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Papel do Papa no combate à pobreza “tem sido muito importante”, diz Carvalho da Silva

13 nov, 2021 - 08:46 • Ana Carrilho

O investigador social e antigo líder da CGTP acompanha com especial interesse a intervenção de Francisco, que não se cansa de denunciar as situações de injustiça, desigualdade e ofensa à dignidade do Homem. Só lamenta que os grandes decisores continuem sem dar a atenção devida às suas palavras.

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A luta contra a pobreza é uma das batalhas do Papa Francisco. Em 2017 instituiu o Dia Mundial do Pobres, que este ano se celebra a 14 de novembro. A Renascença foi saber o que pensa o sociólogo e antigo líder sindical sobre o papel e a influência do Papa. Manuel Carvalho da Silva não tem dúvidas em afirmar que a intervenção de Francisco tem sido “muito importante”. Mas, lamenta que quem manda faça muitas vezes “orelhas moucas” aos seus alertas.

A ação e as denúncias do Papa na luta contra a pobreza têm dado resultados?

O trabalho de instabilizar consciências, que é sempre indispensável para resolver grandes bloqueios e grandes problemas da sociedade, obriga a grande persistência e não se encontram respostas positivas de um momento para o outro. Para responder diretamente à sua pergunta, direi que tem sido muito importante a intervenção do Papa, nesta matéria, como noutras.

O Papa Francisco, às vezes até de forma provocatória, tem partido de velhas conceções, como a do fatalismo da pobreza, para depois desenvolver um raciocínio que é muito importante e muito desafiador para a Igreja Católica. Lembra que a Evangelização tem de ser, acima de tudo, uma vivência plena com aqueles que sofrem, partilhando os problemas concretos das pessoas. É uma ação de “incomodação”. Ele tem usado várias vezes a ideia de que Evangelizar é transformar a sociedade, não é apenas colocar pensos.

Outro aspeto é o facto do Papa Francisco dar muito relevo à irracionalidade da avareza e do egoísmo. E lembrar que há ricos que são muito pobres de valores, de práticas muito pobres de ação. E não se resolve esse profundo défice com políticas caritativas, que em determinados momentos são importantes, do ponto de vista do socorro numa situação de grandes carências, mas que estão longe de responder aos problemas.

Isso quer dizer que quem tem o poder de decisão acaba por fazer “orelhas moucas” àquilo que o Papa Francisco insiste em denunciar sistematicamente?

Em muitos aspetos têm feito “orelhas moucas”, e tido até reações de tentativa de apoucar … uso mesmo a expressão “apoucar” o Papa. E isso deve levar-nos a pensar.

Acho que o Papa Francisco não exagera quando diz “Evangelizar implica transformar, implica incomodar, implicar mudar e mudar profundamente”. Mas gostava de relevar outros aspetos das posições do Papa Francisco, como aquele em que fala da necessidade de se agir junto dos não pobres. Os pobres não são culpados da sua pobreza, os pobres são vítimas da sua pobreza, e a ideia de que se resolve a pobreza com reforço da proteção pontual aos pobres, ou com medidas dirigidas especificamente aos pobres, é muito amputada. Acima de tudo, são os não pobres, diria até, acima de tudo, que são os ricos e os muito ricos que têm de mudar de comportamentos para que não haja pobres.

O outro aspeto que o Papa põe muito em relevo na suas mensagens em relação à pobreza e à sua conexão com a economia, é a demonstração de que a pobreza impede o desenvolvimento das sociedades. Uma sociedade não é desenvolvida se mantiver níveis de pobreza elevados. Acho que o Papa Francisco, pela conjugação das suas abordagens quando, por várias vezes, vai para o campo da análise daquilo a que ele chamou “a economia que mata” (e mata mesmo muitos e muitos milhões de seres humanos todos anos), e a necessidade que ele tem dar relevo à dignidade das pessoas.

É preciso assumirmos – e em Portugal é preciso assumirmos muito, porque os portugueses são muito condescendentes com a pobreza, temos uma noção de pobreza muito desatualizada. Há quase a ideia de que só se é pobre quando não existe um mínimo de condições materiais para as pessoas se alimentarem e sobreviverem com um certo equilíbrio. Ser pobre é muito mais do que isso.

Numa sociedade avançada, democrática, a pobreza é, por exemplo, o não cumprimento de direitos sociais fundamentais ou o ferimento da dignidade. Qualquer pessoa que está dependente de outrem não tem a plenitude da sua dignidade, é ferido na sua dignidade. Esta mensagem do Papa, de trazer o combate à pobreza para campos da cidadania social e do combate pela transformação da sociedade é um contributo muito importante.

"Evangelizar é dizer aos que se apropriam de muita riqueza que eles são os primeiros responsáveis pela pobreza"

E o que é que Francisco quer dizer com a mensagem deste ano para o Dia Mundial dos Pobres, eu se intitula “Sempre tereis pobres entre vós”?

É uma expressão profundamente ligada ao conceito de Evangelização que o Papa Francisco vem transmitindo e que incomoda muita gente, incomoda hierarquias ou partes grandes da hierarquia da Igreja.

Evangelizar, repito, na interpretação de Francisco, é transformar a sociedade, é incomodar, é dizer aos não pobres, e em particular aos que se apropriam de muita riqueza, que eles são os primeiros responsáveis pela pobreza e que é pela ação deles que a pobreza, em primeiro lugar, pode ser combatida.

E o que é que esses não pobres têm de mudar nos seus comportamentos, não tendo apenas essas atitudes caritativas de que falava?

Há duas coisas que relevo: os grandes debates são sobre a distribuição e a redistribuição da riqueza. Quem é que na produção da riqueza se apropria e impede uma melhor distribuição e redistribuição da riqueza, a apropriação indigna, a tal irracionalidade de que o Papa fala constantemente, da avareza, do egoísmo, que leva a que a riqueza se concentre e não chegue àqueles que devia chegar. Depois, é agir sobre a sociedade em concreto, e muitas vezes se chama a atenção, mas continua a não se agir em conformidade.

Grande parte dos pobres são pessoas que trabalham. Isto é absolutamente inadmissível. Há pobres por não terem acesso ao trabalho e há muitos pobres também porque aquilo que recebem de retribuição pelo seu trabalho, é muito pouco. É uma indignidade.

Os instrumentos para resolver estes problemas existem. É possível haver intervenção dos trabalhadores, nomeadamente, com instrumentos de negociação coletiva que levem à valorização dos salários, à existência de mecanismo de construção de profissões, de carreiras profissionais, de enquadramentos no mundo do trabalho que evitem que as pessoas caiam na pobreza. É possível discutir sistemas de proteção social que sejam solidários e universais e que não apenas protejam, mas deem armas aos que caem na pobreza para lutarem eficazmente.

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