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Opinião de Joana Gama

Para a rua com o Papa Francisco

02 nov, 2020 - 12:16

Os sinos dobram por cada um de nós cada vez que alguém sofre e tanto mais quanto esse sofrimento podia ter sido evitado pelo nosso cuidado e atenção e generosidade.

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Este verão, de olhos fechados a subir e a descer a Serra d’Arga, carrinha de nove lugares cheia de miúdos, a rezar para não rebentarmos um pneu ou não cairmos ribanceira abaixo, aconteceu um pequeno milagre. Enquanto o meu marido guiava ao mesmo tempo que ensinava à prole o que ele chama o cânone da música pimba portuguesa, e todos berravam “vais partir naquela estrada onde um dia chegaste a sorrir”, do Clemente, inesperadamente o Spotify tocou "Um Contra o Outro", dos Deolinda. Redescobrir essa música teve um impacto difícil de descrever e desde aí ouço-a tanto que um dos meus filhos diz que a canção subiu no "ranking" do Spotify graças a mim.

E quando leio a encíclica "Fratelli Tutti", do Papa Francisco, sobre a fraternidade e a amizade social, é na canção dos Deolinda que continuo a pensar. Com implicações políticas imensas e reafirmando o horror da guerra, da pena de morte, do racismo, do tráfico humano e de tantas outras formas de desrespeito pela dignidade humana, paradoxalmente, começa esta encíclica com São Francisco de Assis, e com a sua devoção aos mais pobres e o seu amor terno a toda a criação, e acaba lembrando o futuro santo Charles de Foucault, um padre do deserto dos tempos modernos e eremita na Argélia assassinado em Tamanrasset em 1916 (são de Charles de Foucault os desenhos no livro "No Teu Deserto", de Miguel Sousa Tavares). Invocar estes dois santos, um a abrir o outro a fechar, prende-nos ao desafio de ler a Encíclica não como um manifesto político, mas como um apelo à conversão de todos.

Os Deolinda cantam que “já não basta esta luta contra o tempo, este tempo que perdemos a tentar vencer alguém; ao fim e ao cabo, o que é dado como um ganho, vai-se a ver desperdiçámos sem nada dar a ninguém.” É a este individualismo que Francisco chama viver “um contra o outro”. Mas há ainda um outro “um contra o outro”, aquele que vem de nos confrontarmos com alguém que nos faz olhar para as nossas contradições, as nossas fragilidades, as nossas limitações e as nossas faltas de amor. É esse “um contra o outro” da canção que nos desafia e nos faz crescer ao nos “ensinar a perder”. E quando aprendemos a perder, ganhamos a liberdade de não precisarmos de ganhar.

Deus e os outros nunca desistem de te dizer que “a tua vida […] dá-te mais que o impossível se me deres a tua mão”. Esse dar a mão, esse confiar no outro, é a única coisa que importa.

John Donne escreveu em 1624 que “Nenhum homem é uma ilha, inteiro em si mesmo. A morte de qualquer homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; e por isso nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; dobram por ti”. Os sinos dobram por cada um de nós cada vez que alguém sofre e tanto mais quanto esse sofrimento podia ter sido evitado pelo nosso cuidado e atenção e generosidade. Esse cuidado pode ser difícil, mas a verdade é que, lá bem no fundo, sabemos que o que queremos não é uma vida fácil, mas uma vida com sentido. E uma vida com sentido só se faz no encontro, por isso “sai de casa e vem comigo para a rua […], que [ …] por mais vidas que tu ganhes é a tua que mais perdes se não vens.” Na rua, não há só pessoas iguais a nós, há a realidade com toda a beleza e sofrimento e tudo o mais que nela cabe. E só na rua, porque aberta e sem fim, está a verdadeira vida, com os outros - e, com os outros, o amor.

Comentários
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  • Ivo Pestana
    02 nov, 2020 Funchal 22:14
    O Dr. André Ventura que leia este artigo.

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