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frei José Luís Monteiro

“Os livros vêm ter comigo”

09 set, 2020 - 16:56

Há um padre dominicano português em França que se dedica à recolha e salvação de bíblias. Das bíblias etíopes, revestidas a madeira, às protestantes e católicas com capas feitas a partir de peles de animais, o padre que é também diretor da maior biblioteca privada de França, já perdeu a conta ao número de livros sagrados que “salvou”.

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“Esta é de 1744, uma bíblia protestante que me foi oferecida pessoalmente por amigos de Estrasburgo. Quando fui ordenado sacerdote, a 11 de março de 1990, como prova da amizade ecuménica, quiseram-me oferecer, fiquei sem palavras."

É mais uma bíblia que sai da estante privada de frei José Luís Monteiro, 60 anos, residente em Paris, no Convento da Anunciação, que trabalha na Bibliothèque du Saulchoir, como diretor da maior biblioteca dos dominicanos em França.

É uma das cinco maiores bibliotecas de ciências religiosas do país, com meio milhão de documentos, livros, pergaminhos, manuscritos, mais de 200mil imagens de devoção. Mas é em sua casa, em Portugal, na Serra da Estrela, concelho de Gouveia, que guarda algumas das bíblias que salva da destruição.

Nem todas são ofertas, algumas são compradas por valor irrisório. “Passam-me pelas mãos vários volumes. Esta é uma bíblia de 1565, uma bíblia protestante. Um encadernador, em Dijon, não sabia o que fazer com ela e vendeu-ma por 100 francos franceses, em 1994. Quis salvá-la da destruição”, revela, explicando os motivos que o levam a recolher os livros sagrados: “A Bíblia é a palavra de Deus. Um cristão deve salvar um texto antigo."

José Luís, entrado na Ordem Dominicana em 1983, segura, agora, nas mãos uma bíblia católica do séc. XVII (1662) que podia ter ido parar ao lixo. “Os franciscanos da cidade de Ville Urbane fecharam o convento, porque não havia frades suficientes. A biblioteca foi dispersa e é sempre uma tragédia quando isso acontece. Solicitaram a diversas comunidades religiosas para lá ir buscar livros e esta estava no chão, num dos recantos: uma bíblia com a contracapa queimada. Um dos frades disse-me que, se calhar, ia para o lixo. Eu olhei e pensei: 'Como? Claro que a quero. É uma bíblia, é impossível deitá-la fora". Agora, vou proceder à sua restauração”, conta.

O sacerdote chama a atenção para a surpresa que já encontrou: a contracapa queimada escondia um pergaminho, "uma pele de cabrito que foi reutilizada para fazer a capa, talvez muito mais antiga que a própria bíblia. Estes pergaminhos podem conter informações de grande valia”.

"O homem com quem os livros vão ter"

“Um voluntário da Bibliothèque du Saulchoir diz-me que parece que os livros vão ter comigo. Sim, é verdade, interesso-me por eles e eles interessam-se por mim, não sei”, sorri.

Não é, por isso, de estranhar que no dia 15 de abril de 2019, data em que deflagrou o incêndio na Catedral de Notre-Dame de Paris, frei José Luís não conseguisse ficar no quarto. “Fui imediatamente para lá. Vivi aquela dor, com milhares de jovens a assistir. Houve um ou outro quadro destruído, mas recuperaram o Tesouro da Catedral, assim como o Santíssimo Sacramento. Era na sacristia que estava a coroa de espinhos de Jesus e que expõem uma vez por ano na Semana Santa, também foi salva”, recorda.

O padre dominicano, responsável da Bibliothèque du Saulchoir, a residir em França desde a década de 80 do século passado, acaba de lançar mais um livro a juntar às dezenas de obras e traduções da sua autoria. "Que nada se sabe" saiu para as livrarias recentemente, editado na Editora Paulinas. Junta poemas inéditos com várias referências a Gouveia e à sua região. O livro é prefaciado pelo ensaísta português Miguel Real, que tem uma crónica de resenhas regular no "Jornal de Letras Artes e Ideias".

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