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​Igreja fez inventário dos seus bens culturais e vai disponibilizá-lo online

30 abr, 2019 - 22:04 • Ângela Roque e José Pedro Frazão

Nova Plataforma, a apresentar em junho, reúne informação sobre tudo o que existe nas várias dioceses portuguesas. Diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja diz que o projeto é fundamental para se conhecer melhor o património religioso do país, que não é só “ornamental” ou “decorativo”. Em entrevista à Renascença, Sandra Costa Saldanha fala, ainda, da aposta na formação na área da conservação preventiva, e anuncia para breve um ‘Manual de Boas Práticas’.

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O restauro e a conservação do património religioso são uma preocupação da Igreja em Portugal e, embora quase todas as dioceses tenham departamentos vocacionados para esta área, o nível de respostas varia muito. “As igrejas não têm técnicos superiores, como tem um museu”, lembra a diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja (SNBCI), Sandra Costa Saldanha, para quem é fundamental “fornecer ferramentas básicas” a quem lida com este património, o que “inclui também as questões da segurança”.

Nos últimos anos centenas de pessoas já receberam formação em “conservação preventiva”, nas ações promovidas pelo SNBCI, que se prepara para publicar um ‘Manual de Boas Práticas’ nesta área. Outra aposta do Secretariado está a ser feita ao nível do inventário dos bens culturais da Igreja, que em breve todos poderão consultar online. A Plataforma será apresentada em junho.

Em Portugal há muito património religioso que não é só da Igreja, é tutelado também pelo Estado, com mosteiros e catedrais que são monumentos nacionais. Como é que isto funciona em termos de responsabilidades, por exemplo, se houver uma catástrofe como a que atingiu Notre Dame, em Paris?

Um fenómeno com esta dimensão verdadeiramente é muito raro. Foi uma perda, de facto, à escala global e verdadeiramente sentimos que não se trata de um problema apenas dos franceses, ou dos católicos, mas que acabou por quase comover muitas outras áreas e domínios, seja por questões devocionais, patrimoniais, ou mais de ordem técnica que agora se começam a colocar e a ser muito discutidas, sobretudo a partir de França, e na Europa, nos domínios da conservação e restauro e das várias estratégias que vão estar necessariamente associadas. E também nos faz refletir muito sobre esta necessidade de articulação. Não é só a Igreja, não é só para os católicos, é uma realidade que pode e que deve envolver outros domínios e outras áreas da sociedade.

Nomeadamente ao nível da prevenção, em Portugal há trabalho feito nessa área, pela Igreja e pelo Estado?

Essa é uma das questões mais importantes, e na qual se tem apostado de uma forma muito significativa. Cada país, evidentemente, tem as suas estratégias e a sua história na abordagem desta questão. No caso português, como sabemos, por várias vicissitudes, a tutela do património religioso é partilhada essencialmente com o Estado português, e há uma articulação que de longa data, durante todo o século XX e até à atualidade, se continua a fazer e que se coloca em várias matérias, e uma delas é esta, da conservação. Temos um proprietário que não coincide com o seu inquilino, digamos assim, que é por via da regra a Igreja, e, portanto, existem necessidades que se colocam quotidianamente. No caso das dioceses portuguesas tem sido feito nos últimos anos um trabalho que considero muito relevante no domínio da conservação preventiva, ou seja, aquilo que está efetivamente ao nosso alcance e que podemos fornecer aos verdadeiros utilizadores destes espaços. Eu costumo dizer que as igrejas não têm técnicos superiores, como tem um museu e como têm outras instituições...

É preciso formar pessoas nessa área. É isso que o Secretário Nacional tem feito?

É isso que se tem procurado fazer de uma forma muito intensiva, não só ao nível das questões da conservação preventiva, fornecer ferramentas básicas a aplicar nas rotinas quotidianas das igrejas às pessoas que lá estão, que lidam com esse património, mas que inclui também as questões da segurança neste domínio da prevenção. Da segurança quer no que diz respeito às questões dos furtos, mas também no que diz respeito a matérias como esta dos incêndios, as inundações, os vários problemas que se colocam nestes domínios. Temos percorrido as 20 dioceses portuguesas. Ainda não passámos por todas, mas é um trabalho que tem sido feito de uma forma muito incisiva, muito localmente, procurando reunir estes nossos destinatários, e tem sido muito interessante e muito eficaz, creio eu. Mas, é um processo que tem que continuar e prosseguir.

Quando falamos em conservação preventiva, não estamos só a falar do edificado, mas também de toda a arte sacra, de um conjunto de peças? É um conceito lato de conservação?

Alargado a todo o património, móvel, imóvel e integrado. Começa desde logo com as preocupações a ter com o próprio edifício, com questões tão elementares como os cuidados com as coberturas, com o modo limpeza, por exemplo, dos pavimentos, dos retábulos, passando pelos vários cuidados ao nível do património móvel, que passam não apenas pela sua limpeza, por exemplo, como passam também pelo seu acondicionamento, como arrumar, como transportar. Existem medidas que são muito elementares, e a diferença aqui normalmente está entre o fazer corretamente e o fazer de uma forma menos correta.

E agora há uma harmonização? Toda a gente sabe o que fazer nas dioceses?

Isso seria o ideal. O que nós procuramos fazer é fornecer estes dados de modo a que as pessoas depois os possam aplicar nas suas rotinas diárias e quotidianas, passando em revista todas as áreas do património edificado, passando pela pintura, a escultura, a talha, e toda uma série de outras matérias ligadas ao património.

Essa formação tem sido dada nos últimos anos. Quantas pessoas é que já formaram?

Não tenho essa contabilidade, mas umas largas centenas de pessoas. Temos entre 150 a 200 pessoas em formação, e já passámos por mais de metade das dioceses.

É a operação de formação de maior dimensão nesta área? Não existia antes?

As dioceses portuguesas têm feito ao longo dos anos, de uma forma pontual e autónoma, as suas próprias ações de formação locais, dirigidas a uma paróquia, ou dirigidas a comunidades muito específicas. Aquilo que nós temos procurado fazer - e temos apurado este processo, e as formações do último ano não são iguais às que se fizeram no primeiro – é ir melhorando, encaminhar o melhor possível estes conteúdos para aqueles destinatários. Estamos a falar de voluntários, estamos a falar do sacristão, das zeladoras, dos colaboradores do pároco, portanto, das pessoas que verdadeiramente lidam com esse património, e que são as que precisam de receber este tipo de formação.

A montante destas ações de formação está a ser produzida, e vai ser apresentado muito brevemente, uma ferramenta que pretende de alguma maneira cristalizar algumas destas coisas, que é um ‘Manual de Boas Práticas de Conservação Preventiva’, um pequeno guia editado, mas que estará naturalmente em constante atualização, e vai permitir fixar alguns destes conteúdos por áreas.

Esta aposta na formação assegura que em Portugal não possam acontecer casos como aquele de Espanha, em que uma idosa tentou restaurar uma pintura do século XIX e acabou por danificá-la gravemente? Isso não acontece em Portugal?

Acontece, infelizmente com muita frequência e em grande escala. Aliás, boa parte desta ação de formação passa, justamente, por mostrar esses maus exemplos, e por mostrar, em contraponto, a forma correta e adequada de os resolver. Existem muitíssimos casos em Portugal de más intervenções, eu diria que esse é um dos grandes problemas na abordagem ao património da Igreja em Portugal. É uma autonomia que é especialmente nociva para o património, e tem tido consequências que são muito preocupantes. E estas ações são de conservação preventiva, sobre tudo aquilo que as pessoas podem fazer até à fase em que já não há nada a fazer, e aí tem que ser um técnico profissional a intervir, um especialista. Portanto, é isto que se procura explicar, mostrar, com exemplos muito objetivos e com uma linguagem acessível.

O Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja também está a apostar na formação a nível do inventário dos bens. É uma área que também é fundamental existir, para se saber o que é que existe, e onde?

São domínios absolutamente indissociáveis. O inventário do património da Igreja é fundamental por variadíssimas razões, não apenas para termos uma consciência mais concreta daquilo que é o património à guarda da Igreja, mas sobretudo também para permitir a sua potenciação, a sua partilha, divulgação e utilização. O património da Igreja não são elementos ornamentais e decorativos nas igrejas, é preciso compreendê-lo, apreciá-lo, saber olhá-lo, e o inventário é, de facto, muitíssimo importante. Nos últimos anos têm sido feitas várias formações, que se enquadram no ‘Projeto Thesaurus’, do Secretariado dos Bens Culturais da Igreja, que pretende fornecer a todas as dioceses, dinâmicas comuns de trabalho nesta área. Até ao momento várias dioceses desenvolviam os seus trabalhos de inventário isolada e autonomamente. Aquilo que procuramos é propor normas para a realização deste trabalho, potenciando aqueles que estão muito avançados, e ajudando aqueles que porventura estão a começar.

Quando é que vai ficar tudo disponível online?

No próximo dia 25 de junho vai ser feito aqui, no auditório da Rádio Renascença, o II seminário do 'Projeto Thesaurus', onde vai ser apresentada publicamente esta Plataforma de Inventário dos bens culturais da Igreja, que vai pela primeira vez congregar o trabalho de inventário de várias dioceses portuguesas. A intenção é que aglomere todas as dioceses. O projeto vai crescendo ao longo do tempo, mas a plataforma vai ser já apresentada, e vai ser já possível a consulta dos registos de inventário disponibilizados. Temos de 20 dioceses portuguesas, se considerarmos que cada diocese de uma média de 300 paróquias, se acrescentarmos cerca de 10 ou 15 lugares de culto em cada uma delas, se em cada lugar de culto multiplicarmos milhares de objetos...

Já fez a conta?

Não fiz, mas temos uma consciência da escala, dimensão, da imensa vastidão e, sobretudo, do potencial deste património.

Qualquer paroquiano vai ver o que lá está da sua paróquia, ou é algo restrito a historiadores e investigadores?

A Plataforma de Inventário de Bens culturais da Igreja vai estar online e disponível para quem a queira consultar.

Há preocupações sobre a segurança desse património, uma vez que agora vai ficar tudo mais ou menos disponível?

A questão da disponibilização do inventário de bens culturais da Igreja foi muito discutida, e tivemos uma reunião há poucas semanas, com todas as dioceses, precisamente para discutir o modelo de disponibilização, como se disponibiliza e o que se disponibiliza. É muito importante que se perceba que este património que vai agora estar disponível numa plataforma online é um património diferente daquele que está, por hipótese, num museu ou numa outra instituição. Portanto, o modelo de disponibilização vai ser afinado em função dessa questão, e algumas informações, obviamente, não vão estar disponíveis. Mas, o essencial daquilo que são as características da peça, a imagem, e sobretudo uma noção global daquilo que é o conjunto dos bens culturais da Igreja em Portugal, isso creio que se vai conseguir alcançar.

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