Tempo
|
A+ / A-

Opinião

O lado para onde Costa não dorme tranquilo

25 jan, 2016 - 15:34 • José Alberto Lemos

E pronto. A direita acaba de igualar a esquerda nas eleições presidenciais. Após dois presidentes consecutivos de esquerda, o país terá dois presidentes consecutivos de direita.

A+ / A-

Marcelo Rebelo de Sousa sucede a Cavaco Silva, tal como Jorge Sampaio sucedeu a Mário Soares, prolongando uma tradição em que a Presidência da República surge como o coroar de uma carreira política longa e intensa, consagrando a experiência, a sabedoria e o respeito institucional pelo cargo.

Há, contudo, algumas originalidades a assinalar nesta eleição de Marcelo. Antes de mais, o ter feito uma campanha em que recusou as formas habituais de propaganda. Não houve cartazes, não houve caravanas, não houve arruadas, não houve grandes comícios, não houve comissão política, não houve comissão de honra, não houve declarações grandiloquentes, não houve despesas sumptuárias e sobretudo não houve envolvimento partidário. É a primeira vez que alguém é eleito Presidente da República sem o empenhamento de estruturas partidárias no terreno.

O próprio Marcelo recusou todo esse “folclore” em coerência com o facto de também não ter esperado pelo apoio dos partidos da sua área política para se lançar na corrida. Tal como impôs a sua candidatura ao PSD e ao CDS, tornando-se o candidato inevitável, também demonstrou não necessitar dessas máquinas partidárias para vencer as eleições. Fez uma aposta clara na relação directa com os eleitores, jogando na afectividade e na popularidade.

Este facto garante-lhe à partida uma independência ímpar no exercício do cargo. Marcelo não tem contas para pagar, nem favores para retribuir. E tudo leva a crer que o seu espírito independente exercitado ao longo de décadas como comentador político garanta a equidistância necessária quando tiver de tomar decisões difíceis.

Que consequências terão então estas eleições na situação política actual?

Comecemos pela relação entre Presidente e Governo. Preocupado sobretudo com a estabilidade governativa nestes tempos de crise, Marcelo já deu sinais abundantes de que nada fará para agitar a situação política. Bem pelo contrário. O seu discurso de vitória foi, aliás, exemplar nesse aspecto. “Fomentar a unidade nacional”, “pacificar”, “cultura de consenso”, “cultura de compromisso”, “evitar tensões sociais e radicalismos”, “refazer Portugal”, são algumas das expressões usadas que ilustram isso mesmo.

O primeiro-ministro, por seu lado, respondeu prometendo “a máxima lealdade e cooperação institucional”, o que, aliado à boa relação pessoal entre os dois, permite antecipar tempos tranquilos. Acresce que António Costa, seguro da eleição de Marcelo, teve a prudência de não se empenhar pessoalmente na campanha, não declarando sequer apoio a nenhum dos dois candidatos da área socialista e deixando pairar a ideia de que até preferia a eleição de Marcelo. A coabitação adivinha-se, portanto, pacífica e duradoura.

Para este lado, Costa dormirá tranquilo.

Mas as eleições de ontem tiveram outros resultados. Desde logo, a divisão do campo socialista em duas candidaturas. Também neste aspecto as coisas correram bem a Costa. O resultado humilhante de Maria de Belém, após uma campanha desastrosa e um meteorito que lhe desabou na cabeça sob a forma de subvenções vitalícias – a comprovar que uma tragédia nunca vem só – anularam quaisquer veleidades dos seus apoiantes de contestarem o líder do partido. Haverá agora, certamente, alguns ressentimentos e algumas recriminações na praça pública, algumas tensões, mas será sol de pouca dura. Os moderados que apoiaram Belém (alguns seguristas, outros nem tanto) registaram uma derrota tão pesada que pouco lhes adiantará responsabilizar a direcção do partido pelo sucedido, como já começaram a fazer ontem à noite. Num quadro de liberdade de voto individual entre dois candidatos, cada um tomou a posição que quis e os resultados de ontem ditaram quem tomou a decisão menos má. No interior do PS, estas eleições encerram-se o mais depressa possível porque a preocupação essencial é com a governação e não adianta chorar sobre leite derramado.

Para este lado, Costa também dormirá tranquilo.

E a governação depende do apoio parlamentar dos dois partidos à esquerda do PS que, esses sim, têm leituras importantes a fazer destas eleições. O PCP sofreu a derrota mais humilhante da sua história eleitoral, acentuada pelo facto de ter tido menos de metade dos votos da candidata do Bloco de Esquerda. Tradicionalmente, as eleições presidenciais são um terreno difícil para o PCP, cujos candidatos raramente atingiram resultado idêntico ao do partido em legislativas. A excepção foi Carlos Carvalhas em 1991, que teve 12,9% dos votos, quando Soares foi reeleito.

Mas os fracos resultados obtidos foram-no num quadro em que o PCP não tinha concorrência na sua área política ou, tendo-a, ficou à frente dela – Jerónimo de Sousa em 2006 teve 8,6% contra 5,3% de Francisco Louçã, e António Abreu em 2001 teve 5,1% contra 3,0% de Fernando Rosas. Desta vez, porém, os 10,1% de Marisa Matias esmagam e humilham os 3,9% de Edgar Silva. Foram 470 mil votos contra 183 mil, o que reduz o PCP à sua expressão mais frágil de sempre. Pior ainda, este resultado surge na sequência da derrota de 4 de Outubro último, em que a CDU foi também ultrapassada pelo BE, por uma diferença de 105 mil votos. O BE tem hoje mais dois deputados do que a CDU.

A erosão eleitoral do PCP desde os anos 1990 tem sido constante, mas lenta, muito lenta. Desta vez, porém, com a ascensão do BE na sua área política, tudo leva a crer que o declínio eleitoral comunista é irreversível e que o voto útil à esquerda do PS passou a ser no BE e não no PCP. Ora, é evidente que a direcção comunista não vai assistir passivamente a este declínio e tenderá a compensar esta erosão eleitoral com a afirmação da força do partido no terreno.

Não faltará quem, no interior do PCP, faça a leitura deste resultado como sendo um reflexo do apoio do partido ao actual governo socialista e advogue uma mudança de estratégia. Fazer regressar o PCP aos tempos de partido de protesto em vez de partido de cumplicidade é algo que deve colher hoje junto de muitos militantes comunistas, frustrados com os resultados de ontem, mas também com os resultados da governação socialista. Aliás, um dos mantras do discurso comunista é justamente o de que a força do partido reside muito mais na sua influência social do que na sua expressão eleitoral. Por isso, vai crescer a pressão para intensificar as lutas sociais, as reivindicações sindicais, as manifestações, as lutas, as greves, tudo aquilo em que “se vê a força do PC”.

Este quadro de maior agitação social trará provavelmente consigo uma maior intransigência no Parlamento em relação às medidas propostas pelo PS e a corda pode esticar até ao limite do suportável para ambas as partes. É claro que assumir o ónus de derrubar o governo e provocar eleições numa conjuntura desfavorável pode custar ao PCP uma ainda maior erosão eleitoral, mas as ortodoxias sempre preferiram afundar-se com o coração cheio de certezas do que fazer compromissos que possam cheirar a traição.

Para este lado, portanto, Costa não pode dormir tranquilo.

Por último, o resultado do BE merece também alguma atenção. Ao consolidarem-se como a força hegemónica à esquerda do PS, cresce no coração dos bloquistas o sonho de um dia virem a ser o Syriza ou o Podemos português. Por ora, o sonho parece desmesurado em relação à realidade, mas está em curso uma recomposição do espaço político de esquerda radical cujo primeiro passo parece ser a redução do PCP a uma força eleitoralmente residual como já sucede na Grécia e em Espanha. Subtrair boa parte do eleitorado de esquerda radical à influência do PCP, tornando-o menos enquistado nas suas opções e mais volátil nos cálculos eleitorais, poderá ser a consequência mais próxima da ascensão do BE.

Uma ascensão que, por um lado, fará do espaço político à esquerda do PS um terreno mais favorável ao entendimento com os socialistas por ser menos dogmático, mais flexível, mais aberto e com mais afinidades estratégicas. Um terreno onde não será surpreendente ver transferências de votos conjunturais significativas entre ambos os lados. Mas que, por outro lado, poderá dar ao BE uma arrogância política e uma atitude reivindicativa junto do PS que dificulte a gestão de uma relação já de si difícil de gerir por um Governo que, todos os dias, tenta fazer a quadratura do círculo.

Para este lado, Costa também não pode dormir tranquilo.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Vasco
    26 jan, 2016 Santarém 22:17
    O Bloco de Esquerda quanto a mim vai minando pouco a pouco e isso parece estar já a acontecer, quer o PCP quer o PS, com uma linguagem um pouco mais aberta que o PCP vai retirando a este cada vez mais espaço de manobra, por outro lado o PS está armadilhado com estes dois partidos, o PCP começará talvez a aperceber-se de que foi um erro estratégico apoiar o PS e procurará afastar-se para não perder mais influência, em contrapartida o Bloco começa-se a aperceber que poderá ter sido uma boa estratégia a aliança com o PS para aproveitar-se do desgaste e do descrédito deste para absorver sobretudo a sua parte mais radical e tentar até destroná-lo do 2º lugar na tabela.

Destaques V+