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Abusos de menores. Regras da Igreja são "mais rígidas" do que leis civis

05 ago, 2022 - 14:41 • Ângela Roque

Pedro Vaz Patto, do Tribunal Eclesiástico de Lisboa, explica à Renascença que mesmo em casos que já tenham prescrito e não possam ser julgados nos tribunais, a Igreja pode atuar e sancionar os abusadores, o que pode sempre incluir deixarem de exercer como padres.

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A Igreja tem regras claras para tratar dos casos de abuso sexual de menores e têm vindo a ser melhoradas. “Foram evoluindo no sentido de maior severidade nestes últimos anos”, diz à Renascença o juiz Pedro Vaz Patto, sublinhando que são hoje até “muito mais rígidas do que a legislação civil”.

Este responsável explica que a atuação em casos de abuso no âmbito da Igreja e das suas instituições está regulada por um documento próprio, o Vade Mecum, uma espécie de ‘manual’ de procedimentos criado em 2020 e revisto em junho de 2022 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé. O documento prevê que mesmo em casos que já tenham prescrito e não possam ser julgados nos tribunais, a Igreja pode atuar e sancionar os abusadores, o que pode incluir deixarem de exercer como padres, garante Pedro Vaz Patto.

“Entre as sanções a mais grave é a demissão do estado clerical, ou seja, a redução ao estado laical”. Não deixam de ser padres, esclarece, porque o sacramento do sacerdócio é para a vida, só que “o exercício fica vedado”. Mas, mesmo nos casos de suspeita de abuso, com vários anos, e já não podem ser julgados pelos tribunais civis, a Igreja pode aplicar a sanção máxima. “Se se justificar, sim, há essa possibilidade de derrogar as regras da prescrição, mas é preciso que se justifique”. A decisão final é sempre tomada pelo Vaticano.

O Vade Mecum também prevê que os casos suspeitos sejam comunicados às autoridades civis. “No código de Processo Penal português não há obrigação, em termos gerais, de um vulgar cidadão comunicar às autoridades civis o conhecimento de um crime público. Mas este Vade Mecum diz que mesmo nos casos em que não haja essa obrigação - como se verifica em Portugal – a comunicação às autoridades civis deve ser feita quando for necessária para proteger a vítima, ou outras vítimas, isto é, quando haja perigo de continuação da atividade criminosa”, explica aquele responsável, que integra o Tribunal Eclesiástico do Patriarcado de Lisboa.

A idade limite para os abusos também é maior à luz do direito canónico. “No Código Penal são considerados menores apenas com idade inferior a 16 anos, no direito canónico é com idade inferior a 18 anos”, indica Pedro Vaz Patto, adiantando que os próprios prazos de prescrição são também muito mais alargados nas regras da Igreja.

“No código de direito canónico o prazo de prescrição é de 20 anos, a contar apenas a partir da maioridade. Isso não se verifica no código do processo penal, embora estes crimes não possam prescrever antes da vítima atingir os 23 anos, no código de direito canónico esse prazo vai muito mais além”.

É sempre possível alterar a regra da prescrição. “Mesmo que à luz do código de direito canónico os crimes estejam prescritos, ou se tenha esgotado o prazo da prescrição, mesmos nesses casos pode-se atuar”.

Mas a decisão depende sempre da Santa Sé. “O bispo diocesano pode dar um parecer, mas o Dicastério para a Doutrina da Fé é que toma a decisão definitiva. Não é o bispo que, por si mesmo, toma a decisão de derrogar a regra da prescrição. Isso depende do Vaticano e de várias circunstâncias: da gravidade do crime, do escândalo que possa ter suscitado, do perigo de continuação da atividade criminosa”.

Pedro Vaz Patto acrescenta: “se, de facto, há um crime praticado há 20 anos, e não há notícia de mais crime nenhum, podemos considerar que não há perigo de continuação da atividade criminosa e não se justificará, nesse caso, alterar a regra”.

Outro dado importante tem a ver com as garantias de defesa dos suspeitos e arguidos. “Também no direito canónico vale a presunção de inocência, também há regras de sigilo que têm a ver com essa presunção de inocência. Não se pode permitir que haja um dano à boa fama de pessoas que possam ser acusadas injustamente, e isso, enquanto não há uma decisão definitiva, deve-se respeitar”.

“Pode haver situações em que é necessário fazer a comunicação da existência do processo, e há a possibilidade de aplicar medidas cautelares, como se têm verificado em casos recentes, que podem implicar a suspensão do exercício das funções do ministério sacerdotal. O Vade Mecum chama a atenção para a necessidade de, quando é necessário dar publicidade aos casos, fazê-lo com discrição, não identificar a pessoa - quer o acusado, quer o denunciante”.

Acrescenta mesmo que “há um cuidado em proteger o denunciante, para que ele possa atuar em liberdade, sem pressões”. E, embora “o processo em si seja secreto, também não é permitido impor o silêncio em relação ao denunciante, que tem a liberdade de comunicar publicamente a sua denúncia. Mas, isso não deve partir do próprio processo”, sublinha.

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  • Ivo Pestana
    06 ago, 2022 RaM 15:55
    Omissão e corporativismo, é próprio da Igreja. É Diabólico, logo a justiça da Igreja não será suficientemente eficaz...
  • José J C Cruz Pinto
    05 ago, 2022 ILHAVO 14:32
    Pois sim, e ainda bem que assim é, como aliás eu sempre pensei que fosse. Mas o resultado prático dessas regras "mais rígidas" foi até agora nulo ou pouco visível, não foi? Não andam muitos dos sacerdotes em causa (ou todos, excepto os que já .faleceram), não só em liberdade, como em pleno "serviço"?

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