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Sínodo da Amazónia

"O grande perigo são os extremos na Igreja"

30 out, 2019 - 18:20 • Ângela Roque

Em Portugal para uma série de conferências sobre o Sínodo, que acompanhou no Vaticano, o padre Júlio Caldeira, dos missionários da Consolata, falou à Renascença sobre as conclusões e a pressão dos que receiam a mudança. Diz que todas as propostas resultam de "vivências próprias da Igreja na Amazónia" e que agora é tempo de avançar.

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Júlio Caldeira, de 39 anos, é missionário da Consolata. Natural de Paraíba do Sul, no Estado brasileiro do Rio de Janeiro, passou os últimos nove anos entre a Colômbia, o Perú e o Equador, país onde trabalhou com os povos indígenas em Sucumbios. Atualmente vive em Bogotá. Dirige a revista ‘Dimensión Misionera’, e faz parte da equipa de comunicação da REPAM, Rede Eclesial Pan-Amazónica.

No último mês esteve no Vaticano a assegurar a cobertura jornalística do Sínodo. É dessa experiência que veio falar a Portugal, até 2 de novembro, numa série de conferências (as próximas este dia 30, às 21h30, na paróquia do Parque das Nações, em Lisboa, e dia 31, às 21h, no Centro Missionário Allamano, em Águas Santas, Maia), num encontro com estudantes (dia 31, no Colégio Pedro Arrupe, em Lisboa), e também nesta entrevista à Renascença.

Acompanhou de perto a preparação e a realização do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia. Correu como esperava?

Sem dúvida. O Sínodo é acima de tudo um processo de caminhar juntos, e esse caminho já vinha sendo feito há dois anos, não foi um evento agora da Igreja.

Houve um grande envolvimento das comunidades na preparação do Sínodo?

Houve. Para se elaborar o Instrumento de Trabalho foram realizados mais de 280 eventos na Pan-Amazónia, nos nove países amazónicos, e em outros lugares. Portanto, o Sínodo cumpriu as expetativas nesse sentido, porque os representantes que foram ao Vaticano já estavam a par de toda a temática, e foram ajudados pela participação de muitos povos, muitos indígenas que estiveram presentes na sala sinodal. Isso, juntamente com as muitas mulheres que estiveram presentes, muitos líderes, muitos professores universitários, todos ajudaram nesta reflexão.

Uma coisa que eu destaco do Sínodo é que não foi feito só dentro, do lado de fora decorreu o grande evento "Amazónia - Casa Comum', onde se ouviram as vozes da Amazónia, aquilo que se estava a discutir dentro do encontro também estava a apresentado na parte de fora pelos indígenas, povos amazónicos, para ajudar a Igreja a compreender que este é um caminho que vamos fazendo juntos.

Desta vez foram as periferias que foram até Roma?

E essa parte foi significativa, desde as orações, as celebrações, mostrar esse rosto amazónico que tem as suas tradições, os seus ritos, a sua maneira de celebrar dentro da fé católica, que nos ajuda de verdade a viver intensamente a nossa fé. Um rosto amazónico que é importante que reconheçamos.

As mudanças propostas pelo Sínodo não vão ser imediatas, muitas delas...

Não.

E algumas até ficaram um bocadinho aquém do que previa o Instrumento de trabalho.

É verdade.

A ordenação de homens casados e a abertura do diaconado às mulheres foram os temas mais mediatizados, mas são na sua opinião os mais importantes?

É importante reconhecer que o que foi proposto no Sínodo já são vivências próprias da Igreja na Amazónia. A Amazónia é 80 vezes maior que o território de Portugal, é uma imensidão, as distâncias são enormes, são dias de viagem para chegar a alguns lugares. Tem de se compreender o contexto para falar dessas propostas, para perceber os ministérios que são necessários para a vida da Igreja na Amazónia e algumas práticas que a Igreja católica já lá tem.

Quando se fala de homens casados – e o documento fala em 'homens idóneos’ que possam ser ordenados sacerdotes e reconhecidos na comunidade, que já tenham vivido um diaconado permanente e fecundo -, são práticas que já existem. Por outro lado é importante reconhecer a participação da mulher, porque muitas das comunidades já são levadas adiante pelas mulheres. Então, o que se pede agora é que que se reconheça ministerialmente essa força que a mulher tem na Amazónia, e imagino que noutros locais. Por isso o documento pede que se retome o estudo que já se vem fazendo desde 2016 sobre o diaconado feminino.

O Papa já decidiu que vai reabrir a Comissão sobre o diaconado feminino.

É um avanço. Porque é necessário que a Igreja dê esse passo mais. Não só pela questão da igualdade de género, mas porque deve reconhecer o papel forte que a mulher tem na sociedade, e na Igreja esse papel deve ser reconhecido também diante das demais organizações.

O Papa quer uma Igreja mais sinodal, que caminhemos juntos, discutamos juntos, sejam os leigos, os sacerdotes, os bispos, e até pessoas de fora. E neste Sínodo também estiveram representantes de outras confissões religiosas, alguns povos indígenas que nem católicos são, mas que nos ajudam com a sua visão a pensar a nossa presença de Igreja.

Houve propostas concretas para o futuro da vida da Igreja, e outras relacionadas com o ambiente e o respeito pela natureza. Pela experiência que tem no terreno, na Amazónia, acredita que haverá mudanças?

A Amazónia tem um terço dos bosques primários do mundo, e 20% da água doce do planeta que não está congelada. E os povos indígenas na sua história são mestres que nos ensinam como conviver em harmonia com a natureza. Então, a gente acredita que as propostas que saíram do Sínodo irão ajudar a pensar a ‘ecologia integral’ - o conceito que o Papa Francisco lançou na 'Laudato Si' - , que de certa maneira já vai sendo vivida pela Igreja há muitos anos, com uma preocupação não só pelo meio ambiente, mas pelas pessoas que vivem nesse ambiente.

Na Igreja há sensibilidade para estas questões. Mas, estas conclusões do Sínodo também podem ajudar a sensibilizar os políticos, os empresários, quem influencia a vida das pessoas com as suas decisões?

A ideia é justamente essa. E participaram no Sínodo cidadãos de países que também estão a pensar a sua relação com toda a Amazónia. Nós costumamos dizer que uma selva sem a outra não tem solução, ou seja, não é só pensar na Amazónia lá, é preciso pensar que as decisões que outros países tomam, na Europa, na América do Norte, e em outros lugares, afetam a situação lá, e têm de se fazer acordos para ajudar a preservar aquele que é chamado o 'pulmão do mundo'.

O Sínodo propôs criar um ‘fundo internacional' que ajude a manter essa estrutura. Mas a mudança começa por cada um.

"A nossa grande tarefa agora, e é a parte mais importante desse caminho sinodal, é o pós-sínodo. Como implementar essas decisões? Como continuar essa reflexão? Porque se pede aqui muitas coisas à Igreja. Agora de que maneira vão ser implementadas? Porque isso vai mexer com muitas pessoas, com muitas organismos e organizações"

A Amazónia é a maior província mineral do planeta, tem muitos interesses à sua volta, e temos que começar a pensar - o que a gente está fazendo nas grandes cidades? Muitos desses materiais estão vindo de lá. Como é que podemos diminuir o consumo de certas coisas? É preciso consumir conscientemente, não deitando coisas fora, como a comida. Só nos Estados Unidos o que se desperdiça de comida daria para alimentar mais da metade da população da África!

Tudo começa por tomarmos consciência e mudar os nossos hábitos. É a nossa conversão integral. Tenho de começar por mim, e depois chegar à parte política.

Como é que estas conclusões do Sínodo vão ser agora levadas até ao terreno nos vários países que a REPAM integra? Já há alguma estratégia pensada?

A REPAM é a Rede Eclesial Pan-Amazónica que junta os nove países que têm território amazónico. São 103 jurisdições eclesiásticas, mas esta rede procura ser uma fonte de unidade. A REPAM tem alguns eixos de trabalho que são muito fortes, entre eles com os povos indígenas, os grupos vulneráveis que moram na Amazónia. Essa vai ser uma linha de trabalho. Por outro lado a questão dos direitos humanos, pensar alternativas ao modelo de desenvolvimento que temos a partir da própria prática que os povos indígenas e amazónicos já têm. Porque é preciso sublinhar que muito do que está escrito aqui não é uma novidade, foi justamente o que se vive lá que foi colocado no documento.

A nossa grande tarefa agora, e é a parte mais importante desse caminho sinodal, é o pós-sínodo. Como implementar essas decisões? Como continuar essa reflexão? Porque se pede aqui muitas coisas à Igreja. Agora de que maneira vão ser implementadas? Porque isso vai mexer com muitas pessoas, com muitas organismos e organizações.

E com muitos interesses.

Também. Devemos ter, como fazem os povos indígenas, uma atitude de diálogo. Se eu penso diferente de você, sentemos juntos, vamos conversar e ver como chegar a um acordo para que isso possa ser levado adiante, na prática.

É preciso esperar pela Exortação pós-sinodal do Papa, que tudo indica será publicada até final do ano. Isso pode querer dizer que o Papa entende que não há tempo a perder?

Lógico, ele disse 'o tempo é agora', a gente tem que começar a tomar decisões práticas, porque o planeta já está chegando a um nível que a gente tem medo que seja irreversível.

A gente nem sabia ainda se o documento final do Sínodo ia ser publicado ou não, e o Papa disse 'que se publique de uma vez', e depois anunciou que tinha tomado a decisão de publicar uma Exortação Apostólica até dezembro, ‘se tiver tempo’. Isso até nos fez rir a todos, porque na prática o Papa já pôs como algo que vai ser realizado e que nos ajudará a ter essa Igreja amazónica dentro do contexto universal. Não é que a gente vá criar uma nova Igreja. Às vezes o grande questionamento é este 'ah, então vai ser uma Igreja diferente?'. Não. É a própria Igreja Católica com um rosto diferente, como viver essa unidade da Igreja numa diversidade também, a partir de ambientes culturais, socioambientais, sociopolíticos que são diferentes do que se vive na Europa ou em outras partes.

"A gente pensa que é tudo igual, que são aborígenes ou indígenas, mas na Amazónia vivem mais de 390 povos diferentes, que falam 240 línguas diferentes. São 390 culturas diferentes, não se pode querer unificar"

Mas tem havido grande resistência à mudança. Houve críticas que se fizeram ouvir antes, durante e já depois do Sínodo. Receia que o movimento de contestação possa crescer na Igreja?

Na mesma família a gente pode pensar diferente, e atua muitas vezes diferente. E a diferença nos faz crescer juntos, desde que a gente tenha a capacidade de dialogar. O grande perigo são os grandes extremos da Igreja. Por um lado os extremistas ultraconservadores, que querem manter as coisas, dizem ‘sempre foi assim’, não se pode mudar nada, porque assim é a tradição. E por outro lado aqueles que querem que mude tudo. Como é que a gente pode chegar num equilíbrio?

Os extremos dificultam o diálogo. Vivemos isso fortemente isso durante o Sínodo, alguns grupos extremistas quiseram, inclusive, intervir em muitos momentos no Sínodo, criar confusão, distrair das grandes discussões que estavam a ser feitas. Foi bonito ouvir o Papa no final dizer que se deve partir da tolerância, do reconhecimento do outro como irmão.

Está em Portugal por estes dias para dar algumas conferências, na sequência do Sínodo. Tem sentido interesse em relação a este acontecimento na Igreja?

Sim, as pessoas fazem muitas perguntas, e não apenas católicos. Há interesse em saber mais sobre a realidade na Amazónia, sobre o Sínodo. Claro que a grande pergunta é esta 'E a Amazónia? Está tão longe daqui de Portugal'. Tem de se pensar que muitas situações que se passam lá vão ter consequências em Portugal, como a questão do ciclo da chuva que chega aqui.

Tenho falado da diversidade cultural da Amazónia. A gente pensa que é tudo igual, que são aborígenes ou indígenas, mas na Amazónia vivem mais de 390 povos diferentes, que falam 240 línguas diferentes. São 390 culturas diferentes, não se pode querer unificar. Devemos pensar de que maneira podemos reconhecer a diversidade, porque isso também se passa aqui em Portugal e na Europa, com a crescente onda de imigração. Como olhar para essas pessoas que chegam não como inimigos, mas como irmãos, pessoas, seres humanos como nós, e como podemos estabelecer um diálogo para o bem do mundo, para o bem da sociedade, do planeta, dessa 'Casa Comum', como tem insistido o Papa Francisco.

As conclusões do Sínodo também apontam para a importância do diálogo intercultural.

E do diálogo interreligioso. Se temos preconceito em relação a outras religiões, a outros povos, vai ser muito difícil estabelecer um diálogo. Não busquemos as coisas que a gente trata como mal, mas busquemos as coisas em comum que nos ajudam a viver. Esse foi o grande ensinamento, no nosso caso, que Jesus nos trouxe, e devemos trabalhar por um mundo melhor, para que os povos tenham vida e vida em abundância. Esse é o princípio dos povos indígenas, o bem viver e a vida em abundância. Na proposta de ecologia integral o Sínodo também ajudou a avançar num pensamento forte da Igreja, o de que o pecado não é só um pecado moral, mas que existe o 'pecado ecológico'.

É uma das novidades do documento.

E esse pecado ecológico faz-nos pensar que a minha ação ofende a Deus, as outras pessoas, ofende a natureza. O Papa lembrou uma vez que Deus perdoa sempre, o ser humano às vezes, mas a natureza nunca. O que fazemos vai ter consequências. Não é ficar desesperado, mas pensar que estamos a fazer um caminho juntos. Podemos tropeçar, mas há sempre um irmão, outra pessoa que está ao nosso lado e nos ajuda a levantar e a caminhar.

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