfrentar?

As sociedades nunca estão preparadas para enfrentar as grandes crises que sobrevêm, sejam elas de carácter económico, até às vezes de carácter político, ou de carácter social. Nunca estão preparadas para enfrentar uma situação como esta, de uma guerra que tem um alcance pessoal e direto na vida de milhões de pessoas e repercussões na vida da humanidade, sobretudo pelo clima de insegurança e de medo que provoca na humanidade, mesmo para aqueles que não estão diretamente envolvidos ou que não se sentem até diretamente vítimas. Se bem que neste contexto da solidariedade universa, todos somos de algum modo vítimas, seja de que guerra for, porque sempre sentimos como nossos os problemas, as dores e as dificuldades dos outros e gostaríamos sobretudo de sentir a alegria, as alegrias dos outros.

"Afetar a vida das instituições é afetar a vida das pessoas"

Em Portugal, que maiores dificuldades antevê para o próximo ano? Estamos com uma inflação da ordem dos 10% e os ordenados não terão essa percentagem de aumentos. Que atenção tem de ser dada a esta realidade?

O primeiro cuidado que devemos ter é com a justiça para com todas as pessoas, particularmente para com aqueles grupos que, do ponto de vista económico-financeiro, são sempre mais desfavorecidos e, como sabemos, são sempre as primeiras e as grandes vítimas de qualquer crise económica. Portanto, a justiça tem de ir à frente e, nesse aspeto, têm responsabilidade os Estados, os governos, os nossos, inclusivamente. Têm também responsabilidade as comunidades organizadas, tem responsabilidade a própria Igreja, a sociedade enquanto tal.

Vai ser muito difícil mitigar esta situação que se foi criando, que ainda se está a criar em consequência da guerra, mas também fruto de outros fatores emergentes dentro da vida das nossas sociedades, que têm a ver com o trabalho e com a precariedade, com remunerações, com o próprio contexto familiar daquelas pessoas que trabalham e que estudam. É um mundo muito vasto de realidades. Tem a ver com a pandemia, evidentemente. Mas também não se circunscrevem, pura e simplesmente, à pandemia ou à guerra. Nalguns casos, são questões mais estruturais dentro da vida da sociedade e da comunidade humana que somos. Portanto, ninguém está preparado para enfrentar uma realidade como esta que já está a ser dura para muitas pessoas e para muitas famílias.

Para muitas famílias e pessoas que trabalham e que são pobres e que vivem na pobreza. O que é ainda fator acrescido para sublinhar essas assimetrias que existem na sociedade…

E há setores da sociedade que podem continuar a trabalhar muito e bem, mas que, se não houver mudanças estruturais, continuarão sempre a ser pobres. Portanto, não conseguiremos afastar-nos deste espetro que paira sobre as nossas cabeças, tanto na sociedade portuguesa como em tantas outras regiões do mundo, e que não é simplesmente fruto desta ou daquela causa, mas que tem a ver com questões estruturais e com a própria solidariedade humana e com o sentido de justiça que faz parte integrante do espírito de Natal.

Essa situação social que vivemos depois também tem reflexos ao nível de quem apoia e, por exemplo, a Cáritas queixou-se, no início do mês, de que as ajudas do Estado são insuficientes e que chegam atrasadas. Outro exemplo: a Cáritas Diocesana de Beja já admite vir a encerrar valências e a reduzir respostas, caso o Estado não cumpra os compromissos assumidos. Esta é uma realidade que vem sendo denunciada pelos bispos portugueses, inclusivamente, no último comunicado da assembleia plenária. Vai ser necessário levantar mais a voz para serem ouvidos?

Vai ser necessário levantar a voz e, sobretudo, vai ser necessário que as próprias organizações, as IPSS e Santas Casas da Misericórdia se façam ouvir de forma clara, distinta, com objetividade, não simplesmente como uma reivindicação, mas como um apresentar dos factos tais quais os conhecemos e como estão a afetar a vida das instituições. Porque afetar a vida destas instituições é afetar a vida das pessoas. Não é pelas instituições, porque as instituições nascem, crescem e morrem, mas pelas pessoas, com certeza…

Vão continuar…

Com dificuldades, vão continuar a precisar de ajuda. Portanto, é preciso uma atenção de todos e de todas as instâncias, para que se encontrem os caminhos difíceis. Não ignoramos as sociedades que têm dificuldades de crescimento, mas é necessário que todos olhemos da mesma forma para o mesmo lado. Para o bem destas pessoas que são pobres.

E como é a realidade em Coimbra, neste momento?

Em Coimbra, sentimos mais ou menos a mesma realidade que se sente no resto do país. As nossas IPSS, tanto aquelas que têm a tutela da Igreja Católica como aquelas que não têm e são de caráter associativo, que têm os melhores fins, os melhores objetivos e são lideradas pelas melhores pessoas, voluntárias e generosas, estão todas a enfrentar dificuldades.

E este risco para o qual a Cáritas de Beja alerta existe também em Coimbra?

Existe para muitas instituições. É evidente que quanto mais pequenas são as instituições maior é a dificuldade. E, portanto, outras instituições, que têm uma dimensão maior, que têm uma diversidade de âmbitos de atuação, têm talvez uma situação de maior estabilidade, mas todas têm dificuldades. E eu gostaria que não ficássemos pura e simplesmente à espera que a caridade - às vezes, utiliza-se até a palavra no seu sentido depreciativo de “caridadezinha” - tivesse que resolver aquilo que, por justiça e por direito, deve assistir a estas realidades humanas.

"Espero que a visita do Santo Padre a Portugal possa ser um momento grande"

As associações não se devem substituir, não podem substituir-se ao Estado…

Mas às vezes temos instituições particulares de solidariedade social que têm de estar a procurar o apoio da dita caridade, até numa perspetiva assistencialista, para colmatar as falhas que a própria estrutura organizativa acaba por não ter capacidade de resolver. E depois há muitos outros casos que nem sequer passam pelas IPSS e que têm a ver com aquela relação pessoal, com aquela relação de proximidade que são as paróquias, as conferências vicentinas, os grupos da ação social e caritativa. Mas isso é uma outra margem que deve estar, pura e simplesmente, disponível para aqueles casos em que a dimensão da justiça organizada numa sociedade não é capaz de resolver. E sempre existirão casos desses. Cá estamos também para dar a mão a todas essas instituições e pessoas.

E a pergunta é: que país teríamos se não fossem muitas destas instituições?

As dificuldades pessoais e familiares seriam bem mais difíceis de ultrapassar. Mas são necessárias as duas dimensões, evidentemente. As instituições privadas não devem empurrar tudo para o Estado como se ele fosse todo-poderoso e capaz de resolver todos os problemas e o Estado também tem de cumprir a sua missão. Também não pode estar à espera que seja, pura e simplesmente, a iniciativa da caridade privada a resolver aquilo que lhe compete.

Tudo aponta para que, da realidade criada em 2022, transite para o próximo ano o processo legislativo da eutanásia. A Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma nota sobre o tema. Temos assistido a muitas reações de repúdio e lembro a da presidente da Associação de Cuidados Paliativos, que afirma que a lei aprovada no Parlamento é perversa, E as regiões autónomas queixam-se de não terem sido ouvidas neste processo. Que decisão espera do Presidente da República?

Como também o bastonário da Ordem dos Médicos tem feito os seus apelos…. É uma página muito dura. É muito triste a realidade que estamos a viver. Como se tem dito, e concordo plenamente, é uma mudança civilizacional no pior sentido, porque quando se toca na inviolabilidade da vida humana a discussão pode ser em todos os sentidos e mais alguns: direitos pessoais, direitos sociais e o direito a não sofrer, o direito… Tudo isso são palavras que ecoam, evidentemente. Mas quando se toca nesta questão da inviolabilidade da vida e do direito que a pessoa humana tem de viver e de viver com qualidade e de viver dentro daquelas condições que são possíveis a sociedade de hoje e o avanço médico criar, de facto, falar de eutanásia é uma derrota. É uma derrota para a comunidade humana.

O que vai fazer o senhor Presidente da República? Não imagino. Com certeza que vai ser, ou procurar ser, fiel àquilo que são os seus princípios, àquilo que também são os parâmetros da lei existente em Portugal. Vai ter em conta a Constituição, vai reunir, com certeza, pareceres, opiniões, formas de ver que vêm de todos os setores, mas vai ter de tomar uma decisão. Por um lado, pode ser muito dura e difícil, mas por outro lado pode-se afigurar mais simples, se tiver em conta alguns destes parâmetros desta matriz humanista e também, devo dizer, cristã, que é predominante, felizmente, na nossa comunidade humana.

Não o surpreenderia se Marcelo Rebelo de Sousa voltasse a enviar o diploma para o Tribunal Constitucional?

Absolutamente nada. Qualquer forma de pôr em causa uma lei como esta, a mim não me surpreenderia, porque entenderia que está na linha daquilo que eu penso que uma grandíssima parte dos portugueses defende e que faz parte da nossa mundividência humanista. Esta ideia da morte afeta sempre todas as pessoas. O sofrimento também afeta sempre todas as pessoas. Havemos de encontrar caminhos para que as pessoas possam viver uma vida com dignidade, sem que se tenha de recorrer a um meio como este que está plasmado na lei aprovada.

"A Igreja vai mesmo continuar a fazer caminho no sentido da sua renovação"

O ano de 2023 será também marcado pelo relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores e Vulneráveis. A apresentação do relatório, em finais de fevereiro, será um momento de clarificação ou é de esperar o prolongar da discussão por muito mais tempo?

É um momento importante da vida da comunidade portuguesa e daquilo que é a Igreja Católica em Portugal. Sabemos que a questão dos abusos, como se tem dito abundantemente, é transversal a toda a comunidade e à Igreja. Com certeza que está ali também uma parte muito nebulosa, dura e triste que todos nós queremos corrigir e com a qual não queremos de modo algum enquanto igreja, pactuar. Foi nesse sentido que a Conferência Episcopal Portuguesa tomou a decisão de criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos na mesma Igreja em Portugal. Foi para isso que se concedeu e contou com a aprovação da Santa Sé, a abertura dos nossos arquivos históricos, para que se possa conhecer com maior profundidade as diferentes vertentes de uma realidade que a todos nós deixa tristes e envergonhados.

Agora, não há final de processos. É um caminho que se está a fazer, que já começou há muito tempo, com o apelo forte do Santo Padre, o Papa Francisco, com a cooperação da Cúria Romana, com a cooperação da Conferência Episcopal, das nossas igrejas e paróquias e sacerdotes em Portugal, porque todos nos queremos, de algum modo, libertarmo-nos de um peso tão grande que impende sobre nós e queremos que seja da melhor forma, não por nós nem pela Igreja, mas pelas pessoas que estão implicadas, pelas vítimas e também pelos abusadores. Uns e outros a precisarem de ajuda, de auxílio, de fortaleza, de compreensão. De algum modo, de encontrarem as condições adequadas para se reabilitarem. Agora, como alguém tem dito, enquanto houver um ser humano, problemas desta ordem, provavelmente, haverá sempre. Todos estamos a trabalhar para que, na sociedade portuguesa e na Igreja Católica, eles não existam ou se reduzam à mínima expressão que for possível alcançar.

Até que ponto a realização da Jornada Mundial da Juventude e a presença do Papa em Portugal pode “intoxicar” a discussão à volta do tema dos abusos?

São coisas distintas. Toda a gente sabe distinguir a árvore da floresta, porque a Igreja não é assim. A Igreja não quer ser assim, embora tenha tido no passado, sobretudo no passado, e possa ter ainda no presente, no seu seio, algumas pessoas que não foram capazes de encontrar o seu caminho e que acabaram por cair nalgum destes crimes e pecados. A vinda do Papa Francisco a Portugal e a Jornada Mundial da Juventude é um acontecimento de uma ordem tão grande e com uma tão forte importância na vida dos jovens do mundo inteiro e também dos jovens portugueses, que eu penso que a sociedade e até a própria comunicação social, as instituições e as pessoas sabem valorizar aquilo que deve ser valorizado e sabem trabalhar para corrigir aquilo que deve ser corrigido. Portanto, eu penso e espero que a visita do Santo Padre a Portugal possa ser um momento grande, que ajude, inclusivamente, a dar passos significativos para ultrapassar estes problemas graves que se tem vivido na Igreja, em Portugal e na Igreja, no mundo.

Vamos ter uma Igreja mais “purificada” no final deste processo?

Sem dúvida alguma que vamos ter uma Igreja mais purificada, porque o processo de purificação já começou. Hoje, nenhum de nós olha para esta realidade dos abusos como olhava aqui há umas largas décadas. A sociedade não olha para ela da mesma forma. Até o próprio código legislativo não olha para estas realidades da mesma forma. As famílias não olham para esta realidade da mesma forma e, portanto, é um processo de purificação que está a acontecer, e a comunidade humana, e a própria Igreja inserida nela, penso que estão a encontrar os caminhos adequados para que essa purificação se faça e para que não volte a acontecer no presente, nem no futuro, aquilo que se constata que aconteceu no passado.

"Vamos ter uma Igreja mais purificada, porque o processo de purificação já começou. Hoje, nenhum de nós olha para esta realidade dos abusos como olhava aqui há umas largas décadas"

Sobre a Jornada Mundial da Juventude, acredita que pode ser um ponto de viragem ao nível da participação em Igreja, depois de um longo período marcado, de alguma forma, negativamente, pela pandemia?

Esse é o nosso desejo. Esse é o desejo de todos, porque a pandemia marcou muito os adultos, os jovens, as crianças, as instituições, a vida da Igreja. Mas evidentemente que o fenómeno de algum arrefecimento no que diz respeito à presença dos jovens na Igreja e ao crescimento na fé dos jovens não é simplesmente um problema de pandemia. É um processo que também já tem um curso muito longo. São muitas décadas de um processo de secularização. Tem vindo a afetar a sociedade portuguesa e, portanto, esta dimensão da educação integral, que inclui a vivência da fé e o caminho na fé, também foi afetada por todo este processo e teve algumas manifestações mais visíveis com a pandemia.

Há quem diga que este processo de pandemia acelerou muitíssimo o processo de secularização na Igreja que já vinha a acontecer há algumas décadas. Alguns países tinham sido pioneiros. Nós, em Portugal, somos um pouco mais lentos e, portanto, só agora é que vemos os efeitos mais concretos. Mas é um processo. A Jornada Mundial da Juventude, pelo ambiente que cria, pela interação entre jovens, pelo sinal forte da pessoa de Jesus Cristo que já está a ser apresentada, pela adesão dos jovens que sentem que precisam de pensar a sua vida, de pensar o seu futuro, de ir às grandes questões fundamentais: “Quem sou eu? Onde estou? Para onde vou? Qual o sentido da minha existência, daquilo que faço, daquilo que estudo, da sociedade em que vivo?”, a Jornada Mundial da Juventude tem esse poder. Tem essa capacidade de congregar a própria dimensão da solidariedade humana. No meu ponto de vista, só pode ajudar a comunidade juvenil, os jovens da sociedade portuguesa e os jovens da Igreja a ganharem um novo ânimo e a saberem situar-se de uma forma diferente no meio do mundo. Não vai ser um resolver de todas as dificuldades e problemas.

Sente os jovens mobilizados?

Eu sinto. Devo dizer que não sentia ainda tantos jovens mobilizados quando começámos este processo. Sentia mais os adultos a prepararem a Jornada Mundial da Juventude pelos jovens. Agora, já vejo uma adesão crescente por parte dos jovens, um interesse. Quando se começou a dizer que é preciso pensar em ir a Jornada Mundial da Juventude, que é preciso pensar em inscrever-se. Começaram as campanhas de angariação de fundos porque os jovens não têm dinheiro, começaram os contactos com as famílias, com as entidades públicas e privadas que podem auxiliar nestes processos. Começaram as catequeses em que os grupos de jovens se reúnem, os momentos de oração que têm por tema.

Já paira no ar uma nova onda, uma onda em crescendo, que eu considero até um pequeno milagre, dada a situação de alguma apatia que vínhamos a sentir nas comunidades cristãs e, nomeadamente, no que aos jovens diz respeito. Agora esse trabalho até agosto do próximo ano está nas nossas mãos, enquanto igreja, enquanto comunidade. Temos ainda tanto para fazer para que sejam os jovens efetivamente os protagonistas e para que não seja uma Jornada Mundial da Juventude organizada pelos adultos para os jovens. Isso seria repetir modelos que já estão gastos e que sabemos que não atraem minimamente os jovens.

O processo sinodal vai proporcionar uma nova forma de organização da Igreja? A crise que vivemos, fruto, se calhar, dessa secularização, vai levar a uma nova configuração da fé?

Vai. Eu acho que já está a acontecer. Lemos todos, há pouco, o documento preparatório, a nível continental e quando a gente vê ali a participação de cristãos de todas as partes do mundo, de praticamente todas as conferências episcopais do mundo, que fizeram os seus relatórios, quando vemos a adesão que houve ao trabalho nos grupos para poderem responder àqueles quesitos que o documento preparatório apresentou, quando vemos o interesse das pessoas em dar o seu contributo, a sua reflexão, a sua oração, o seu próprio ponto de vista, percebemos que há uma realidade que está a crescer, e que os cristãos, homens e mulheres de todas as idades, os sacerdotes, os ministros ordenados e os leigos e os consagrados, estão a procurar dar o seu contributo para a renovação desta Igreja. Penso que a Igreja vai mesmo continuar a fazer caminho no sentido da sua renovação, que é uma realidade necessária.

É a aplicação prática daquilo que foi decidido em 1965, no final do Concílio Vaticano II?

Sim. Tem muito a ver com aquilo que foi o dinamismo e a lufada de ar fresco, fogo do Espírito Santo, do período conciliar e da própria realização do Concílio. Mas penso que estamos a dar passos que, talvez, nem sequer estivessem assim plenamente ainda intuídos nos documentos conciliares.

Estamos a ter uma Igreja mais inclusiva?

Nós estamos a fazer caminho que vai para além. É um desenvolvimento, com certeza, e na continuidade, como sempre, procuramos que aconteça na história da Igreja. Mas, de facto, estão a abrir-se caminhos que, aqui há umas décadas atrás, nem sequer tinha uma noção tão exata daquilo que podem ser e de onde nos podem levar.

"Há setores da sociedade que podem continuar a trabalhar muito e bem, mas que, se não houver mudanças estruturais, continuarão sempre a ser pobres"

O Papa Francisco revelou ter escrito em 2013 uma carta de renúncia em caso de impedimento médico. O Papa Bento XVI renunciou. Esta poderá ser uma nova realidade que se poderá tornar ordinária na Igreja?

Diz-se também que o Papa Paulo VI e, porventura, outros, ao longo da história, tinham feito essa mesma diligência. Porque ser Papa é um serviço e um ministério do Pedro. Nenhum Papa ali está a exercer o seu ministério, nem por conta própria nem para seu gosto próprio. Cada vez temos mais esta noção de que é um serviço e que é enquanto for possível, enquanto houver condições e enquanto, naturalmente, a pessoa estiver com a saúde física e mental adequada. É um sinal de clarividência, de inteligência e do espírito de serviço que o Papa atual e que os outros anteriores que porventura fizeram essa diligência. Não significa que passemos a ter sempre papas eméritos, do meu ponto de vista. Um Papa pode morrer subitamente, um Papa pode morrer na posse de todas as suas faculdades intelectuais. Como disse o Papa, há pouco tempo, a Igreja não se governa nem se dirige com os joelhos, mas com a mente, com a inteligência e com o coração, evidentemente. E, portanto, não me parece que signifique que agora se torne uma realidade ordinária e habitual na vida da Igreja. Mas pode muito bem acontecer. Isso não nos deixa absolutamente nada perturbados.

Isso será compreendido pela Igreja, pelos fiéis?

A Igreja compreende, como compreendeu muitíssimo bem a renúncia do Papa Bento XVI, como ele a anunciou. Aquilo que disse foi suficiente para os católicos no mundo perceberem: este nosso irmão mais velho, que é o irmão Papa, sucessor de Pedro, entendeu, iluminado pelo Espírito Santo, que não estaria já nas melhores condições para continuar a conduzir a barca de Pedro. Foi um sinal de humildade, foi o sinal de inteligência, de clarividência e de iluminação do Espírito que a Igreja entende muito bem.

Faz parte desta Igreja em mudança a que estamos a assistir o farol do passado?

O facto de terem passado tantos séculos sem que isso acontecesse deu-lhe um caráter de novidade quase absoluta. Só quem conhecia a história é que tinha essa noção. Felizmente, hoje, as pessoas já percebem que todos nós perdemos as nossas capacidades e todos nós somos débeis e nos debilitados ao longo da vida. E quem está para servir, está disponível para aquilo que for melhor e mais necessário em cada momento. E o Papa também se situa entre essas pessoas.

Começamos com a sua mensagem de Natal para este ano e pergunto-lhe, para finalizarmos: quais são as suas expetativas para o novo ano e quais são os votos para o novo ano?

A minha expetativa era a de que, em primeiro lugar, a guerra acabasse. Também, evidentemente, gostaria muito que este drama dos abusos na Igreja e na sociedade… que conseguíssemos encontrar um termo, um ponto final e caminhos diferentes para a vida de crianças, adolescentes, de jovens, de idosos, seja de quem for no futuro, com respeito pela sua pessoa e pela sua dignidade.

Do ponto de vista económico, gostaria muito de ver a comunidade humana a encontrar os caminhos adequados para que a pobreza não fosse um espetro ali sobre a cabeça de algumas pessoas e famílias. De uma grande parte, infelizmente. Mas que todos pudéssemos ter as condições mais adequadas para viver, tranquilos, em paz e, portanto, que as famílias não tivessem de ficar sempre sob efeito do medo do dia de amanhã, mas pudessem encontrar a tranquilidade. E depois gostaria ainda muito, é um voto, que nós, enquanto igreja, fôssemos capazes de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo a todos, de uma forma clara, atraente, convincente, por meio do testemunho, que levasse muitos a conhecer a riqueza do encontro com Cristo que é aquilo que faz a Igreja agir, que faz a Igreja trabalhar, desenvolver as suas obras, porque é a evangelização, ao fim de contas, que é a nossa missão.

Um Santo Natal, para si e para todos os diocesanos.

Santo Natal também para si, para a Rádio Renascença, para todos os ouvintes, para todos.

Muito obrigado.

Comentários
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  • Humberto Fernandes
    02 mai, 2023 Montemor-o-Velho 09:11
    Estou desempregado e sem rendimentos de lado nenhum tenho carta de condução mas não tenho carro para os concelhos de Montemor-o-Velho ,pedia ajuda porque sou um ser humano obrigado tel 910910841
  • Adélio Pequenino
    22 dez, 2022 Terras da Vernária 11:39
    Os Bispos e os Padres, em certos atos religiosos, perguntam ás ovelhas cegas: renunciais a satanás, pai da mentira, a todas as suas obras e a todas as suas seduções? As pobres ovelhas não sabem que satanás é um ser, ou seres, de constituição física, com nome, com rosto e com uma doutrina SEDUTORA e MENTIROSA. E libertam - os com o voto. Tem razão o Papa Francisco. Ele disse: há Bispos e Padres que são repetidores mortos, são altifalantes. Em tempos não muito distantes, um certo Bispo, que já morreu, para não dizer: O partido socialista não não pode esperar mais. Dizia : os pobres não podem esperar mais. Morreu, morreu. Os socialistas já lhe construíram uma estatua com dinheiros públicos. Esta igreja não é a igreja de Cristo. Continua a ser a igreja de Moisés. Está encostada aos FABRICANTES de pobres. Rezemos para que Cristo venha, Quanto antes, julgar os vivos e os mortos. Um Santo Natal.

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