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Bispo das Forças Armadas

“Não ouvi queixas dos militares. Apenas revelações de transformação interior”

07 mai, 2019 - 08:24 • Ana Rodrigues

O bispo das Forças Armadas, D. Rui Valério, visitou os militares portugueses em missão na Republica Centro-Africana. Em entrevista à Renascença, D. Rui Valério fala das impressões que recolheu do contacto junto dos militares e das populações locais, "pessoas de fé".

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Regressado, recentemente, de uma visita aos militares portugueses na Republica Centro-Africana, o bispo das Forças Armadas, D. Rui Valério, admite que a deslocação aquele território em guerra foi muito emocionante.

Em entrevista à Renascença, D. Rui Valério fala da grande admiração que sente pelos militares portugueses e de como sentiu que a sua presença foi importante para aqueles homens e mulheres que ali estão a trabalhar pela paz.

Depois de São Tomé e Príncipe, seguiu-se a República Centro africana. Tendo em conta que se trata de um país em guerra, como é que correu esta visita às forças portuguesas?

Antes de mais, ficamos impressionados pelo otimismo, pela alegria, pela esperança que os nossos militares trazem dentro de si . O que embora seja uma característica de um militar, não é muito frequente encontrá-la nas doses em que eu ali as constatei. E isso fez-me refletir porque é que estes cerca de 200 militares, jovens, todos eles portugueses que ali estão sediados, andam com esta força interior que transmitem depois em expressões como um sorriso fácil, uma abertura dialogante também muito natural e espontânea

Eu julgo que interpreto todo esse otimismo, todo esse sentir positivo que vai neles no sentido de que toma-se consciência nesse cenário da República Centro-Africana, um cenário, enfim... Basta dizer que é o resultado de muitos anos de conflitos e de guerras interiores e há aquela consciência que eles tomam de que estão ali para instaurar a paz.

E quando alguém descobre que é protagonista de uma construção tão positiva como aquela de paz - essa que é a mãe de todas as outras bênçãos e de todos os outros bens que um país que possa ter -, pois não pode não sentir-se realizado. Não pode não sentir-se protagonista de uma história maior, de uma história bela e feliz e, portanto, a primeira coisa que me impressionou foi exatamente essa disposição esperançosa alegre descontraída convicta que eu encontrei nos nossos militares

Nesse contexto de violência e insegurança, que papel tem a fé?

A fé, para eles, tem maior importância naquele cenário. Nós celebrámos a Páscoa lá. No dia 13 de Abril, estávamos a celebrar a Páscoa da Ressurreição, por sinal numa capelinha.. Quero dizer, não é tao capelinha quanto isso... Era um espaço que me chamou a atenção pelo facto de que, naquilo que seriam as paredes do altar-mor, figurarem duas grandes fotografias, uma da Última Ceia e outra a fotografia do São João Paulo. E, depois, porque havia também a imagem de Nossa Senhora, a imagem de São José, a imagem de algum outro anjo. Mas estas quase que se sobrepunham a todas as outras. E não deixa de ser interessante e curioso. Porquê? Porque a Última Ceia remete-nos para a Eucaristia e o São João Paulo II remete-nos para a santidade e também para o papel do pastor na vida da igreja e na vida do mundo.

Tive ocasião de confessar um ou outro militar, também de escutar um ou outro, naquilo que ele tinha mais profundamente para partilhar comigo e isso deu-nos a ideia, exatamente, de que naquele cenário, naquele contexto há da parte dos nossos jovens como que a redescoberta da razão de ser da fé e da importância da fé na vida das pessoas.

O contexto da República Centro-Africana é um contexto a todos os títulos adverso. No entanto, há uma coisa que também me impressionou e chamou atenção: falo da população local.

Estamos a falar de um país que já de "per si" é muito pobre. Estamos a falar dum país que está há muitos anos em conflitos, em guerras interiores e, no entanto, aquilo que me foi dado a ver e a perceber não é um país de uma população resignada ou que baixou os braços ou que, como se diz na gíria futebolística, "deitou a toalha ao chão". Antes pelo contrário: é um povo que manifesta uma vontade de vida, de continuar a praticar a sua vida do dia-a-dia. Por exemplo, nós passávamos por aquelas aquelas avenidas ou por aquelas ruas, todas elas caracterizadas por uma grande pobreza, e, no entanto, as pessoas continuavam a sua labuta, os seus comércios, a fazer os seus mercados. Há como que um grito mais profundo no ser humano que, realmente, não lhe permite e não o deixa desistir face ao amanhã.

Mas sentiu a insegurança, o medo das pessoas?...

Isso é verdade. A insegurança sente-se, mas aquilo que eu senti é que o habitante, a pessoa da República Centro-Africana é uma pessoa profundamente religiosa e, portanto, que sustenta esta vontade de vida, esta vontade de retomar a trilhar o percurso da história e a fonte, a raiz desta vontade deste desejo eu remeto exatamente para a fé. Ou seja, porque é um povo de fé, é um povo que tem vontade de viver, que tem genica. Translado ou faço a transladação disso para os nossos militares, também. Eles têm um relativo contacto com as populações locais e apercebem-se até que ponto é que para aquela população é importante a fé, exatamente para construir a vida. E isso, acho eu, é um fenômeno e um fator que os leva a eles próprios a redescobrir a presença de fé na sua própria vida.

Num certo ponto, os ideais humanistas, o sentido de missão acalentam e sustentam o nosso estar ali. No entanto, há uma força superior que é a da fé, que lhe dá um contexto e que lhes dá um alento que nenhuma outra razão pode dar ao ser humano

Sentiu que a sua presença foi importante para aqueles homens e mulheres que ali estão num cenário difícil ?

Ninguém é bom juiz em causa própria, como se costuma dizer, mas eu senti, realmente, como fomos, e eu particularmente, acolhidos com muito carinho, com muita dedicação, com muito apreço, o que me deixou emocionado. E isso traduziu-se em gestos tão práticos como aqueles das palavras que nos dirigiam. E isso foi muito importante. Mas, depois, há uma razão suplementar que é a vantagem de quem já foi também capelão militar: é que reencontrei lá ex-cadetes, atuais oficiais em missão e isso deixou-me também alguma boa impressão interior, porque jovens que eu vi entrar na Escola Naval e que acompanhei alguns anos no seu crescimento, quer vocacional quer como seres humanos, estão, agora, ali, num contexto e numa missão como aquela. É profundamente recompensador

Sentiu-os preparados para este tipo de missão?

Muito preparados, mas muitíssimo preparados. Deixe-me dizer que não sendo eu um perito na matéria, aventuro-me a dizer que o nível de preparação, o nível técnico, o nível de capacidade militar que os nossos militares possuem é do melhor que existe ao nível mundial. Dizendo isto, estou apenas a ser o eco daquilo que tenho escutado em todos os quadrantes, a começar exatamente pelos militares que lá estavam e com quem eu também tive algum diálogo, nomeadamente com militares franceses de alta patente.

Mas não só. Também com jovens franceses que estavam ali, muito maciçamente, entre alguns representantes de outras nações. Eles falam dos nossos militares com um reconhecimento e com uma admiração que é revelador da elevada preparação eles têm, não apenas do ponto de vista técnico ou militar, especificamente, mas também do ponto de vista humano. Isso é uma mais-valia que nós temos .

Para descrever e concretizar melhor aquilo que estou a dizer, conto uma história muito bela que se passou não na República Centro-Africana, mas na Bósnia aqui há uns anos. A Bósnia também foi palco da presença e da passagem de militares de muitas proveniências ,de nacionalidades diversas e, um dia, havia lá uma festa local, para a qual estavam convidados militares portugueses e também militares turcos. Foi perguntado a uma senhora da aldeia que tinha já visto passar por ali tantos militares, de tantas nacionalidades se eles eram todos iguais ou se havia diferença e ela deu uma resposta que eu nunca mais irei esquecer. Disse que todos os militares lhes davam diversas coisas, desde logo a segurança e a paz, mas também utensílios escolares, isto ou aquilo, e acrescentou que os portugueses, além de darem, davam-se. Há aqui uma envolvência, um aspeto humano, que talvez seja conatural ao ser português. É a nossa maneira de fazer as coisas, é a nossa maneira de estar

Durante a visita, ouviu queixas dos militares ou angústias?

Não é tanto isso. É mais ouvir o percurso existencial da pessoa, o que é que significou para ela estar ali. Para alguns deles, talvez para a maioria, foi a primeira vez que encontraram uma capital de um país naqueles moldes, naqueles. Muitos deles nunca tinham visto uma coisa assim. É tanta novidade que eles foram ao encontro e isso resultou num crescimento, num passo em frente na sua parábola existencial. Foi neste sentido que nós estivemos a falar. Eu vou repetir aqui que muitos deles me disseram, mais ao nível de oficiais, que Portugal lhes estava a dar tudo o que é indispensável para desempenharem aquela missão . Isto é bonito de ouvir.

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