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A Renascença na Ucrânia

Dois meses de guerra aos olhos da Igreja Ortodoxa de Kiev. "A nação ucraniana está a vencer no plano moral"

24 abr, 2022 - 09:56 • José Pedro Frazão enviado especial à Ucrânia

Em entrevista à Renascença o porta-voz da Igreja Ortodoxa Ucraniana diz-se livre para criticar Zelensky caso seja necessário, mas todo o discurso é de apoio ao esforço nacional para derrotar os russos numa invasão que prolongou uma guerra que vem de 2014. Em tempo de Páscoa, o Arcebispo Eustratius explica as difíceis relações com o Patriarcado de Moscovo, atacando o seu líder Cirilo numa conversa que passa ainda pela forma como são realizadas celebrações ortodoxas em tempo de guerra.

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A Páscoa ortodoxa chegou com bombas às comunidades ucranianas. Muitos templos espalhados por vários pontos da Ucrânia não têm sido poupados. A fé caminha com dificuldade entre as ruínas de edifícios destruídos e os escombros nas almas dos ucranianos de fé ortodoxa. Para estes fiéis, os combates começaram há muito e também no plano religioso, com a autodeterminação da Igreja Ortodoxa Ucraniana face ao domínio do Patriarcado de Moscovo.

O Arcebispo Eustratius é o porta-voz do Santo Sínodo, designação dada à conferência episcopal ortodoxa na Ucrânia e recebe-nos no Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas no centro de Kiev, onde funciona a sede da Igreja ortodoxa Ucraniana e onde está também o Metropolita Espifânio, primaz da Igreja unificada em Dezembro de 2018 com autocefalia concedida pelo Patriarca de Constantinopla para irritação do Patriarca Cirilo de Moscovo. A rutura ortodoxa entre Kiev e Moscovo é indissociável da tensão entre os dois países, cujo clímax foi a invasão russa em fevereiro de 2022.

De que forma a Igreja Ortodoxa Ucraniana acompanha esta guerra?

Em primeiro lugar gostaria de enfatizar que nós, como Igreja Ortodoxa Ucraniana, temos sofrido a agressão russa já há mais de 30 anos, desde os primeiros dias da restauração da independência ucraniana. Sabemos, pela nossa história, qual é a real atitude de Moscovo face à nação e identidade ucranianas. Para mim e para os meus colegas, isto não foi uma surpresa. Claro que não esperávamos uma agressão tão aberta e alargada com esta invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas você e os seus ouvintes e leitores devem saber que a guerra da Rússia à Ucrânia não vem desde fevereiro de 2022, mas desde fevereiro de 2014. São mais de oito anos, com a invasão da Crimeia e algumas partes do Donbass. Neste momento, considero que a nação ucraniana está a vencer no plano moral. Toda a gente em todo o mundo consegue ver que a nossa luta, a nossa guerra, não tem a ver com territórios ou razões políticas e económicas, mas é uma guerra pela humanidade, pela liberdade, pela verdade. O que aconteceu em Bucha e outros locais, ou o que ainda decorre em Mariupol e em cidades do leste da Ucrânia, é algo que se pode realmente comparar com os crimes de guerra do regime fascista de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Se não travarmos a Rússia e o próprio Putin na Ucrânia, ele vai expandir a sua agressão e estas atrocidades e massacres a outros países vizinhos da Europa como os do Báltico, Polónia e outros. Precisamos do maior apoio possível do ponto de vista diplomático, económico e político. Tudo isso vai ajudar a Ucrânia a conseguir uma vitória assim que possível e a proteger o maior número de vidas possível.

A Igreja ortodoxa ucraniana está 100% ao lado do Presidente Zelensky?

Nós não apoiamos personalidades ou políticos. Somos uma Igreja que apoia o nosso Estado, a sua independência, soberania e integridade e a liberdade na nossa Nação. Não somos apenas cidadãos leais da Ucrânia, pois também sabemos, pela nossa própria experiência e por muitos exemplos, que apenas a existência de um estado independente ucraniano garante a liberdade religiosa. Nos territórios agora sob controlo russo, observamos sérias limitações a todo o tipo de liberdades, incluindo a liberdade de religião. Na Crimeia ocupada, nos territórios ocupados do Donbass, os nossos padres e as nossas congregações e paróquias têm enfrentado muitos problemas nestes oito anos, incluindo muitas perseguições. Entendemos que se não protegermos agora a nossa liberdade e a independência do nosso estado, enfrentaremos um problema muito sério no domínio da liberdade religiosa. Nós apoiamos Zelensky como chefe do Estado ucraniano, mas, como Igreja, não gostamos de ter ligações fortes a personalidades ou políticos. Apoiamos diferentes tipos de decisões e se efetivamente algo acontecer que tenha que ser criticado pela Igreja, nós temos liberdade para o fazer. Se houver algo que precisa de ser apoiado pela Igreja, nós temos liberdade para apoiar.

Considera que essa é a diferença para a Igreja Ortodoxa obediente ao Patriarcado de Moscovo?

Graças a Deus e a uma autoidentificação com a nação ucraniana, somos sociedades diferentes e de tipos distintos de estado. Temos um tipo de relação entre Estado e Igreja completamente diferente. Na Ucrânia temos uma efetiva liberdade religiosa. Somos independentes face ao Governo, temos real liberdade. Há mais de 50 comunidades religiosas diferentes, desde os ortodoxos, católicos de rito ocidental e oriental, protestantes, judeus, muçulmanos e outras tradições religiosas. A Rússia, ao longo da sua história, infelizmente não experimentou um sistema de igrejas independentes como entidades legais face ao Estado.

Como estão atualmente as vossas relações com a Igreja Ortodoxa Russa?

Infelizmente, como podemos ter uma relação se o Patriarca de Moscovo não reconhece sequer o nosso direito a existir? Não nos reconhece como cristãos nem o direito a existirmos como Igreja. Será possível manter um diálogo com alguém que não reconhece que nós somos uma realidade?

"Esta guerra é apenas sobre liberdade, escravidão e tirania. É sobre a Europa e uma tirania medieval asiática"

É uma espécie de guerra entre a igreja ortodoxa russa e a ucraniana.

Não, não é uma guerra. Nós sempre dissemos repetidamente que o que está a acontecer na Ucrânia não é uma guerra religiosa ou entre diferentes grupos étnicos ou até uma guerra civil. Isto não tem a ver com religião, com as nações ou diferentes visões políticas. É apenas sobre liberdade, escravidão e tirania. É sobre a Europa e uma tirania medieval asiática.

Acredita que há outras vozes para além do Patriarca Cirilo de Moscovo com opiniões distintas na Igreja Ortodoxa Russa?

Esse é um problema para a sociedade russa resolver. A liderança da Igreja Ortodoxa Russa está totalmente dependente das posições governamentais. E o Patriarca Cirilo e os seus colaboradores apenas espelham as informações oficiais. Ele saberá como quererá ser um verdadeiro Pastor de pleno direito, um verdadeiro líder com a sua própria voz. Nós, como Igreja independente ucraniana, não vemos essa realidade com grande dor, mas o Patriarca Cirilo tinha milhões de seguidores na Ucrânia que ele desapontou. Ele teve tempo para mandar condolências ao presidente chinês pela queda de um avião, mas, em 60 dias, não encontrou uma hora para formular sequer algumas frases de compaixão e condolências dirigidas ao seu próprio povo que tem sofrido, que tem morrido por ação de tropas e bombas russas, cujas igrejas têm sido destruídas ou demolidas pelos soldados russos. Como é que eles se sentem agora em relação ao Patriarca Cirilo, que têm seguido ao longo dos anos como um pai e um líder espiritual?

Como vê a ação do Papa Francisco neste conflito?

É uma questão difícil porque eu sou ortodoxo e não é correto estar a criticar a posição do Vaticano. Compreendo que o Papa Francisco tenha uma responsabilidade global e que tem que levar em linha de conta diferentes pontos de vista de sociedades e países muito diferentes. Mas, pelo que consigo observar nos meus irmãos e irmãs da Igreja católica na Ucrânia, eles esperam uma posição mais clara do Vaticano e a necessidade de expressão de uma diferença entre o assassino e aqueles que estão a ser mortos. Observámos muitas palavras de compaixão e misericórdia sobre as consequências da guerra, mas penso que o Vaticano deve enfatizar mais a origem da guerra. Quem é, com o seu próprio nome, que patrocina esta guerra.

Como define a vossa relação com os católicos ucranianos?

Temos uma relação muito boa, de filiação fraternal, não apenas no diálogo, mas também numa cooperação frutuosa. Na Ucrânia, temos uma cooperação bilateral muito boa com a Igreja Católica Romana e com a Igreja Greco-Católica. Há mais de 25 anos que temos o Conselho Ucraniano de Igrejas e Organizações Religiosas. É um organismo ecuménico que une diversas denominações cristãs e também judeus e muçulmanos. É uma organização única, onde mantemos a nossa identidade religiosa e providenciamos uma só voz face à sociedade e aos nossos parceiros no estrangeiro. Penso que é um exemplo muito bom de que é possível encontrar soluções dentro da Ucrânia sobre qualquer questão e sem interferência russa - como aliás nunca acontecerá na Ucrânia.

Como é que a comunidade ortodoxa vive a sua fé neste momento no leste da Ucrânia? Acha que é possível fazer alguma celebração quando tudo está rebentado? Mariupol neste momento assemelha-se a Estalinegrado depois da guerra. É uma cidade totalmente destruída. É um lugar de morte. Celebramos liturgia nos locais onde é possível, mas cada padre e cada igreja é hoje um centro de ajuda humanitária, de oração mas, também, de comunicação entre as pessoas. Mas, infelizmente, desde o início desta guerra que me sinto num documentário sobre a Segunda Guerra Mundial. Porque vejo à minha volta tudo o que li na minha infância em livros ou vi na televisão.

Estão a realizar também celebrações em pisos inferiores e abrigos?

Dou-lhe um exemplo. Um dos nossos bispos viveu mais de um mês na cave de uma igreja católica romana numa cidade do Leste. Porque todos os dias os russos bombardeiam a cidade e as caves das igrejas católicas são os lugares mais seguros que pode encontrar, mesmo sendo alvos para os russos. Entendemos que a nossa Igreja Ortodoxa Ucraniana é também um alvo.

Sente-se em perigo aqui na catedral?

Sim, quem poderá prever que tipo de ideias estão agora na cabeça de Putin? As consequências das suas decisões são a prova de que a cabeça dele não está a funcionar como a mente normal de um ser humano.

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