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Biografia

D. António Ribeiro: um defensor da democracia, sem preferências partidárias

24 abr, 2022 - 08:45 • Ana Catarina André

Cardeal Patriarca de Lisboa entre 1971 e 1998, D. António Ribeiro ficou conhecido pela "moderação" com que conduziu a Igreja durante a transição para a democracia. A sua mais recente biografia, da autoria da investigadora Paula Borges Santos, recorda um bispo "com um sentido político agudo"

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Um "homem com capacidade de imaginar o futuro da Igreja", um "diplomata" e "um defensor da democracia", que não se coibia em "estabelecer limites". D. António Ribeiro era um defensor da democracia, apesar de nunca ter manifestado preferência por qualquer partido político.

Encarou a revolução de abril de 1974 com "expectativa" e foi criticado sobretudo pela ala progressista composta por um grupo de católicos "insatisfeitos com um Patriarca que procurou a moderação".

Em vésperas de mais um aniversário da revolução dos cravos, a investigadora e professora Paula Borges Santos, autora da mais recente biografia do Cardeal Ribeiro, recorda o legado do bispo que esteve à frente do Patriarcado de Lisboa, entre 1971 e 1998, e que conduziu a diocese durante a transição democrática.

No dia 25 de Abril de 1974, D. António Ribeiro estava em Fátima, numa reunião da Conferência Episcopal Portuguesa. O que se sabe sobre esse dia na sua vida?

Aquilo que era já conhecido e que este estudo pôde comprovar é que a Conferência Episcopal estava reunida em Fátima, para uma reunião ordinária, quando os bispos são surpreendidos pelo golpe de Estado. Daquilo que se conseguiu apurar até ao momento, os bispos não teriam nenhuma informação especial de que [a revolução] iria acontecer naquela data. Fizeram uma declaração muito curta e voltaram de imediato para as suas dioceses. D. António também regressa a Lisboa.

Pode dizer-se que D. António Ribeiro começa por ter uma postura cautelosa perante os acontecimentos políticos?

Sim, mas de uma expectativa benévola. Não há nenhum fechamento, não há nenhum isolamento. Há uma cautela, porque é preciso aguardar pelos rostos da nova classe política. Cedo recebe garantias da parte da Junta de Salvação Nacional de que era procurado um entendimento com a Igreja. O encontro com [António de] Spínola e depois com [Adelino da] Palma Carlos oferecem-lhe garantias de que não iria acontecer nenhuma tentativa de rutura, de alteração abrupta das relações do Estado com a Igreja Católica. Nesta altura, vários católicos também começam a ter informação. Muitos foram captados para os novos centros de poder e os bispos acabam por ter todos essa informação. D. António estava numa posição privilegiada, porque estava em Lisboa que era o centro de todos os acontecimentos e contactava com alguma facilidade com as várias autoridades políticas e militares. Essa cautela é natural, mas não há nenhuma preocupação de encerrar a Igreja sobre si mesma. Pelo contrário, a atitude era de expectativa e de abertura.

A partir de que momento, se torna evidente que o Cardeal Ribeiro tinha já uma conceção de democracia?

Diria que essa inclinação é anterior à queda da ditadura e estamos a falar de uma opção clara por um modelo de democracia de tipo ocidental. D. António era um homem que tinha muito mundo, em 1974, não só por ter estudado em Roma e na Áustria, mas sobretudo porque, ao longo do seu episcopado, tinha acompanhado a Ação Católica, a delegação portuguesa da Pax Romana. Era um homem que contactava com a Europa Ocidental, onde já vigorava esse modelo. Depois de ser nomeado Patriarca, fazia visitas regulares ao Vaticano, para além de férias que passava em vários países. Tinha mundo e a sua referência era a da democracia pós II Guerra Mundial, uma democracia de tipo ocidental, pluralista. Não se sabe, não se se percebe nenhuma preferência de D. António por um partido político, dentro desse quadro de uma democracia pluralista. Não se percebe nenhuma simpatia especial pela democracia cristã italiana, ou por outras vias possíveis de um socialismo moderado.

Era um homem que possuía um fino tato diplomático e um sentido político agudo

Essa inclinação para a democracia, como lhe chamou, é logo evidente a partir de 1971, altura em que é nomeado Patriarca de Lisboa?

Um dos fatores que explicam a escolha de D. António é a Santa Sé estar à procura de um prelado que fosse capaz de garantir a passagem com tranquilidade da Igreja de um regime autoritário para um processo de transição para a democracia. E, por isso, sim isso já estava no horizonte. D. António tinha uma formação que lhe permitia aguentar o impacto dessa mudança. A carta pastoral que vai ser publicada, em 1973, a propósito do décimo aniversário da Pacem in Terris, é do episcopado, mas sabe-se que é redigida a partir de contributos de D. António. Aí, torna-se claro que nem todas as opções políticas são viáveis e que há uma inclinação para respeitar o pluralismo político e religioso. Há uma nota do Patriarcado de Lisboa, pouco depois da primeira declaração da Conferência Episcopal, onde se sublinha já uma abertura e uma vontade de colaboração com as novas forças políticas. Depois, a partir do 11 de março, D. António e os restantes bispos adotam uma atitude de maior reserva em relação aos acontecimentos políticos e ao comportamento das forças políticas. E aí, claramente, há uma denúncia expressa de que uma via de politização pelo marxismo, ou por soluções mais radicais do socialismo não deveria ser seguida pelos católicos. A exclusão de uma democracia de tipo popular também fica muito clara.

Com a revolução, D. António Ribeiro torna-se o principal interlocutor da Igreja com a classe política. Como era a relação dele com os políticos?

D. António era um homem muito cordial e afável. Tinha um olhar muito aberto, muito transparente e, apesar de ter um rosto fechado e não ser emotivo, percebia-se facilmente nos olhos dele muito daquilo que estaria a pensar. Aquilo que os depoimentos e testemunhos evidenciam é que os políticos lhe encontravam um traço de distinção, até de algum porte aristocrático. Era um homem que possuía um fino tato diplomático e um sentido político agudo. Não fazia negociações imediatas, procurando resultados imediatos. Era cauteloso, mas era um homem que mereceu o respeito da classe política, quer antes, quer depois do 25 de Abril.

Há algum episódio que seja emblemático a esse nível?

Antes do 25 de Abril, há um momento que gosto de distinguir e que não se conhecia antes desta investigação: o do envolvimento de D. António no Sínodo dos Bispos de 1971, onde estava em cima da mesa uma declaração a fazer sobre as experiências coloniais. Havia uma pressão para os bispos denunciarem as arbitrariedades cometidas pelos regimes coloniais, entre eles o da ditadura portuguesa. Aí, D. António consegue, com outros bispos portugueses e também do Brasil, evitar que essa declaração seja apresentada e validada pela assembleia sinodal, evitando assim uma condenação explícita do regime português. Também havia a acusação de que a Igreja Portuguesa estaria a ser cúmplice dos alegados crimes que a ditadura cometia nas colónias e na metrópole em relação a presos políticos. D. António consegue que essa condenação não fique registada nas atas, ao mesmo tempo que a questão é transferida para a condenação do comunismo e do que os regimes comunistas faziam às igrejas católicas. Depois, logo no período de transição para a democracia, D António assume um papel diplomático não tanto em matéria de política exterior, mas mais ao nível interno.

De que forma?

D. António assumiu um papel de grande cuidado em relação a um poder político que estava disperso. Não tínhamos uma estrutura de Estado organizada. Não houve também, como alguma historiografia aponta, uma falência do Estado no 25 de Abril. Não ficámos sem Estado, mas havia vários centros de decisão e alguns sobrepunham-se nas decisões que tomavam. D. António manifesta-se um político sempre com um sentido muito claro do que queria e para onde ia, nunca se desviando daquilo que era o objetivo final. Depois, já num período de consolidação para a democracia, volta a ter um papel importante em prestigiar a Igreja Portuguesa no exterior, designadamente na relação com a ex-colónias portuguesas, como Angola e Moçambique, onde é designado para ir em representação do Papa, durante o processo complicadíssimo de paz desses dois países.

D. António é particularmente criticado pelos chamados católicos progressistas, que têm um projeto político que o Patriarca recusa

Este sentido diplomático do Patriarca não impediu que, no famoso episódio da Capela do Rato, que culminou com a detenção de várias pessoas, entre as quais padres, D. António tenha sido amplamente criticado.

Uma coisa é a projeção da Igreja nas relações com o Estado e na relação exterior do Estado português com outros países – aí há um papel diplomático. Outra é a relação do bispo com a comunidade que o envolve, com os religiosos, com o clero diocesano, com os leigos. Aí, D. António tem, também, uma missão difícil, a de manter a unidade de uma diocese que era atravessada por várias fraturas, fraturas que vinham já do período anterior ao 25 de abril.

Como é que caracterizaria essas fraturas?

Tinham a ver com diferentes visões da missão da Igreja, com diferentes possibilidades de organização da própria estrutura pastoral, eclesial, das apostas de evangelização que se iam fazer. D. António é particularmente criticado pelos chamados católicos progressistas, que têm um projeto político que o Patriarca recusa. Aliás, D. António lançou vários alertas e não se coibiu de estabelecer limites. Isso passava por propostas políticas de teor marxista que, ao fim e ou cabo, estavam relacionadas com alguns projetos mais ou menos violentos de tomada de poder, com alguma radicalidade e até com o perigo de resultarem em ateísmo e relativismo. Estes eram limites que D. António impunha, dizendo que os católicos não os poderiam ultrapassar. Portanto, esse setor está sempre muito insatisfeito com um patriarca que procura a moderação, que procura conciliar setores que dificilmente dialogariam uns com os outros.

Ainda sobre o episódio da Capela Rato, refere que, apesar desses acontecimentos serem hoje recordados de forma elogiosa, nomeadamente a pressão exercida por D. António para libertação de dois padres, na altura o Patriarca foi bastante contestado, na maneira como conduziu o processo.

Muito contestado. D. António tinha já a experiência de preparação do Dia da Paz, um pedido relativamente recente de Paulo VI às igrejas locais. Tinha sido já difícil, por causa do contexto de guerra colonial e da ditadura, encontrar uma forma de o assinalar. O caso da Capela do Rato veio obrigá-lo a impor os tais limites de que falava há pouco. D. António não se opõe à realização da vigília [na Capela do Rato], mas depois critica a forma [como decorreu], a intervenção policial, o uso da força, as prisões, a atitude dos que tinham usado o espaço de culto para tomarem uma posição política. D. António Ribeiro é bastante criticado pela nota do Patriarcado sobre os acontecimentos. Alguns católicos esperavam uma condenação dura do regime e uma demarcação em relação à ditadura. Isso a nota não tinha. Era um pronunciamento sobre o que tinha estado errado, quer da parte dos que estavam a fazer vigília, quer da parte das forças policiais. Gera várias críticas, mas também elogios. O Patriarca não ficou assim tão isolado nesse momento.

Numa altura de posições tão extremadas, D. António procura o equilíbrio.

Se tivesse assumido outra posição, as coisas poderiam ter corrido mal. Poderia ter-se avolumado um conflito muito maior. Repare que o regime estava a intensificar a vigilância sobre os católicos em dissidência. A censura estava mais forte do que nunca. Às vezes não se tem bem essa ideia que é no final do Marcelismo que o aparelho incomoda mais a Igreja Católica, inclusivamente vigiando alguns bispos. De qualquer forma, em relação à Capela do Rato, D. António vai ter também importantes manifestações de apoio, entre as quais as de António Sousa Franco e Adérito Sedas Nunes, que vão dizer que a forma como se expressa já é importante passo em relação aos pronunciamentos anteriores da Igreja. Há um aspeto curioso. D. António nunca respondia a esse tipo de críticas, mantinha-se sempre em silêncio, mas preocupava-se em responder às cartas dos padres que lhe escreviam, confusos com as várias versões que circulavam dos acontecimentos.

D. António reservava tempo para ouvir os seus padres

D. António responde a todos?

Sim. Há uma grande preocupação de responder a todos e não deixar que alimentem equívocos. Há pessoas que intervêm na esfera pública a quem também responde, mas aos padres diocesanos responde sempre.

Terá sido esse acompanhamento ao clero que contribuiu para que, já na década de 1980 e 1990, a Igreja de Lisboa estivesse menos fragmentada? Voltou, por exemplo, a haver ordenações de padres, depois de terem sido inexistentes no fim da década de 1970.

Sim, acho que isso é muito importante. É claro que alguns dos padres que eram mais críticos da liderança episcopal entraram em rutura antes do 25 de Abril e pediram redução ao estado laical. Há muitos críticos que ficam e acabam por ceder. O relacionamento entre o bispo e esses padres acaba por ir melhorando. As coisas vão acalmando também politicamente. Há depois uma produção de documentos que vai sendo feita, um plano de ação pastoral, um plano de ação das vocações, a criação dos conselhos paroquiais, do conselho diocesano pastoral. Eram aspirações do clero diocesano, já muito antigas, quase todas do tempo do Concílio. D. António vai dando resposta e a Igreja de Lisboa reorganiza-se e entra num caminho de incorporação de algumas normas conciliares. Vai-se transformando nas suas estruturas, com fóruns de contacto, de diálogo, para todos se expressarem. D. António reservava tempo para ouvir os seus padres. Escutava-os e procurava resolver os seus problemas. Consegue ainda uma coisa muito importante para a diocese: consegue suscitar novas vocações. E desse ponto de vista, há uma região, o Oeste, que vai ser muito importante na sua estratégia pastoral. Era uma região já mais longe da capital, mais rural, com outro tipo de carências que D. António tinha a capacidade de entender, precisamente pelas suas origens.

D. António Ribeiro vinha de uma aldeia na Arquidiocese de Braga.

Exatamente. Quase que convoca as suas origens para dialogar com pessoas que pertencem, de facto, a um mundo diferente, a um mundo rural, com outras regras que não são as de Lisboa. Vai suscitar uma verdadeira simpatia popular. É mais fácil encontrá-lo a sorrir junto das populações, do que em cerimónias de Estado.

Desta investigação, que resulta agora na publicação da biografia de D. António Ribeiro, o que a surpreendeu mais?

A capacidade de resiliência e a capacidade de imaginar o futuro da Igreja. É um homem que se vai revelando muito atento os fenómenos contemporâneos. Tem uma capacidade muito grande de interpretação do tempo presente, uma leitura realmente muito rápida da realidade e de distinguir aquilo que irá resultar no futuro. A aposta dele nos meios de comunicação social mostra isso mesmo: a capacidade de prever que ali estava um embrião de uma transformação grande das nossas sociedades. Se alguma ideia sua não avançava, insistia até certo ponto e deixava cair, quando não havia condições para garantirem o sucesso. É um homem que tem essa capacidade de antever, de certa forma, o futuro e de preparar as estruturas para isso. Isso impressiona-me muito. É graças a D. António que há uma recomposição, ainda antes do 25 de Abril, da estrutura dos meios de comunicação social católicos. Podia ter avançado muito mais, mas as outras lideranças não estavam preparadas para o ritmo que quis imprimir.

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