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Entrevista a Carlos Gaspar, parte II

"As elites europeias foram atrás dos povos na contestação à invasão russa. E a ONU está numa situação impossível"

27 fev, 2023 - 13:21 • José Pedro Frazão

O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) Carlos Gaspar considera que a guerra na Ucrânia vai acelerar muito o alargamento da UE aos países balcânicos e mesmo à Ucrânia e Moldávia. Na segunda parte de uma extensa entrevista a propósito do seu livro " O Fim da Europa", o especialista em política internacional admite a necessidade de uma revisão dos tratados porque a Europa de Leste vai valer mais votos do que a Europa Central. Gaspar sugere acompanhar com atenção o percurso da ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e reflete sobre o papel das Nações Unidas neste conflito.

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A influência russa está na base de algumas tensões na União Europeia em todo este processo. Qual é a sua opinião sobre a magnitude dessas tensões ou fraturas?

A posição da Rússia era mais forte e mais preocupante antes da invasão. As coisas mudaram depois disso, porque essa influência está reduzida na prática a alguns partidos minoritários, alguns partidos do Governo, como os partidos de direita na coligação italiana e a Hungria de Viktor Orbán. Mas esses partidos estão calados e a Hungria de Viktor Orbán vota as sanções na União Europeia contra a Rússia, não pode não votar. Independentemente de existir um "partido russo" na política europeia, a verdade é que, na conjuntura presente, esse partido está calado.

Não tem força ?

Não disse que não tem força. As circunstâncias obrigam a estar calado.

Mas essa posição é suficiente para, neste momento, estarem em debate mudanças na forma do processo decisório, da forma de apurar maiorias ou até de uma eventual abertura de revisão dos tratados. Essa pequena fratura pode levar a um debate maior na Europa.

A fratura é sobretudo entre o "partido da paz", daqueles que defendem a todo o custo a necessidade de pôr fim à guerra e forçar a Ucrânia a ceder perante a Rússia, e o "partido da justiça", que defende que não há nenhuma solução de paz duradoura que dê a vitória à Rússia de Putin. E esses dois partidos existem em todos os países europeus e, no caso da Alemanha, existem ambos dentro da coligação governamental, pois os Verdes e os liberais pertencem ao "partido da justiça" e uma parte dos sociais-democratas pertencem ao "partido da paz".

É a partir desse quadro que se está a marcar essa clivagem, mais do que propriamente um tema que não está verdadeiramente em cima da mesa. E que só vai estar aquando do próximo alargamento da União Europeia, primeiro com os candidatos balcânicos, depois a Ucrânia e a Moldávia. Isso vai acontecer mais cedo que mais tarde, mas ainda não aconteceu.

Mas a prazo a União Europeia vai ter de lidar com a revisão dos tratados.

Provavelmente, neste sentido em que, se os candidatos balcânicos, a Ucrânia e a Moldávia, entrarem , a Europa de Leste passa a ter mais votos do que a Europa Ocidental. E isso é uma mudança significativa. Pior, a Ucrânia e a Polónia, em conjunto, passam a ter mais votos do que a própria Alemanha. E isso também é um problema sério, mas não é nada evidente que é isso que leva à revisão dos tratados.

É um processo paralisante, um instrumento para paralisar o processo de alargamento, mais do que propriamente uma forma política para resolver os problemas da Europa. A Alemanha quer que a Ucrânia entre na União Europeia. A República Federal rompeu com a Rússia, o país que mais ilusões tinha sobre a possibilidade de reintegrar a Rússia no espaço de paz europeu agora é o país mais radical em consolidar a rutura. Se há rutura, então é preciso completá-la e criar uma fronteira de segurança, estratégica, que separa a Europa da Rússia durante um período prolongado.

Nesse sentido, para si é inevitável o alargamento da União Europeia aos países Balcãs Ocidentais.

Pelas condições criadas, é provável que seja acelerado. Aliás, o chanceler alemão tem repetidamente tomado uma posição em relação a isso. É prudente também por razões de segurança, porque há uma influência muito forte da Rússia e da China na Sérvia e noutros países. E é preciso sobretudo chegar rapidamente à reconstrução e integração da Ucrânia na União Europeia. A União Europeia é uma fronteira de segurança, estratégica, tão forte como a fronteira entre a NATO e o que está para lá da Aliança Atlântica.

Significa substituir-se à influência russa ou diminuí-la nalguns desses países? Penso sobretudo na Sérvia.

Certamente.

Na sua opinião, faz sentido tudo isso aparecer em bloco? Balcãs Ocidentais e Ucrânia ao mesmo tempo?

Certamente.

Ou é aconselhável uma estratégia gradualista em que primeiro entram os países dos Balcãs por terem o processo mais adiantado?

Nas guerras, estes processos são acelerados. Acontecem muitas coisas ao mesmo tempo, que, numa situação normal, podiam demorar anos e anos. Uma guerra é um acelerador que nos reserva sempre surpresas.

A ideia de que se vai voltar atrás e de que a Alemanha e a Rússia vão voltar a ter as relações que tinham antes de 24 de fevereiro de 2022 é uma ilusão que as elites alemãs já não têm.

No seu livro aborda um tema de que se falou muito na imprensa, sobretudo a partir de fevereiro de 2022. Tem a ver com a suposta promessa de não alargamento da NATO. Cita a conversa entre o secretário de Estado norte-americano James Baker e Gorbatchov, em que Baker pergunta a Gorbatchov se prefere uma Alemanha reunificada, fora da NATO, sem tropas americanas, e que pode adquirir as suas próprias armas nucleares, ou se prefere uma Alemanha unida, integrada na NATO, "com a garantia de que a jurisdição da NATO não avance nem uma polegada para leste". A Rússia sistematicamente levanta esta promessa que terá sido feita...

Mas é feita fora de contexto. A frase do secretário de Estado norte-americano refere-se ao território da RDA e isso vai ficar consagrado nos acordos de reunificação que têm uma cláusula segundo a qual as tropas da NATO não avançam para leste, isto é, não avançam para o território da antiga República Democrática Alemã enquanto as forças militares soviéticas não retirarem completamente da RDA. E os acordos preveem que as forças soviéticas tinham três anos, a partir de 1990, para sair da RDA e demoraram efetivamente um certo tempo.

Já não havia União Soviética e ainda estavam a retirar as forças soviéticas que estavam na RDA. Era um exército de quase 400 mil soldados e era preciso fazer esse regresso em boa e devida ordem e nas melhores condições possíveis. Portanto, a polegada, a dita polegada era para a República Democrática da Alemanha.

Quando esse acordo é feito, o Pacto de Varsóvia ainda existia. O acordo sobre a retirada manteve-se. Não houve tropas da NATO no território da RDA até sair o último soldado do exército soviético. Qualquer interpretação alargada dessa posição é absurda no contexto de 1989-1990, e mais tarde insustentável, uma vez que todas as realidades que sustentariam esse acordo deixaram de existir. A Alemanha estava unificada e o Pacto de Varsóvia deixou de existir, tal como a União Soviética.

Ainda assim, quando foi iniciado o processo de alargamento da NATO, os Estados Unidos e a Alemanha primeiro foram a Moscovo para contratualizar os termos desse alargamento com o Presidente Yeltsin e o primeiro-ministro Primakov. Esses termos foram objeto de um acordo entre a NATO e a Rússia. O ato fundador NATO-Rússia foi assinado em 1997, antes da República Checa, Polónia e Hungria serem convidadas a aderir à NATO. Esse acordo ainda não foi revogado.

No seu livro reflete também sobre a Sociedade das Nações. Quando olhamos para a ONU atual, qual é o estado em que Organização das Nações Unidas se encontra?

As Nações Unidas estão perante uma situação impossível, uma vez que a Rússia é membro permanente do Conselho de Segurança. Dois membros fundadores das Nações Unidas, a Rússia e a Ucrânia, estão em guerra. A Rússia violou todos os princípios essenciais da Carta das Nações Unidas.

E não há nenhum mecanismo das Nações Unidas, ao contrário do que acontecia na Sociedade das Nações, que torne possível expulsar a Rússia ou impedi-la de continuar a exercer o seu veto no Conselho de Segurança sobre todas as resoluções que possam prejudicar os seus interesses.

A União Soviética foi expulsa da Sociedade das Nações. O Japão saiu da Sociedade das Nações para não ser expulso depois da invasão da Manchúria.

As Nações Unidas são uma instituição oligárquica, dominada pelas grandes potências vencedoras da Segunda Guerra, que são o centro das Nações Unidas. Essa é, aliás, a condição para a União Soviética aceitar a proposta norte-americana sobre a reconstituição de uma instituição de vocação universal.

A União Soviética de Estaline não queria que se reconstituisse uma Sociedade das Nações. Queria conselhos regionais de segurança para poder dominar as suas esferas de influência e só aceitou as Nações Unidas com a existência do veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança.

A ONU sobreviveu à Guerra Fria.

Sobreviveu, mas parada. E assim continua.

Esta é uma situação impossível, porque, apesar de tudo, não houve, durante a Guerra Fria, nenhuma situação de uma tão brutalmente flagrante violação da Carta das Nações Unidas por um membro permanente como aquela que existe neste momento.

Se a Sociedade das Nações falhou, a ONU também pode falhar.

As Nações Unidas são diferentes da Sociedade das Nações, porque a sua natureza oligárquica está escorada na regra do veto. Ela pode falhar sem deixar de existir. Independentemente dos limites da capacidade de intervenção das Nações Unidas, nem a China nem os Estados Unidos querem por fim às Nações Unidas.

Houve um debate nos Estados Unidos sobre a criação de uma aliança das democracias, que pudesse ultrapassar as Nações Unidas. É interessante constatar que esse projeto que apareceu no programa eleitoral do candidato Joe Biden deixou de estar na primeira linha das suas prioridades. E, ao contrário, a nova estratégia nacional de Segurança do Presidente Biden defende as Nações Unidas e considera que a Ordem e a Carta das Nações Unidas são a trave-mestra da ordem internacional, para se contrapor justamente à posição da Rússia e da China, que aceitam a violação do princípio da soberania e da integridade dos Estados, que é o primeiro princípio das Nações Unidas. Na Sociedade das Nações, o primeiro princípio para as futuras gerações era a democracia, que era mais importante do que a soberania.

No final da Grande Guerra, havia o idealista Wilson, o realista Clemenceau, o liberal Lloyd George. Hoje temos alguém para encaixar nestes parâmetros nas lideranças mundiais?

O Presidente Wilson era um idealista muito realista. A Sociedade das Nações e a ideia da segurança coletiva e de autodeterminação era um programa fundamental para fazer face à revolução comunista no fim da Grande Guerra. Estava em causa saber se era possível estabilizar os Estados europeus ou não. E foi duma forma realista, pragmática, com o princípio da autodeterminação e a criação da Sociedade das Nações, que, de certa maneira, é um contraponto da Internacional Comunista, criada antes da União Soviética. São dois modelos alternativos que estão ali em confronto.

A visão do realista Clemenceau , ironicamente, realizou-se depois de 1945, com a aliança entre as democracias dos Estados Unidos, a França e e a Grã-Bretanha. O primeiro-ministro Lloyd George queria as duas coisas e, de certa maneira, é isso que nós temos hoje.

Mas temos hoje líderes realistas, idealistas, liberais?

Vamos ver qual é a sua verdadeira vocação. Não temos um momento tão extraordinário como aquele em 1919, no fim da Grande Guerra, quando os impérios estão em dissolução e há um movimento revolucionário forte que já tomou conta de um grande império, o império czarista. A Europa está destruída, está exausta depois de quatro anos de guerra e é possível inventar uma nova ordem.

Hoje em dia não existem essas condições. Precisamos não de um Wilson, precisamos mais de um Truman, para consolidar as posições que existem e garantir que as democracias conseguem sobreviver a uma luta duradoura e prolongada com a China e com a Rússia, para defender a ordem internacional, incluindo a continuidade da paz e das Nações Unidas.

Mas na Europa fala-se muito da falta de grandes figuras, de estadistas, e diz-se até que o último grande estadista foi Angela Merkel.

Estamos mal servidos. São as crises que fazem os estadistas, homens ou mulheres. E vamos ver o que é que se vai passar.

O regresso da Europa pode ser feito sem essas personalidades?

Aquilo que nós podemos constatar é que quem assumiu a ressurgência da Europa foram os europeus.

Foram os europeus que, de todas as formas, se manifestaram pelas suas posições, pelos seus atos de solidariedade, pelo seu voto a favor de uma posição de firmeza contra a agressão da Rússia na Ucrânia. As elites foram atrás dessa opinião pública europeia, num movimento de baixo para cima.

O único dirigente que até agora verdadeiramente se se destacou foi o Presidente Biden, ironicamente, ele que é um homem da Guerra Fria. Conseguiu garantir até à data que não havia uma escalada de guerra da Ucrânia, e que ela se limitava a uma guerra entre Rússia e Ucrânia. Conseguiu garantir a segurança e a defesa da Europa até este momento, pela diplomacia, pelo pragmatismo e não por nenhuma grande ideia de renovação ou de reordenamento.

Elogiou muito Scholz ou, pelo menos, sublinhou que ele fez uma rutura. E geralmente os momentos de rutura afirmam muitas vezes essas lideranças.

Exatamente. Mas vamos ver se é ele ou se é a ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, quem vai ser o homem ou a mulher da mudança de paradigma que Scholz anunciou.

Também há outra alemã, Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia.

É improvável. Na Alemanha, existem duas personificações do Zeitenwende (mudança de tempo). Uma é o chanceler Scholz, que a anunciou mas qye tem uma concorrente que é Annalena Baerbock, a pacifista que se transformou no esteio da defesa da Ucrânia e da unidade europeia, ao lado da Ucrânia. Vamos ver quem são os novos dirigentes.

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