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Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos denuncia ascensão no sistema penal da "via punitiva"

26 nov, 2019 - 14:59 • Henrique Cunha

“Discurso populista" granjeia "mais simpatia da comunidade", justifica Almeida Santos. Por ocasião da celebração dos 50 anos da OVAR, o presidente diz que "há necessidade de fazer uma grande campanha pedagógica de prevenção do crime" e defende a criação na Diocese do Porto de um secretariado da pastoral penitenciária.

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São 50 anos dedicados à vida nas prisões. Esta quarta-feira, a Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (OVAR) celebra 50 anos de existência.

A instituição da Diocese do Porto que em 2018 recebeu o Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República garante que “não há vivência cristã nas prisões” e pede a criação de um secretariado da pastoral penitenciária.

O presidente da OVAR garante que a sociedade está infelizmente novamente a "colocar na ordem do dia a via punitiva", o que na sua opinião "contraria a grande linha orientadora de Jesus Cristo, que tem no Papa Francisco um grande seguidor".

Almeida Santos diz que o sistema penal português é demasiado punitivo, garantindo que "Portugal tem o maior tempo médio de cumprimento de pena da União Europeia". Em entrevista à Renascença, revela que em Portugal "um recluso cumpre em média 32 meses de prisão” e que “a média da União Europeia é de oito meses".

Denunciando uma aparente contradição, o responsável lembra que os turistas procuram Portugal por ser "um país seguro" e que depois "se encarcera as pessoas quatro vezes mais que a média da União Europeia".

Nas palavras de Almeida Santos, "infelizmente tem havido um discurso populista que apela ao encarceramento, porque é uma via que granjeia mais simpatia da comunidade". "A violência gera violência, o tempo excessivo de prisão gera revolta em quem está preso", afiança, o que prejudica as condições de ressocialização: isso origina que Portugal "tenha das maiores taxas de reincidência da União Europeia, com mais de 50 por cento dos reclusos a voltarem à prisão":

Almeida Santos defende que o que deve motivar qualquer católico é ouvir "não para castigar, não para censurar, mas para ajudar e para aplicar na prática os dois pilares da Igreja Católica: o perdão e a misericórdia". O responsável sustenta que o "grande problema que se coloca nas prisões é o de que não há vivência cristã" e, portanto, "a Igreja tem uma grande responsabilidade de levar a vivência cristã às prisões", aumentando a "sensibilidade de toda a comunidade para o problema prisional".

"Há necessidade de fazer uma grande campanha pedagógica de prevenção do crime", frisa, recordando que a OVAR "está a atuar numa fase em que o crime já foi cometido" e o que a Igreja tem de fazer é "uma grande campanha de prevenção do crime, de desviar as pessoas da via da delinquência".

É neste contexto que Almeida Santos defende a criação de um secretariado diocesano da pastoral penitenciária, que "sensibilize os fiéis e os párocos da Diocese para esta questão da criminalidade, no sentido de diminuir o número de crimes, diminuir o número de vítimas e diminuir o número de reclusos". Para o Presidente da OVAR, “a Igreja tem um papel importante a desempenhar”: “Apelo a que todos criemos na nossa Diocese uma pastoral penitenciária diocesana e que toda a comunidade seja sensível e apologista de que a via para uma sociedade em paz e em concórdia é a via do perdão e da misericórdia".

A realidade da OVAR

De acordo com Almeida Santos, a OVAR tem neste momento “16 voluntários, ainda que quatro já estejam, devido à idade e a problemas de saúde, fora do ativo”. “A grande dificuldade é sempre conseguir fazer passar junto dos reclusos e junto da comunidade esta mensagem, de que não é pela punição que nós diminuímos o número de crimes, mas é pela correção do comportamento que levou à via do crime”.

“Outra grande dificuldade é ter pessoas empenhadas neste trabalho, que exige uma grande persistência”, sublinha. Almeida Santos recorda que “não se pode gerar uma expectativa num recluso e depois na semana seguinte não se ir visitá-lo”. O trabalho “tem que ser continuado”, o que obriga a que o voluntariado nesta área "muitas vezes prejudique a família e compromissos profissionais”.

Almeida Santos revela que “tendo em conta que este trabalho exige um tempo muito grande destinado a cada recluso", normalmente não se consegue acompanhar "mais do que cinco ou seis de cada vez”, porque “exige muito tempo para se criar empatia, para que depois se estabeleçam laços que sejam frutíferos”. “Isso leva a que mesmo que nós dediquemos três ou quatro horas por cada visita semanal que façamos aos estabelecimentos prisionais, não conseguimos estender a nossa acão por mais reclusos”, explica.

Num aparente paradoxo, o presidente manifesta a vontade de que a instituição a que preside acabe e explica o seu ponto de vista, recordando que a OVAR foi homenageada por um "evento internacional", o Terra Justa - Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade. As instituições que são homenageadas normalmente depositam uma mensagem para ser lida daqui a 25 anos e Almeida Santos confidenciou à Renascença que a mensagem deixada foi a de que “daqui a 25 anos não haja prisões em todo o mundo".

Isto não significa, assegura, “falta de sensibilidade perante as vítimas”. Almeida Santos refere que o que se pretende é que “não haja novas vítimas” e, portanto, o trabalho a fazer é de "ressocialização dos reclusos" para que eles "não voltem a cometer crimes, ajudando-os a eles e às suas famílias e tentando fazer com que a sociedade os acolha quando eles saem em liberdade”.

Uma ideia conciliadora nas prisões

António e Manuel – nomes fictícios – falaram à Renascença da importância que a OVAR teve no período das suas detenções.

Manuel passou 10 anos em dois estabelecimentos prisionais do Porto e, “num meio em que se desconfia de tudo e de toda a gente e em que tudo é suspeito", a presença de figuras como Almeida Santos marcava a diferença, porque traz "outra atitude e outro tipo de conversa e era confiável e amistoso".

Uma ideia conciliadora levada às prisões que, para António, se revelou de “uma importância extrema por levar conforto, carinho e mesmo uma palavra amiga a quem está privado de liberdade”.

A visita quase semanal dos voluntários da OVAR ganha outra dimensão para António. Neste testemunho, o ex-recluso desabafa, afirmando que, uma vez ultrapassados aqueles portões se passa "a ser pura e simplesmente um número, muitas vezes não respeitado”. “Os direitos humanos são espezinhados, a reinserção social não funciona de maneira nenhuma", acrescenta.

O antigo recluso afirma que “há guardas que não respeitam os prisioneiros” e pede que se investiguem “os concursos de fornecimento de refeições aos estabelecimentos prisionais”, assim como devem ser auditados os serviços de fornecimento de medicamentos aos estabelecimentos prisionais porque "funcionam muito mal".

As comemorações dos 50 anos da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos realizam-se na sede do Conselho Central do Porto da Sociedade de São Vicente de Paulo, para onde está prevista uma sessão solene com início às 15h desta quarta-feira.

O Bispo do Porto, D. Manuel Linda, preside, às 18h, na Capela de Nossa Senhora da Boa Hora de Fradelos. à Eucaristia de Acção de Graças pelo quinquagésimo aniversário da instituição.

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