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Reportagem

“O barato já morreu”. Quando uma mercearia é fonte de alimento e de apoio psicológico

30 mar, 2023 - 15:00 • Liliana Carona

Em contexto de crise, devido à inflação dos alimentos, as mercearias tradicionais são o suporte da população idosa, com reformas mais baixas. A proximidade, a atenção com o cliente e a venda a granel são as apostas de um empresário açoriano que deixou a terra natal para investir na Serra da Estrela.

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“O barato já morreu”. Quando uma mercearia é fonte de alimento e de apoio psicológico - Reportagem de Liliana Carona

Maria Amélia, 60 anos, está desempregada e obrigada a "apertar o cinto" e contar os cêntimos quando vai todas as semanas à mercearia mais próxima de casa.

“Hoje, não levo mais nada, que é para vir mais vezes para ver esta senhora. Ou menina?”, questiona Maria Amélia, dirigindo-se a Isabel Jesus, 51 anos, empregada de balcão da Mercearia Pessoa, em Gouveia.

“Não há nada barato, diz que o barato já morreu. Compro menos. Sou eu e o meu marido. Eu estou desempregada. Fiz um curso de cozinha e estou à espera, e o meu marido está de baixa”, conta, enquanto pede a Isabel que lhe leve as compras a casa.

“É muito importante este comércio tradicional, levo umas bolas de naftalina para deitar nas malas e nos roupeiros e venho buscar umas batatas que são muito boas, ela é que me leva as compras”, garante Maria Amélia.

Quem lhe vai levar as batatas a casa sem cobrar mais por isso, é Isabel Jesus, que está atenta às dificuldades, sobretudo das pessoas mais velhas.

“Os clientes queixam-se muito. Só cá vêm quando recebem a reforma, eles querem levar mais, mas não conseguem. Cortam em muita coisa, até frutas, leite, as massas, vão mais às baratas. Levam pouca quantidade, três, quatro peças. O cacho de bananas, se tiver cinco, levam três, dizem que não podem, a partir do dia 20 quebra muito a procura, já não vêm às compras e tenho pena”, observa Isabel.

A funcionária da Mercearia Pessoa salienta o espírito de proximidade: “Brinco com os clientes, conversamos muito, desabafamos e vão embora mais alegres. Eles ficam todos contentes e vêm mais vezes. Dei-lhes o meu número pessoal. E no dia a seguir entrego”.

“O meu filho é que me ajuda”

A nota de 20 euros que Maria Amélia entregou para pagar as compras, pouco deixou de troco. No dia em que foi às compras, ouviu nas notícias as medidas do segundo pacote de apoio às famílias contra a inflação. “Ouvi no noticiário da 1h00, vamos ver se vão cumprir, dizem muita coisa e não a fazem. A luz e o gás sei que vão descer… mas como é que eu posso viver? Pago duas rendas, uma casa e uma arrecadação, 175 euros mais 101 euros de renda, só com a baixa do marido, cerca de 400 euros, pagar rendas águas, luz, gás, medicação, em que é que corto? O meu filho é que me ajuda, trabalha numa superfície comercial e às vezes traz-me compras”, desabafa.

Vitória Andrade, de 80 anos, sai poucas vezes para ir à mercearia, mas garante que o marido anda sempre à procura das promoções. “Vai ao Lidl, ao Continente, vai a todo o lado”.

“Procuramos produtores locais, sem taxas de transporte”

A proximidade é a aposta do gerente da mercearia, Bruno Faria, de 25 anos, que há cerca de meio ano, decidiu deixar os Açores para investir na Serra da Estrela, com foco na sustentabilidade e na venda a granel.

“A proximidade com o cliente também vende, tanto os jovens como os mais velhos querem ser ouvidos, querem sentir que fazem parte, queremos olhar pelo cliente e ouvi-lo”, revela Bruno.

O gerente acrescenta outras apostas para conseguir oferecer melhores preços aos clientes com mais dificuldades. “Procuramos produtores locais, sem taxas de transporte e investimos na venda a granel. Ter oportunidade de levar apenas o que é preciso é importante para estas pessoas, não haver desperdício”, valoriza.

Bruno Faria é natural de Pontal Delgada. Trabalhava como consultor de gestão numa empresa e foi num trabalho de consultoria que conheceu a Serra da Estrela e se apaixonou pela terra.

“Nas três semanas que passei aqui em Gouveia, foi me feita uma proposta para aprender com o Sr. Pessoa Lopes, já com 40 anos de experiência. Gosto imenso destas zonas pacatas, faz-me lembrar a minha ilha, só me faz confusão não ver o mar, mas tive oportunidade de ver a neve. Tem a sua beleza, mas é mal aproveitada. Há falta de pessoas com interesse em apostar na população local, porque a beleza está aqui, é só uma questão de explorar e cativar”, considera o responsável da mercearia.

"A Serra é o sítio certo para apostar"

Bruno Faria enumera as vantagens de viver no interior do país: “Aqui já temos algumas valências, os preços das casas bem mais baixos, o atendimento do pessoal, eu senti-me extremamente bem recebido. É triste que não se veja tanta gente assim jovem como eu. Eu acho que a Serra é o sítio certo para apostar”.

Com o balcão e as paredes revestidas a madeira, Bruno Faria, licenciado em Turismo e mestre em Gestão de Empresas, quer investir na sustentabilidade e apostar “numa decoração mais alegre, na natureza”.

“Estamos naquilo que se pode chamar uma 'fase de testes'. Procuramos feedback tanto a nível de vendas como dos nossos clientes à medida que desenvolvemos este conceito. A partir do momento em que considerarmos que atingimos o objetivo, pretendemos replicar (quanto baste) a fórmula. Atualmente, prevemos a abertura de dois novos espaços num médio a longo prazo, ambos situados no concelho de Gouveia."

Bruno Faria recorda que março é o Mês do Granel, iniciativa da Zero Waste Lab e da Maria Granel, com o objetivo de sensibilizar os portugueses para a importância do granel e que conta com o apoio institucional da Comissão Europeia, Associação Zero e Deco.

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