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Domingo sem padre. Quando são elas a assumir a palavra na Igreja

26 nov, 2019 - 13:00 • Liliana Carona

Dulce Fernandes e Marília Ferreira são ministras da Palavra e da comunhão. Mas o serviço não fica por aí. Em Carvalheda, Dulce até já celebrou batizados, e veste e vela os mortos.

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“Venho daí da sacristia, geralmente entro por aqui, e subo aqui, atrás do altar, mas sem me sentar na cadeira do padre”, descreve cuidadosamente Dulce Fernandes, de 79 anos, natural de Carvalheda, concelho de Celorico da Beira. Ali nasceu e ali vive mesmo ao lado da capela que todos os dias visita.

Dulce Fernandes foi a primeira mulher ministra da comunhão a surgir na diocese da Guarda. Continua a descrição da rotina que acontece uma vez por mês. “Há uma pessoa que faz o cântico de entrada, temos as leituras que estão marcadas e depois eu chego aqui e faço de contas que sou o senhor padre e digo: ‘Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, Irmãos para celebrarmos dignamente os santos mistérios reconheçamos que somos pecadores’.”

Dulce procura o que vai dizer no Missal Romano, o livro que a guia em todas as celebrações da palavra e não missa, corrige Marília Ferreira, 47 anos. Marília é outra das mulheres que é também ministra da comunhão e da palavra. Em Mesquitela é a sua voz feminina que faz eco na igreja paroquial. A professora do primeiro ciclo, solteira, está presente a um domingo à hora da missa, mas que hoje não é missa.

“Uma vez por mês faço a celebração da palavra. Nós temos uma vocação e somos chamadas a ser mais, eu tenho a minha profissão, mas sinto-me chamada”, revela a também catequista de um grupo de alunos do 10º ano.

O papel das mulheres na celebração da palavra e enquanto ministras da comunhão é literalmente aplaudido, garante Marília que viveu um episódio que a deixou comovida. “Sinto-me muito acolhida, da primeira vez estava tão nervosa e as pessoas bateram-me palmas no final. As pessoas não fazem distinção se é eucaristia ou celebração da palavra”, defende, referindo ainda que quando faz a celebração da palavra, pede que “as pessoas se lembrem que Deus esteve e que se esqueçam que eu estive”.

A ministra da comunhão de Mesquitela diz usar linguagem acessível e prepara-se antes em casa, para não falhar. Já na igreja paroquial da Mesquitela, percebe que a presença de crianças se deve ao facto de ser catequista e impulsionar essa mesma participação.

“Não há casa onde não tenha ido vestir um morto”

Entretanto o sino da capela da Nossa Senhora das Necessidades, na Carvalheda, anuncia que Dulce Fernandes, casada, mãe e avó vai iniciar a celebração da palavra e não só.

Antes, Dulce muda o vestido da Nossa Senhora das Necessidades. “É uma Nossa Senhora vestida de Graça, ou seja, tem vestidos próprios e não é de barro.” Abre um armário onde aponta para um vestido verde oferecido por um fiel.

Já a mãe de Dulce tomava conta das coisas da capela e Dulce assume “estar a tentar sair disto" porque está quase com 80 anos, "mas não há ninguém que queira compromissos”, lamenta. Dulce, professora reformada do ensino primário, segue o Missal Romano e sabe que há partes que são exclusivas ao sacerdócio. “Há aqui uma parte que não posso fazer. O padre é que faz a homilia e eu só leio aquilo que o padre Manuel Martins me manda. Mas não posso dizer a parte da consagração: ‘tomai todos e comei’. Faz-se tudo o que se faz numa missa, menos a consagração”, descreve Dulce, que está sempre atenta, 24h por dia, aos cerca de 200 habitantes de Carvalheda.

“Tenho feito tudo o que posso, tanto no aspeto religioso como no humano, ajudado os doentes, os que morrem nos meus braços, os pais a quem assisti à morte, porque os filhos não podiam estar presentes, acho que não há nenhuma casa onde eu não tenha ido vestir um morto”, diz, desvendando o seu percurso na Igreja, realçando que “antigamente ia a casa buscar roupa para vestir alguns, porque havia muita pobreza. Tenho tido cruzes muito pesadas e a minha fé tem me ajudado muito”, garante.

Dulce recorda como foi convocada a assumir um papel de maior destaque na Igreja. “Há 35 anos morreu o senhor padre daqui e depois fui consultada pelo bispo da Guarda a dizer que precisava de uma substituta e eu fui a primeira ministra da comunhão desta diocese. Com a deficiência da falta de padres, assumi este papel”, conta, acrescentando que na altura quando aceitou o desafio “não sabia se gostava, se não gostava, tínhamos ficado sem padre, era preciso agir”.

Dulce arruma os paramentos do padre Manuel Martins, responsável por aquela paróquia e aproveita para sublinhar que ela não veste nada em especial para a celebração da palavra e que “o sr. padre Manuel Martins está duas vezes por mês, num dia normal de semana, para rezar missa por alma das pessoas que quiserem encomendar”.

População aplaude trabalho das ministras da comunhão

A população, dos mais velhos aos mais novos, homens e mulheres, não fazem distinções quando veem atrás do altar uma mulher. Manuel Almeida, 87 anos, afirma que “não faz diferença, não há padres para dizerem a missa, têm que dizer as mulheres”.

Também Elisa Ascensão, 70 anos, partilha dessa opinião e observa que “as mulheres são mais ativas na vida religiosa. A Dulce, por exemplo, foi educada na religião, criada por um tio padre, está muito bem entregue a Igreja a ela, em acabando a minha geração a juventude não se interessa”.

Entre os mais novos, Ângelo Freitas, 14 anos, relembra que Dulce “andou com ele ao colo”. “As mulheres fazerem celebração da missa é igual aos homens, não vejo diferença, a Dulce andou comigo ao colo, é a mesma coisa quando é ela ou o padre”, enaltece, ignorando o facto de não se tratar de missa, mas apenas de celebração da palavra.

Apesar de nem Dulce, nem Marília se sentarem na cadeira da presidência, que só é ocupada pelo sacerdote, as duas ministras da palavra e da comunhão têm lugar na Igreja. “Muitas terras têm o sacristão, mas nestas terras são as mulheres que arranjam os altares, as capelas, não há homens metidos nestas coisas, não sei porquê”, reflete Dulce, chegando à conclusão que “eles não podiam viver sem as mulheres, dizem que são o sexo forte, mas nenhum se orientava”, sorri numa teoria corroborada por Marília. “A igreja sempre foi muito de homens, mas muito apoiada por mulheres. Acho que há lugares para todos e não sinto que haja distinção”, conclui.

É com sustentação nas palavras do Papa Francisco, que D. Manuel Felício aplaude o papel das mulheres na diocese da Guarda. “Ainda na semana passada, ao Plenário da Congregação dos Leigos e Família, o Papa dizia que é urgente acolher a especificidade da mulher, não só porque são mais, participam mais e sem elas alguns serviços ficavam sem ocupação, mas porque a mulher tem uma forma própria de encarar a vida, de estabelecer relações. E então ele dizia que temos que chamá-las até lugares de responsabilidade. E alguém lhe perguntou: ‘Também pode presidir a um dicastério em Roma? Porque não?' Há mulheres em serviços muito concretos no Vaticano, por exemplo no dicastério da economia, onde há inclusivamente uma portuguesa bem situada, que é do Porto, professora da Universidade Católica”.

“Fiquei agradado com esta intervenção do Papa”, recorda o prelado da diocese da Guarda. Para D. Manuel Felício “estamos longe de aproveitar devidamente o específico do ser mulher com as características que tem, com bens que só elas possuem e que infelizmente têm sido esquecidos durante muito tempo”, lamenta.

Sobre a formação para os ministros extraordinários da comunhão, a partir dos quais se recruta ministros da palavra e coordenadores das assembleias de domingo na ausência do presbítero, D. Manuel sublinha que este “é um dos serviços que deram passos significativos na diocese. Temos mais de 1.000 ministros da comunhão, a maioria são mulheres, elas têm uma capacidade muito própria de congregar e reunir e a afetividade tem de estar presente”, valoriza e acrescenta, “no caso da Dulce, sem dúvida que reconheço o seu papel, até porque ela foi uma das primeiras a quem foi confiado este serviço, foi muito acompanhada e isso habilita-a de uma forma especial”.

E a Marília? “Conheço-a muito bem e ocupa devidamente o seu lugar, ela não é excluída de nada, é acolhida em tudo aquilo para que tem competência e felizmente tem competência para muita coisa. Por exemplo, agora nas Jornadas Mundiais da Juventude, há serviços específicos que lhe estão confiados, se fosse eu a desempenhá-los, não os desempenhava bem”, refere.

Fazer o que os padres faziam, mas não deviam

A integração das mulheres nos mais diversos âmbitos da Igreja faz parte de uma iniciativa mais abrangente, explica o bispo da diocese da Guarda. “Estamos a fazer um esforço que inclui alguma novidade, que é: estes serviços não têm que ser só daquela comunidade, podem ser prestados num espaço mais alargado e neste esforço de reorganização pastoral que estamos a fazer na diocese, vamos pedir aos ministérios todos que eles possam também prestar o seu serviço em espaços mais alargados, devido à diminuição das populações. E tem que ser assim, porque há falta de padres, mas também porque o número de pessoas o exige”, relata.

Sobre a falta de padres numa diocese que tem 90 párocos ativos de um total de 130 sacerdotes, D. Manuel Felício assume que “é um problema real, mas muitas coisas que os sacerdotes faziam, deviam ser feitas por outras pessoas. São menos, dirigem-se ao essencial deles e que haja outras pessoas, como a Dulce e a Marília, que vão completando aquilo que os padres faziam e não devem fazer, para se dedicar ao essencial e é assim que se constrói uma verdadeira comunidade.”

“A comunidade só se constrói quando há lugares para todos, agora quando um ou poucos fazem tudo, estamos a asfixiar a comunidade. Tem que se dar espaço a todos e cada um deve intervir de acordo com as suas características”, realça.

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