Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Reportagem

Incêndios de setembro. "Não sei de quem é a culpa, sei que não recebemos o nosso dinheiro"

23 dez, 2024 - 06:03 • Miguel Marques Ribeiro

O fogo de setembro levou-lhes o ânimo e ainda não receberam qualquer apoio estatal. Dois pequenos agricultores da zona Centro do país confessam que já pensaram em desistir dos negócios. A CCDR Centro reconhece que cerca de 40% das verbas aprovadas no apoio excecional dos agricultores continua por pagar.

A+ / A-
Vídeo. Falta de apoios afeta Natal de quem sofreu com os incêndios
Veja o vídeo

Este ano, o Natal "vai ser diferente” para Vitor Sampaio. Em setembro, o incêndio que lavrou em Albergaria-a-Velha, um dos muitos que afetou a zona Centro do país, destruiu a maquinaria deste caseiro de 59 anos, que vive da agricultura.

O curral dos porcos, o palheiro, uma tonelada de víveres, algumas aves que não encontraram refúgio, também desapareceram em minutos, levados por um fogo que "parecia que andava mais do que um carro". Prejuízos que somados ultrapassaram os 9.000 euros. Nesta altura, não consegue cultivar, ou sequer cortar a erva para alimentar os animais.

O apoio extraordinário aos agricultores prometido pelo Governo vai chegar, no seu caso, a um valor próximo dos 6.000 euros. Vitor Sampaio até já assinou os papéis, mas para já continua à espera, ao contrário da necessidade de receber o dinheiro, que não para de aumentar. Vítor sente-se "cada vez mais com a corda ao pescoço”, confessa.

A reforma deste antigo ajudante de motorista “é pequenina” e não lhe permite adiantar do seu bolso os investimentos necessários para retomar a atividade.

“Eu vivo da agricultura, não tenho outro meio de sobrevivência”, lamenta, enquanto deambula pelas ruínas enegrecidas pelo fogo.

Os incêndios de setembro foram dos mais graves dos últimos anos. Provocaram nove mortos, dezenas de feridos e mais de 130 mil hectares de área ardida, que incluíram habitações, terrenos agrícolas e zonas industriais.

Enfrentar o incêndio sozinho

Portugal recebeu 500 milhões de fundos europeus para fazer face aos estragos dos incêndios deste verão, mas, para já, muitos pequenos agricultores continuam a aguardar pelo envio da ajuda prometida.

Em Moutedo, uma aldeia de Águeda, ainda são visíveis as marcas do incêndio que por aqui passou. Na altura, João Cunha viu duas frentes de fogo reunirem-se na encosta onde investiu parte do pé de meia.

“Estávamos prontos para atacar um fogo que vinha do sul. Quando de repente me viro para norte e vejo um outro incêndio virado para a quinta. O fogo do sul e do norte bateram um no outro em cima da minha casa. Foi um estrondo enorme”, recorda o emigrante, que se prepara para regressar a Portugal em definitivo depois de 32 anos a viver e a trabalhar na Suécia.

Estamos aqui sozinhos, isolados, não recebemos a ajuda de ninguém - João Cunha

A violência das chamas foi tão grande que cortou a estrada e isolou a população que teve de enfrentar o incêndio sozinha durante a noite, sem água ou eletricidade.

Dos mais de 15.000 euros de prejuízos contabilizados, entre árvores, toneladas de lenha e um espigueiro que ardeu, João Cunha espera receber 4.500. No entanto, o dinheiro tarda em ser transferido.

“Estamos aqui sozinhos, isolados, não recebemos a ajuda de ninguém”, critica. “Sejam sinceros, sejam honestos. Ganham mais com isso do que dizerem: ‘Vamos pagar, vamos pagar’ e não pagam nada. As pessoas estão cansadas de prometerem tudo e mais alguma coisa e no final de contas não acontece absolutamente nada”.

Metade dos apoios por pagar

Segundo a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR Centro), foram recebidas, até 27 de dezembro, 3.341 candidaturas no âmbito do programa de 'Apoio excecional aos agricultores', que prevê uma ajuda máxima de seis mil euros.

O ministro tinha admitido que os pagamentos estivessem concluídos até final de novembro, mas dos 6.566.747€ já validados, só 4.022.869€ foram efetivamente pagos, isto apesar de o Estado central já ter feito a transferência da verba para as entidades regionais que são responsáveis pela gestão dos apoios.

Sejam sinceros, sejam honestos. Ganham mais com isso do que dizerem: ‘Vamos pagar, vamos pagar’ e não pagam nada - João Cunha

No total, das 2.205 candidaturas validadas, 1.005 estão por liquidar, mas “até 31 de Dezembro está previsto o pagamento de 1.902 candidaturas num valor total aproximado de 6,27M€”.

(Valores corrigidos pela CCDR Centro depois da publicação desta reportagem. Ver nota no final do artigo).

Segundo os dados enviados à Renascença, em cinco dos 16 concelhos da região, mais de metade do valor validado pelos serviços ainda não chegou às contas dos agricultores .

Os municípios de Águeda e de Albergaria-a-Velha não responderam a perguntas enviadas até ao fecho desta reportagem.

Em Albergaria-a-Velha, um dos concelhos mais afetados, há 265.452€ por distribuir. É quase 40% do total previsto (669.401€). Em Águeda, a situação é mais favorável, mas ainda assim mais de um terço do dinheiro continua por pagar.

As promessas não estão a ser cumpridas”, realça Vitor Sampaio, mas o que custa mais é o “jogo do empurra”. “Disseram-me [na Câmara], que pagavam no dia 15 de novembro. Entretanto, era só no dia 15 de dezembro. Ontem [18 de dezembro] liguei para lá e disseram-me que dia 29 deste mês iria chegar o dinheiro, mas que se não viesse para tornar a ligar, que o problema estava na CCDR Centro, que eles é que pagam”.

"Eu não sei se a culpa é da câmara ou da CCDR, sei que estamos lesados e não recebemos o nosso dinheiro", constata o caseiro de Albergaria-a-Velha.

“Desculpam-se uns com os outros. Andamos neste impasse” e o atraso “é enorme”, afirma o agricultor.

Uma experiência que deixa marcas

Ao fim de alguns meses, o desânimo vai-se acumulando. A Associação Cabeço Santo está habituada a lidar com traumas gerados na comunidade pelos incêndios.

Esta organização não-governamental de Ambiente sediada no Feridouro, uma pequena aldeia do concelho de Águeda, “nasceu em 2006, depois de um grande incêndio em 2 de setembro de 2005, que também tivemos na nossa região, de condições bastante catastróficas”, explica o presidente e voluntário da organização, Jorge Morais. Algo semelhante ao que ocorreu em setembro.

Desculpam-se uns com os outros. Andamos neste impasse - Vítor Sampaio

“A experiência é bastante aterradora” e deixa marcas que perduram no tempo. As pessoas “sentem o medo” de poderem voltar a reviver aquele momento, explica.

Um sentimento que é vivido por João Cunha. “O incêndio marcou-me muito. De repente, vemos as paredes a cair. Desmorona-se tudo à nossa frente. Fico sem vontade de fazer mais nada”, sublinha. “Com tanto gosto e carinho que uma pessoa tinha em tudo…”. A ideia de desistir “bate todos os dias à porta. Caiu o sonho que eu tinha de fazer algo pelos pequenos agricultores”.

A mesma ideia passou pela cabeça de Vítor Sampaio “Era para desistir”. “Fiquei meio desequilibrado” nos dias seguintes ao incêndio. A solidariedade dos vizinhos acabou por ser determinante para o fazer mudar de ideias.

Emprestaram-lhe um gerador, necessário para extrair água do poço e assim poder dar de beber aos animais, enquanto não há dinheiro para voltar a fazer a ligação à rede elétrica, e mais algum equipamento com que se tenta ir mantendo à tona.

"Venha lá essa prenda"

Com o Natal a aproximar-se, a noite de consoada vai refletir as dificuldades sentidas nos últimos meses. “Não se pode gastar aquilo que a gente não tem. Vai-se comprando do bacalhau mais barato, daquele mais fraco”, diz este pequeno agricultor.

O sapatinho, também vai estar mais vazio. “Não vai haver prendas. Vão ser só uns chocolatezitos e mais nada, porque não há dinheiro”. A não ser que o apoio prometido chegue até final do mês. “Venha lá essa prenda”, diz esperançoso.

Não se pode gastar aquilo que a gente não tem - Vítor Sampaio

Já João Cunha admite que “o que se passou, a gente não se esquece”, mas sempre vai sublinhando que “o Natal vive-se na mesma”. “Tem de se viver. É uma noite para juntar as ideias com a família, para ver se conseguimos chegar a uma conclusão qualquer que nos dê vontade de continuar em frente. O Natal é bom para isso”, conclui.

[Notícia corrigida e atualizada no dia 27 de dezembro, às 16h25. Após a publicação da reportagem, a CCDR Centro contactou a Renascença para corrigir os dados inicialmente enviados, devido a um problema informático. A entidade atualizou ainda os valores pagos até ao momento]

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+