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Entrevista

Henrique Leitão: "Os alunos entram na faculdade já completamente cépticos acerca das possibilidades da vida"

07 mar, 2016 - 17:14 • Aura Miguel

"Hoje há uma concepção sobre o humano que torna o sofrimento quase insuportável", diz o historiador. Uma entrevista em que o Prémio Pessoa 2014 afirma que as escolhas dos historiadores "são morais" e que há demasiada gente a viver "de dentes cerrados".

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Formado em Física, Henrique Leitão é uma das figuras mais importantes na investigação da história da ciência em Portugal. Católicos, vencedor do Prémio Pessoa 2014, é investigador principal no Centro Interuniversitário da História das Ciências e Tecnologia e docente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Em entrevista à Renascença em tempo de Quaresma, fala sobre o sentido da vida e do trabalho que realiza.

Como resumiria o seu trabalho actual?

Hoje em dia o que faço é trabalho histórico. É preciso gostar do trabalho de arquivo, de investigação de documentação primária. Sempre gostei de trabalhar em grupo, foi uma coisa que aprendi nas ciências, pois nas humanidades não se vê tanto. Isso foi muito formativo para mim, por isso tentei transpor isso para a história e formar um grupo com quem trabalho todos os dias, são colaboradores óptimos. É um trabalho académico, às vezes um pouco duro, árido, mas envolvido por uma rede de amizades e de colaboração muitíssimo enriquecedora.

Nesse trabalho mergulha-se em acontecimentos e realidades que não têm nada a ver com as de hoje. A pessoa tem uma maneira de olhar a vida que, muito provavelmente, nem sempre coincide com a maneira de olhar a vida dessa época. Como se resolve esta relação entre o investigador e a realidade histórica que tem pela frente?

Bem, o passado é sempre um sítio… é quase como outro planeta porque no passado as coisas eram diferentes e, por outro lado, é também, de uma maneira absoluta, inalcançável - nós tacteamos para o reconstituir. Mas é preciso perceber que, de facto, quando se trabalha com matéria de séculos de distância, aquelas pessoas pensam de uma maneira diferente, agem de uma maneira diferente, têm uma mentalidade diferente. Portanto, há aqui um problema, que os historiadores já identificaram muito bem: um problema de tradução, ou de translação. Temos que, mentalmente, nos aproximarmos o mais possível daquilo. Este é que é o verdadeiro trabalho do historiador, é conseguir operar este processo pelo qual o passado se torna inteligível para nós. Em última análise, nunca se consegue fazer, porque estamos irremediavelmente fechados na nossa época.

Acaba de ser publicado um grande volume que reúne investigação sobre bibliotecas de conventos e mosteiros de Portugal (“Clavis Bibliothecarum”). Percebe-se que havia aí uma sabedoria de vida, com um certo tipo de educação e de apostas. Apesar de o nosso tempo ser tão diferente, valem também para nós, agora?

Posto dessa maneira, há coisas que admiramos e coisas de que não gostamos nada nestes tempos históricos que temos de estudar…

Por exemplo?

É difícil dizer, mas eu gosto muito do modo de vida actual, sou uma pessoa do meu tempo, gosto do ar um bocadinho caótico das sociedades, muito cosmopolitas e diversas, dou-me bem na minha época e não a trocava por outra. Por outro lado, uma pessoa quando olha para o passado vê coisas que talvez gostasse de transpor. Mas isto é sempre artificial, quer dizer, não há maneira nenhuma de aquele mundo passar para cá, mas podemos aprender alguma coisa. Não sei se, no passado, as pessoas sabiam viver mais ou de uma maneira melhor, ou não, mas há coisas diferentes, sem dúvida…

Não havia a tecnologia de hoje…

Esse é um ponto evidente, quer dizer, nós conseguimos reconhecer as dificuldades específicas do nosso tempo, que também são algumas vantagens específicas do nosso tempo. Por exemplo, há uma harmonia da vida, vivida com maior acordo com os ritmos normais da vida, com uma proximidade mais íntima com a natureza, com um respeito pelas coisas, mas também há o outro lado da moeda – morria-se mais, havia mais doenças, não havia antibióticas, nem vacinas…

Não olho para o passado à procura de indicações para o viver de hoje; eu olho para o passado simplesmente para tentar entendê-lo. A pergunta última tem a ver com o viver a vida, não é? Mas esta pergunta não é propriamente uma pergunta histórica, é uma pergunta sobre o presente, e aqui volto ao que dizia ao princípio: para mim é muito importante que as relações de trabalho sejam humanamente enriquecedoras. Digo sempre às pessoas que trabalham comigo que se não se cresce humanamente no trabalho que se faz, em última análise, é uma perda de tempo. Quer dizer, o trabalho, mesmo quando é académico e muito exigente, tem de ser sempre uma ocasião de crescimento interior. Portanto, o aspecto humano, as relações humanas entre pessoas envolvidas na mesma tarefa, diz-me muito.

O que pede aos que lhe estão próximos quando não há esta simpatia imediata? É uma questão de honestidade com o trabalho?

É exactamente esse o termo, e, sobretudo em História, que é uma tarefa moral. Ou seja, a incidência mais profunda onde as escolhas dos historiadores operam são morais porque, diante de um documento, diante de uma realidade histórica, testa-se a honestidade de um historiador, absoluta. O historiador pode ter à sua frente um documento de que não gosta muito e deixá-lo de lado ou pode-se deixar provocar e ir atrás dele. Estas opções que estão continuamente a ser tomadas testam a grandeza de um historiador. É isto que peço sempre aos que colaboram comigo, exijo uma espécie de brutalidade de honestidade diante das indicações históricas, diante da documentação. Isto, para mim, é importante porque, embora o que me motiva sejam as questões intelectuais – a força motriz da história –, eu não seria capaz de suster este esforço só no plano puramente intelectual, se não correspondesse a uma história de amizade com outras pessoas, de busca comum do mesmo fim.

O contexto histórico sobre o qual trabalha tinha uma visão mais humanista do que a visão actual, que é talvez mais fragmentada (o homem é uma coisa no trabalho, outra na família, outra na distracção)?

É muito difícil fazer um julgamento sobre a anterior. Insisto sobre a dificuldade de realmente perceber aquelas pessoas - pelo menos, as minhas que viveram há cinco séculos. É muito complicado. Deixando a pergunta histórica e voltando só para o presente, reconhecemos com alguma facilidade as deficiências da vida presente e reconhecemo-las porque sentimos os seus efeitos, não só a carência e a decepção que produzem, acabando nós por ficar aprisionados num mundo de aparente escolhas infinitas. O diagnóstico sobre a modernidade insiste sobre este ponto, sobre a incrível surpresa de uma tristeza de fundo quando os meios e os recursos existem hoje como nunca existiram e isto tem a ver com esta fragmentação, que é grave e reduz a vida.

Quando surge uma doença ou uma contrariedade há diferenças entre a atitude de hoje e a de antes? Ou o homem é sempre o mesmo no modo como encara a realidade?

Instintivamente, diria que sim, que as pessoas noutras épocas reagiriam de outra maneira, mas o historiador dentro de mim resiste a dizer isto… Mas não há vida sem decepção, não há vida sem sofrimento, não há vida sem dor, isso não existe.

Na publicidade e em muitos contextos actuais considera-se que uma vida com sofrimento não é uma boa vida.

Isso é uma ilusão completa, isso não existe. Essa entidade – uma vida sem decepção, sem dor, sem penas, em última análise, sem morte –, essa vida, não existe. E embora dentro de nós há qualquer coisa que se rebela contra isso, a vida transporta sempre isso consigo; e as pessoas que pensam que não vivem numa ilusão completa vivem um sonho com todo o irrealismo do sonho que, em última análise, produz uma decepção ainda maior. Mas o ponto é: qual é o sentido com o qual estas coisas se vivem e aqui é que talvez haja diferenças historicamente e possa ter havido diferenças. O que se passa é que hoje há uma concepção sobre o humano que torna o sofrimento quase insuportável. Portanto, o problema não está no sofrimento, que devemos diminuí-lo, mas no facto de que as razões que nos permitem olhar para este sofrimento, hoje em dia, deixaram de existir e ele torna-se absolutamente esmagador e totalmente insuportável.

Mas isso também parte da concepção que o homem tem de si. Somos quase convencidos de ser capazes de tudo. Quando se introduz a questão do sofrimento, moral ou físico, a pessoa não sabe o que há-de fazer porque não controla.

Absolutamente, é exactamente isso que acontece. Perdeu-se, ou a sociedade lida muito mal, com o puro sentido de gratuidade diante da vida, de espanto diante das coisas e de alegria diante do que se tem e diante da vida entendida como uma dádiva a que não temos direito. Curiosamente – o que é paradoxal nos dias de hoje – ao mesmo tempo que se afirma o ser humano de modo aleatório, como produto do acaso, inconsequente, sem destino, sem fim, uma agregação de moléculas que agora está aqui mas podia não estar, ao mesmo tempo que se faz esta afirmação de aleatoriedade, insiste-se também numa perspectiva de direitos sobre a vida… Esta criatura aleatória, completamente inconsequente, tem imensos direitos sobre as coisas e, portanto, retira-se à pessoa a possibilidade de viver absolutamente espantado diante da evidência da vida: que temos muito mais dado do que conquistado, o que nos deve levar a estar sempre espantados por estarmos vivos. Isto não diminui as penas, nem as dores, mas enquadra-as numa alegria diferente.

Isso não é uma espécie de estranha resignação?

Não, isto não tem nada de resignação porque a alegria diante das coisas, a gratidão, que se transmite no agradecimento diante dos outros, o reconhecer tudo o que devemos a outros, à família, aos amigos, aos colaboradores, aos colegas de trabalho… tudo isto é o que dá a força para se avançar, é o que faz o coração ganhar aquela alegria que está dentro de todos os feitos.

Educativamente isto não se explica bem às crianças: não é possível fazer coisas grandes se não habitar lá dentro uma alegria interior, porque não se vive de dentes cerrados. Quer dizer, às vezes, é preciso cerrar os dentes na vida, às vezes é preciso sofrer, ser estóico, mas a proposta da vida não é esta.

Muitos dizem que a maioria dos portugueses andam anestesiados e cheios de problemas. O que pode ajudar a sair desta “neura” colectiva?

Não sei responder, mas uma coisa posso dizer da minha experiência. Hoje nota-se nos mais novos que há um peso e uma decepção precoce da vida. Fenómenos de cepticismo geral diante da vida, que eram próprios da idade mais adulta, às vezes dos idosos, hoje começam-se a notar muito novos e nós vemos que os alunos entram na faculdade já completamente cépticos acerca das possibilidades da vida e, sobretudo, completamente cépticos acerca daqueles desejos do seu coração que acham que são totalmente falsos. A minha experiência é que, ao mais pequeno sinal que se dê de que pode não ser assim, todos acordam, todos reagem, todos os rostos se iluminam. Porque o que é dramático não é propriamente a vida, mas as formas culturais que a sociedade adquiriu e tomou e pelas quais parece insistir sobre o cepticismo, sobre a tristeza, sobre a redução do horizonte da vida a horizontes tão estreitos, que o coração humano não os aceita.

Este tempo da Quaresma influencia o seu trabalho?

O que eu posso dizer é que, como católico, tenho um agradecimento enorme à Igreja de fazer estas propostas do ano, que nos colocam numa tensão diferente. A Quaresma é, sobretudo, um momento de uma tensão diferente para uma altura que, para nós cristãos e para toda a humanidade, é de grande alegria. Mas este movimento de nos colocar em tensão é também o movimento de atenção à vida, ao que está a suceder, de atenção aos outros. Enquanto a mundanidade, a frivolidade da vida é, antes de mais nada, uma forma de desatenção, é viver desatento…

Centrado em si…

Centrado em si e centrado em coisas que não valem nada, centrado em preocupações que não são preocupações nenhumas. E o tempo da Quaresma é uma reclamação, uma insistência sobre uma atenção nova. Eu acho – é a minha opinião pessoal – que o movimento da tensão sobre a vida, imediatamente nos dá indicações sobre um Outro, mas reconheço que não seja assim para todas as pessoas.

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