09 mai, 2019 - 23:10 • Ana Catarina André
A relação com o divino sempre foi natural e, por isso, nunca encarou fé e ciência como realidades incompatíveis. Henrique Leitão, professor universitário, investigador e vencedor do Prémio Pessoa 2014, considera mesmo que “se trata de uma tensão artificial, senão até de um mito”. “Nunca senti a relação com Deus com uma coisa que me apertasse, estrafegasse, ou limitasse as possibilidades da vida”, disse à jornalista Maria João Avillez, no âmbito da iniciativa ‘E Deus nisso tudo’, que decorre todas as semanas, na Igreja do Campo Grande, em Lisboa.
"A fé é uma coisa dinâmica. Vive da tensão interna da dúvida. Não é uma equação matemática”, garante o historiador de ciência. E explica: “A equação matemática oferece uma certeza, mas uma certeza que está morta. A fé não dá esta certeza, mas em retorno dá uma coisa viva.”
Ainda que, na cultura atual, haja uma “mentalidade dominante que diz que não há sobrenatural”, no momento em que “há a possibilidade de falar a sós com uma pessoa isto termina”. “Quando se toca no humano, o que se encontra não é uma espécie de uma certeza soberba, arrogante, óbvia de que temos a posse da compreensão do mundo na mão e de que existe só esta matéria sem sentido, sem destino, sem nenhum nexo, e de que tudo o que seja Deus é projeção de desejos, expressão de medo, temor da morte, o que seja”, disse.
“Acreditar em Deus mais ou menos toda a gente acredita. É a parte fácil. O problema do cristianismo, o ponto onde incide mesmo, que o torna difícil, é o facto de ser um Deus que nos ama incondicionalmente.” Trata-se, segundo Henrique Leitão, de um Deus que “estabelece uma relação pessoal connosco” de uma tal intensidade “que as nossas falências e asneiras não contam”. E afirma perentório: ”Este é o momento que nos põe de joelhos”. O momento em que a vida muda, acrescenta. “Quando a pessoa se dá conta disto, cai em si de espanto e de admiração. Olha para si, para Deus, para os outros de outra maneira. É obrigado a mudar a vida, não como uma imposição, não como um código moral que surge a dar determinações, mas porque simplesmente – diante disto – não pode não se esforçar por viver de outra maneira.”
A descoberta de Pedro Nunes
Filho de uma professora de história e de um oficial da marinha, que lhe mostraram que a “relação com Deus estava ligada a um sentido geral de seriedade para com a vida”, Henrique Leitão acumulou, desde cedo, o gosto pelas ciências e pelas humanidades. “Quando estava a fazer o mestrado em física, começou a ficar claro que fazer uma carreira só científica, não chegava”, contou, revelando que a transição para as ciências sociais começou aí. “Frequentei cadeiras de filosofia, comecei a ler história de uma maneira muito séria – por causa do ambiente que tinha em casa, sabia o que tinha de ler – e fui aprender línguas antigas (latim e grego), enquanto fazia física teórica.” Foi assim que chegou à história da ciência. “Eu não tinha plano nenhum. Fazia isto por compensação intelectual”, disse.
Um dia, abriu uma obra de Pedro Nunes e percebeu que “era um grande génio científico”. “Fiquei espantadíssimo como é que um matemático de há 500 anos me podia impressionar com o seu brilho intelectual como os maiores matemáticos e físicos do tempo atual”, recordou, explicando que “foi aí que tudo se conjugou” para conduzi-lo à investigação a que se tem dedicado nos últimos 20 anos.
Ao longo da carreira, o investigador e professor da Faculdade de Ciências, da Universidade de Lisboa, recebeu vários galardões, entre os quais o Prémio Pessoa. “Na vida académica, as distinções são sempre resultado de um trabalho coletivo – e não estou a dizer isto para ficar bem. A única coisa que reclamo para mim é que sou capaz de detetar talento. Tenho-me rodeado de pessoas invulgarmente boas.” Recentemente ganhou uma prestigiada bolsa de dois milhões de euros, atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação, para estudar os primeiros roteiros de navegação portugueses e espanhóis.
Fazendo um balanço do seu percurso, não tem dúvidas do papel exercido pelo cristianismo. “Não seria quem sou sem a Igreja”, assume. “Qualquer um de nós, quando olha para trás, reconhece que há uma espécie de desproporção total entre aquilo que conquistámos e a forma que a nossa vida tomou. Acho que isto é óbvio: a família onde se nasceu, a saúde que se tem, a mulher que se encontrou na vida. Quem é que diante disto comete a loucura de dizer que tem a vida na mão, que possui a vida e a faz, quando o que a nossa própria história revela é o oposto disto?”
A próxima conversa – com o deputado do Bloco de Esquerda, José Manuel Pureza – terá lugar na quarta-feira, dia 15 de Maio.