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Entrevista a Paulo Almeida Sande

"A Hungria, novamente..."

22 mar, 2023 - 23:45 • Pedro Mesquita

Terá sido Budapeste a bloquear a aprovação de um comunicado conjunto da União Europeia sobre o mandado de detenção emitido pelo Tribunal Penal Internacional contra Vladimir Putin. “Dá jeito” ao presidente russo ter um aliado dentro da União, admite, em entrevista à Renascença, Paulo Almeida Sande.

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Paulo Almeida Sande sobre mais um bloqueio da Hungria a decisões da UE
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Não existiu uma posição comum, dos 27, sobre o mandado de captura contra Putin, emitido pelo TPI. A maioria dos Estados-membros foram rápidos a reagir à decisão do TPI e o ministro português dos Negócios Estrangeiros até já assumiu que Putin seria detido se, porventura, aterrasse em Portugal, mas não existiu uma posição formal da União. O próprio chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, viu-se obrigado a divulgar um comunicado a título pessoal.

De acordo com fontes contactadas pela Renascença, em Bruxelas, o que se passa é que Budapeste voltou a bloquear uma posição conjunta da União. É também essa a explicação já avançada pela Bloomberg.

Paulo Almeida Sande, especialista em assuntos europeus, considera, à Renascença, que o comportamento padrão da Hungria, em relação à Rússia e à guerra na Ucrânia, fragiliza a União, mas não tem impedido os 27 de assumirem posições “claras, firmes e eficazes”. Lembra, por outro lado, que nenhum país pode ser afastado da União Europeia, sem o seu próprio aval, e reconhece que a União está refém das regras que ela própria criou.

Budapeste volta a travar uma decisão conjunta da União. Pode dizer-se: "A Hungria, novamente..."?

A Hungria, novamente. Infelizmente, nos últimos anos, tem sido recorrente a posição húngara e a sua atitude em relação a tudo o que diz respeito à Rússia e à guerra na Ucrânia. Apesar de tudo, a posição húngara não tem impedido a União Europeia de tomar posições firmes, ao contrário do que muita gente diz. Posições claras e eficazes. Eficazes no sentido em que não deixaram a Rússia caminho aberto, mas na verdade é um fator de perturbação.

E, neste caso, com a Hungria a bloquear um comunicado conjunto dos 27 e a obrigar o chefe da diplomacia da União a divulgar um comunicado a título pessoal sobre o mandado de captura a Vladimir Putin.

E há nisto também algumas ironias. A Hungria é um dos países signatários do Tribunal Penal Internacional e, portanto, é estranho que tome esta posição. Só não é completamente estranho porque é evidente que sabemos como é que a Hungria se posiciona nesta matéria. Isto está a impedir a União Europeia de tomar uma posição conjunta, clara e firme sobre este assunto...

Já sabe que a União Europeia não pode colocar fora um Estado-membro...

Não.

Mas podemos assumir que a Hungria se mantém de pedra e cal neste momento – claro, também pelos seus próprios interesses -, mas porque à Rússia interessa muito ter um país aliado dentro da União Europeia, um país que bloqueie um pouco ou, pelo menos, diminua a capacidade dos 27 assumirem posições comuns?

É evidente que a Putin convém, dá jeito. Se quisermos é alguma coisa que não que não lhe desagrada, pelo contrário, que existam dentro da União Europeia países que, de alguma forma, veiculam a sua posição ou que são mais simpáticos com aquilo que é a sua visão das coisas. Portanto, o facto da Hungria o fazer é uma coisa que beneficia Putin.

Orbán pode ser quase classificado como encarregado de negócios de Moscovo na União Europeia?

Ou um cavalo de Tróia, como também já lhe ouvi chamar.

Não, não chegamos aí. Na Hungria há muitas vozes discordantes. Há muita gente que considera que isto não é favorável ao país e, enfim, aos interesses da Hungria. Isto também tem a ver com os interesses da Hungria na União Europeia. Em particular os apoios, que são substanciais e dos quais depende para ultrapassar uma situação económica muito complicada, neste momento, e que será agravada se o acesso, por exemplo, aos fundos europeus não se concretizar. Isto, mais uma vez, tem muito a ver com os regimes políticos de cada país. Ou seja, quem está no poder em cada país.

E é transitório eventualmente...

É sempre transitório. Qual é o problema? O problema que há pouco referiu, e muito bem, é que nenhum país pode ser expulso da União Europeia. Não há nenhum mecanismo que permita aos 27, que passariam a ser 26, dizerem “este país não é uma democracia, não tem condições fazer parte da União Europeia”. Há regras claras para adesão: Os países só podem aderir à União Europeia cumprindo os critérios de adesão. Mas, a verdade é que, depois de estar na União Europeia e sendo obrigados na mesma a cumprir esses critérios, não há nenhum mecanismo que os expulse.

Mas não tem a União Europeia de se reformular, ganhar capacidade para agir nessas situações? O caso de um país que cumpria os critérios quando entrou, mas que, entretanto, se desviou do caminho e, eventualmente, até pode ter seguido caminhos muito perigosos? Não teve a União Europeia alterar as regras para permitir, numa situação limite, que algum país possa ser expulso?

A sua pergunta é a mais interessante e mais sem resposta que me podia fazer. É evidente que sim, mas não é possível.

Não é possível porque, mais uma vez, tem de haver unanimidade...

Tem de haver unanimidade. Isto é, só é possível alterar os tratados nesse sentido se houver uma unanimidade dos 27. Ora, essa unanimidade não existe. Aliás, posso dar-lhe um exemplo concreto de como as regras, às vezes, são usadas contra os próprios princípios que as geraram: O artigo sétimo - o tal artigo onde se lê que um país que não cumpra pode ser quase tornado um Estado pária dentro da União Europeia, não participa nas votações, etc. - é um artigo que obriga à unanimidade, com exceção desse país. Só que, basta haver outro país que tenha os mesmos interesses para bloquear a decisão em relação a outro Estado. E, portanto, isto significa que há regras que deviam ser alteradas, mas não podem ser alteradas nas atuais circunstâncias, porque as alterações são obrigam a uma dupla na unidade: A unanimidade na conferência intergovernamental, entre os Estados-membros, e, depois, a unanimidade em cada cada país. Todos os países têm de retificar aquela decisão. É virtualmente impossível tanto que, desde o Tratado de Lisboa, não assistimos a nenhuma nova revisão dos Tratados.

Só para concluir, e pedia uma resposta muito breve: A União Europeia está refém das regras que ela própria criou?

Está… está. Às vezes, há regras que procuram consolidar princípios e depois revelam-se, elas próprias, um obstáculo a concretização desses princípios.

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