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Reportagem

Uma ida ao parlatório. Graças e desgraças de três líderes do PCP

08 dez, 2024 - 00:00 • Ana Kotowicz

Carlos Carvalhas, Jerónimo de Sousa e Paulo Raimundo juntaram-se no Forte de Peniche, de onde se deu a histórica fuga de Cunhal em 1960, para uma conversa a três, que estará disponível na Renascença a 9 de dezembro. Até lá, fica o outro lado da conversa, em que os três recordam peripécias da vida política e revivem as memórias do líder histórico do PCP.

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PCP no Forte de Peniche. Bastidores de uma entrevista inédita no “espelho da ditadura”
PCP no Forte de Peniche. Bastidores de uma entrevista inédita no “espelho da ditadura”

Nenhum dos três se lembra onde estava quando Álvaro Cunhal fugiu do Forte de Peniche.

Nesse dia, 3 de janeiro de 1960, Carlos Carvalhas tinha 18 anos, feitos há menos de dois meses. Jerónimo de Sousa era um miúdo de 12, que ainda teria de viver outros 14 antes de se filiar no PCP. “Ainda não tinha esse afinamento político com o partido”, recorda Jerónimo, agora com 77 anos.

Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP, não era sequer nascido. Nasceu em 1976, depois do 25 de Abril — o que lhe causa alguma “inveja dos camaradas” — e muito depois de Cunhal ter descido (com outros nove presos) a muralha da prisão com uma corda feita de lençóis. Do lado de fora, um carro com o porta-bagagens aberto servia de sinal: estava tudo a postos para a evasão.

Agora, neste dezembro de 2024, Carvalhas, Jerónimo e Raimundo recordam o momento histórico durante um encontro inédito: os três homens, todos secretários-gerais do PCP em diferentes ocasiões, dão uma entrevista conjunta à Renascença no Forte de Peniche, em vésperas do congresso comunista, para falar do partido, dos desafios políticos e do futuro.

A gaivota angustiada e o jornalista desmaiado

A visita passa pelo parlatório, um lugar que devia dar aos presos políticos o conforto de estarem com as famílias. Não dava. Os encontros eram tensos, cada preso tinha um guarda nas suas costas, e todos tinham de falar muito alto para que não houvesse o risco de serem passadas mensagens desfavoráveis ao regime de Oliveira Salazar.

Hoje, o ambiente é outro e sentados nos mesmos bancos usados pelos presos políticos, os três comunistas recordam peripécias da vida política.

Raimundo estava numa campanha das europeias quando aconteceu o momento que elegeu como mais caricato. “Estava a falar, entusiasmado, no Cais de Gaia e tudo à minha frente começa a rir. Por trás de mim está o João Oliveira, candidato, e há uma gaivota que passou por cima de nós e decidiu libertar toda a sua angústia em cima do João Oliveira”, relembra. “Eu ia intervir, mobilizar as massas, e as massas a rirem-se do João Oliveira, coitado, que se estava a limpar.”


“O pior pode ainda estar para vir”. O parlatório de três líderes do PCP
“O pior pode ainda estar para vir”. O parlatório de três líderes do PCP

Já Carlos Carvalhas, 83 anos, e que recebeu o poder das mãos de Cunhal, não sabe ao certo a data do episódio, mas lembra-se do “profissionalismo de um jornalista numa praça do Alentejo”, num verão quente. “Com o sol de frente, ele estava a gravar a minha intervenção e desmaiou e, ao cair, deixou-me o microfone na mão. Eu ainda estive uns segundos a falar e só depois é que vi que ele tinha caído no chão.”

Ainda sobre quedas, Carvalhas recorda que, num tempo mais próximo da Revolução, foi o único entre muitos militantes que não se atirou ao chão, quando se ouviu um estrondo, que parecia um tiro. No fim, elogiaram-lhe a bravura, mas teve de confessar que o que lhe faltou foi o treino e a rapidez de pensamento para se proteger, tal como os outros.

O pior? “Certamente ainda estará para vir”

Se houve momentos ligeiros, também houve outros mais duros e Jerónimo aponta “algumas derrotas eleitorais na Assembleia da República” como os momentos mais difíceis da sua vida política. E o defeito que aponta ao partido, e também a si próprio, é não conseguir encontrar-lhe defeitos.

Já Raimundo, desde logo distanciando-se dos dois camaradas por “estar em desvantagem” no tempo que leva à frente do partido, não consegue escolher o ponto que vê como mais dramático, uma dificuldade com que Carvalhas também se deparou. “O pior momento certamente ainda estará para vir, nem todos foram bons, mas o pior pode ainda estar, eventualmente, para vir. Se pudermos evitá-lo, melhor.”

Publicamente, os três líderes não costumam ser vistos juntos — e, por isso, a imagem dos três à entrada do forte tem peso de documento histórico —, mas na Soeiro Pereira Gomes, sede do partido onde Carvalhas mantém um gabinete e Jerónimo sonha fazer “tarefas ligeirinhas”, cruzam-se com frequência. Às vezes para matar o vício, diz Jerónimo entre sussurros e risos, como se a varanda onde é habitual encontrar Raimundo, mas que Carvalhas nunca frequenta, fosse um segredo bem guardado.

Além desses encontros, há uma fotografia dos três, de há 20 anos, numa altura em que Raimundo não sonhava vir a ser líder, como recorda num dos momentos da entrevista.

Em 2004, coube ao atual secretário-geral dirigir a sessão do congresso em que Jerónimo de Sousa foi escolhido para suceder Carvalhas. “Por coincidência, há uma fotografia onde estão um de cada lado, e eu, no meio, a dirigir a sessão de trabalhos.”

Também nesse dia, e nessa fotografia, falta Álvaro Cunhal. Com 91 anos (morreria no ano seguinte), justificou a ausência com "razões de idade e saúde", marcando presença através de uma mensagem de 15 linhas lida aos cerca de 1.300 delegados.

Hoje “deve ser um dia importante”

“Escolhemos o dia certo para fazer a visita”, sussurra uma senhora ao homem que a acompanha, e que lhe dá o braço, não escondendo o espanto de ver Carvalhas, Jerónimo e Raimundo a posar para a fotografia, com a muralha como pano de fundo. “Deve ser um dia importante”, responde ele, com um sorriso.

No calendário, que continua a marcar 50 anos do 25 de abril, não há, neste dia, nenhuma data histórica ligada ao Forte de Peniche, apesar de se voltar várias vezes ao homem que dali fugiu com a ajuda do guarda Jorge Alves, e que passado um ano seria líder do PCP.

O que teriam feito se lá estivessem, que mensagem dariam eles a Cunhal? Que a hora seja curta, é a ideia que resume as respostas dos três homens. “Vamos despachar isto, para ver se te pões daqui para fora rapidamente, que nós estamos lá fora à tua espera”, diz Raimundo, mais assertivo. E recorda que quantos menos estivessem envolvidos, melhor seria, sempre a pensar no sucesso da missão.

O sucesso foi garantido, de tal forma que a evasão ficou para a história, ao lado de outras fugas: a de António Dias Lourenço, outro histórico do PCP, que, em 1954, em pleno dezembro, se atirou ao mar e chegou a Peniche a nadar. Ou a fuga de Caxias, em 1961, quando um carro do próprio Salazar foi usado pelos evadidos.

Mas foi a fuga de Cunhal que fez uma “fenda na muralha do regime fascista”, como disse Jerónimo em 2020, fragilizando o regime de Salazar, a ponto de “criar condições” para a Revolução de 1974.

Talvez por tudo isso, Carlos Carvalhas, dos três o mais próximo de Cunhal, poucas vezes perdeu o semblante carregado ao longo da visita. “Isto não são só pedras”, disse, apontando para a muralha e lembrando que muitos sofreram ali às mãos da PIDE (e da PVDE e da DGS) nas celas disciplinares — o Segredo, como lhe chamavam os presos. E é por isso que seis décadas, confessa, ainda não chegam para se sentir confortável naquele lugar.


Na segunda-feira, 9 de dezembro, a Renascença publica a entrevista exclusiva feita ao atual secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, em conjunto com os antigos líderes Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa, nas vésperas do XXII Congresso do Partido Comunista Português.

Ficha técnica: Cristina Nascimento e Susana Madureira Martins (entrevista), Ana Kotowicz (textos), Ricardo Fortunato, Beatriz Pereira e Catarina Santos (imagem e edição), José Ferreira, Diogo Rosa e José Loureiro (som), Diogo Casinha (edição de som), Tomás Anjinho Chagas (rádio e textos), Pedro Leal, Arsénio Reis e Maria João Cunha (coordenação)

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