25 nov, 2024 - 06:00 • Fábio Monteiro
A 25 de novembro de 1975, Portugal está à beira de uma guerra civil. O “Verão Quente” não dá sinais de terminar e o VI Governo provisório, liderado por Pinheiro de Azevedo, está em greve, devido ao cerco ao Parlamento, cerca de duas semanas antes. “Não gosto de ser sequestrado”, justificou o primeiro-ministro.
As movimentações começam durante a madrugada. As bases aéreas de Tancos, Monte Real e Montijo, assim como o Comando da 1.ª Região Aérea de Monsanto, são ocupadas por forças militares ligadas à extrema-esquerda. (Se agem por iniciativa própria ou são incentivadas a isso, é uma questão que, 49 anos depois, ainda não tem resposta definitiva, segundo a historiadora Irene Flunser Pimentel.)
São sete da manhã quando a informação - “O golpe está na rua!” - do sucedido chega à Presidência da República. Em reação, são mobilizadas forças militares, sob o comando de Ramalho Eanes, com o apoio do Governo.
Fernando Rosas, historiador e futuro fundador do Bloco de Esquerda, tem apenas 29 anos. É militante do MRPP e está na redação do jornal do partido - o Luta Popular -, em Lisboa, quando chega a notícia. E não fica surpreendido.
A direção do MRPP, encabeçada por Arnaldo Matos, tem ligações a Ramalho Eanes e à “entourage” do “Grupo dos 9” - membros do Movimento das Forças Armadas (MFA) de tendência política moderada. “Quando os paraquedistas saíram e começaram a ocupar as bases aéreas, já se sabia o que ia acontecer. O contragolpe estava preparado há muito tempo”, lembra Fernando Rosas.
O Luta Popular funciona “numa espécie de clandestinidade”, assim como quase todos os órgãos de comunicação em Portugal. Nos últimos meses, houve saneamentos no “Diário de Notícias” (sob a égide de um futuro Nobel da Literatura), deu-se a ocupação do jornal “República” e também da Rádio Renascença, que culminou na destruição dos emissores da Buraca, por ordem do Conselho de Revolução.
António Campos, membro fundador do PS e braço direito de Mário Soares, é avisado, cedo, de que algo está a acontecer. Dirige-se logo para a sede do Comando Operacional do Continente (COPCON) - organização ligada às forças militares que ocupam as bases aéreas, liderada por Otelo Saraiva de Carvalho, e que acabará extinta até ao final do dia.
Efeméride
Um ano e meio depois do 25 de Abril, o país estava(...)
O socialista estaciona o carro e fica lá dentro, sentado, à espera. Dá-se o acaso de um primo ser militar e responsável pelas informações do COPCON. “Ele, de vez em quando, vinha cá fora dar-me informações”, recorda.
Campos combinara de antemão com o general Pires Veloso, comandante da Região Militar do Norte, ir para o Porto “se a guerra civil começasse”. O arquivo do PS fora retirado da sede do partido e levado para Oliveira do Hospital - a sua terra natal -, só para o caso de algo acontecer.
“Tinha ficado de desviar os aviões de Monte Real para Cortegaça e ficar tudo sob controlo do Pires Veloso. Tínhamos a segurança de fugir todos para o Porto. Mas ficamos todos [em Lisboa].”
Agostinho Lopes, membro da direção regional do norte do PCP, tem então 30 anos. Está no Porto, na sede do partido, acompanhado de alguns camaradas, entre os quais Ângelo Veloso, quando toma conhecimento do sucedido. “O que estava em cima da mesa, era de facto uma contrarrevolução contra o 25 de Abril. O PCP vinha alertando sobre os seus riscos há muito tempo. Com particular foco a partir do mês de agosto”, conta.
O processo “contrarrevolucionário” e “as barreiras criadas à intervenção” do PCP fazem-no temer que alguns partidos caiam na “tentação” levar à “clandestinização do PCP novamente”.
Por volta das 16h00, Costa Gomes contacta Álvaro Cunhal e obtém do PCP a garantia de que o partido não irá mobilizar os seus militantes para qualquer ação.
A notícia das movimentações militares chega ao Parlamento, pela voz do deputado do PS José Luís Nunes, pouco depois. A sessão termina às 16h55. Helena Roseta, deputada na Assembleia Constituinte pelo PPD, tem 27 anos e está presente.
Roseta sai do Parlamento, vai para casa e fica colada à televisão. “O Parlamento foi interrompido, porque estava um golpe de Estado a decorrer.”
Passou pouco mais de ano e meio desde o 25 de Abril de 1974. Portugal ainda não tem Constituição, devido a um nó político e militar que é preciso desatar.
O Governo é tutelado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), por via do Conselho da Revolução, e não tem grande margem de manobra. No pacto MFA-Partidos, assinado a 11 de abril de 1975, ficou estabelecido que, durante um período de transição de cinco anos, Portugal terá duas assembleias a funcionar em simultâneo: uma do MFA e outra eleita pelos portugueses.
Acontece que os resultados das primeiras eleições legislativas da III República, a 25 de abril de 1975, não corresponderam “à maioria [política] que havia na assembleia do MFA”, lembra Helena Roseta. Os partidos polítícos não querem continuar sob tutela militar.
Os deputados da Assembleia Constituinte, por sua vez, não têm poder executivo. A sua missão - sem sucesso, até à data - é fazer a Constituição. Muitos estão sem receber há meses.
“Recordo-me de, à sexta-feira, fazer reunião do PS e os que tínhamos dinheiro emprestarmos aos outros para irem passar o fim de semana a casa”, afirma António Campos.
Cerca de seis meses antes, a 11 de março, deu-se a intentona comandada por Spínola - que serviu para atiçar o “Verão Quente”. Morreu um soldado.
“O 25 de Novembro começou no Porto, no funeral do soldado Luís. O Mário Soares tinha trabalhado para o 25 de novembro desde o 11 de março. No carro, depois do funeral do Luís, combinámos ele demitir-se de ministro [dos Negócios Estrangeiros] do Vasco Gonçalves, para ir tratar do partido ao nível nacional. E depois foi a caminhada toda”, recorda António Campos.
A 8 de julho de 1975, apareceu o “Documento Guia do Projeto Aliança Povo-MFA”, que defende “uma prática democrática, independente e unitária”, sem eleições gerais. E um mês depois surgiu o “Documento dos 9” (também conhecido como Documento Melo Antunes), que propõe “respeitar a promessa do 25 de Abril de eleições livres”.
A tensão está ao rubro. “Havia muitas armas em Portugal nessa altura. Nós estivemos à beira de uma guerra civil. Os partidos tinham armas, os civis tinham armas e os militares tinham armas”, lembra Helena Roseta.
Na sequência do cerco ao Parlamento, a 12 de novembro, a larga maioria dos deputados do PPD, CDS e PS foge para o Porto. “A gente pegou nos carros e marchou, só parámos na Bairrada para comer leitão”, conta Helena Roseta.
Basílio Horta, deputado pelo CDS-PP, integra a comitiva. É estudada a possibilidade de continuar os trabalhos da Constituinte no Porto, mas isso não acontece. “Não havia condições.”
Com raízes familiares em Celorico de Basto, o centrista não regressa logo a Lisboa. “Fui para Celorico e preparei-me para o que desse e viesse.” Sabe das movimentações militares pela RTP, no próprio dia.
Os trabalhos em São Bento são retomados a 18 de novembro e os deputados fazem aprovar uma declaração a exigir que o Presidente da República faça alguma coisa, dado o Governo ter entrado em greve.
A 21 de novembro, Amaro da Costa, do CDS-PP, lança um “apelo à unidade das forças democráticas”. E diagnostica a encruzilhada em que o país se encontra: “É preciso dizer, de forma clara e corajosa, às Forças Armadas que não toleraremos mais quaisquer equívocos sobre o conteúdo mais profundo e autêntico da sua legitimidade revolucionária! Porque é preciso que se diga que a presente crise, crise que quase é permanente, não é civil. É militar.”
Durante a manhã, António Campos assiste na primeira fila a um acontecimento importante: vê Otelo a sair do COPCON, chamado a Belém por Costa Gomes. “Assisti à saída do Otelo, à desistência do Otelo, e fui ter com o Mário Soares, que, entretanto, já não tinha ido para o Porto”, conta.
Mais tarde, os dois socialistas seguem até à sede do PS, na Rua da Emenda. À porta, encontram Edmundo Pedro “com uma metralhadora na mão”.
Helena Roseta está em casa, em Lisboa, agarrada à televisão. Basílio Horta está em Celorico de Basto e faz a mesma coisa.
Na RTP, pelas 18h00, o capitão Duran Clemente, da Escola Prática de Administração Militar (EPAM), apela à mobilização popular junto dos quartéis. Mas, de repente, a emissão pára.
“Começa a dar uma marcha qualquer, e quando a emissão retoma aparece um filme do Danny Kaye. E nós percebemos que o poder tinha mudado”, acrescenta Roseta. “Aí começa toda a gente a telefonar uns para os outros, numa loucura total.”
Basílio Horta sabe do contragolpe também pela televisão. “Vim imediatamente para Lisboa, para o partido.” (De acordo com o registo de presenças do Parlamento, o centrista esteve presente na sessão da assembleia de dia 25 de novembro. A sua memória, todavia, é outra.)
O telefone toca na sede do PCP no Porto. Alguém dá nota a Agostinho Lopes de que o “incidente” foi resolvido e as "intenções das forças de direita e revanchistas" não vão "avançar”.
Pelas 19h15, os militares que ocupam a base aérea de Monsanto rendem-se. Em Monte Real e no Montijo, só já de noite.
Perto das 21h00, Costa Gomes, com Otelo ao lado, faz uma comunicação ao país, assegurando que o MFA está coeso, apesar das divergências de opiniões entre alguns membros. O Presidente da República denuncia o que chama de "ofensiva de boatos, que está a conduzir o país a um ambiente doentio de agitação e ansiedade", baseados na "projeção da ideia de que há antagonismos graves no seio das Forças Armadas". É imposto o estado de sítio e recolher obrigatório na região de Lisboa, durante oito dias.
Fernando Rosas ainda está na redação do “Luta Popular”, há um jornal para pôr “cá fora”. Apesar das circunstâncias, consegue. E depois fica “à varanda, a ver passar os tanques”.
As movimentações militares apenas terminam no dia 26. Três militares morrem, num confronto entre o Regimento de Comandos da Amadora e uma unidade da Regimento de Polícia Militar. É o fim do Período Revolucionário Em Curso.