14 nov, 2024 - 06:30 • Salomé Esteves
As mulheres ganham, no geral, menos do que os homens. É verdade em Portugal e em todos os países do mundo.
Apesar de constituírem a maioria da população, de igualarem os homens, em número, no mercado de trabalho e de terem níveis de formação superiores, o rendimento médio de uma mulher permanece abaixo de um par do sexo oposto. Cada hora de trabalho de uma mulher valia, em 2022, menos 12,5% do que a de um homem, concluem dados do Eurostat.
Portugal celebra o Dia Nacional para a Igualdade Salarial nesta quinta-feira, 14 de novembro. Na sexta-feira, A União Europeia assinala o Dia Europeu da Igualdade Salarial. Enquanto apontam as datas, há políticas em curso para mitigar as diferenças de rendimento entre homens e mulheres e para trazer transparência a esta discussão.
A disparidade salarial é uma tendência antiga, que se agravou no pós-pandemia e que pode estar a 131 anos de ser resolvida. Mas, como acontece em qualquer regra, há exceções.
Ângela, Patrícia e Laura recebem salários mais altos do que os seus parceiros – ou do que um antigo namorado -, enquanto Gabriela tem o salário mais alto da sua equipa. São vitórias pessoais que se traduzem em pudor e inseguranças dentro de relações, que obrigam a uma gestão cuidada das conversas e dos calendários, ou que, na melhor das hipóteses, não levantam qualquer questão.
Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego
A presidente da Comissão para a Igualdade no Traba(...)
Ângela, nome fictício, ganha, numa semana, “o mesmo que [o marido] ganha no mês inteiro”. Ela trabalha numa empresa tecnológica alemã e faz trabalhos de tradução nas horas vagas, para os Estados Unidos, enquanto ele é cozinheiro, trabalha 40 horas por semana e ganha “só um bocadinho mais do que o salário mínimo”.
Aos 30 anos, o rendimento de Ângela tem permitido ao casal fazer alguns investimentos para ambos, mas admite que, apesar de terem uma gestão económica que respeita os dois, a diferença salarial “quase pornográfica” continua a ser “um bocadinho difícil para ambos”.
Dentro de casa, Ângela e o marido mantêm uma estrutura “extremamente paritária”, em que as tarefas e os contributos se equilibram. Enquanto, “ele lida muito mais com os aspetos das lides domésticas”, Ângela assegura “a parte burocrática e administrativa da casa”.
É este jogo de responsabilidades que permitiu a Ângela progredir na carreira nos últimos dois anos. Nos dias em que tem de estar à secretária “12, 13 ou 14 horas”, o marido “alivia o fardo” do “trabalho invisível” em casa. E não deixa de sublinhar: “é mérito meu, sem dúvida, mas também há muito mérito dele e do que ele faz por mim”.
“O sítio onde estou é mérito meu, sem dúvida, mas também há muito mérito dele e do que ele faz por mim”
Ângela reconhece que é “um exercício constante” manter o equilíbrio de uma relação em que acontece “quase o oposto” da norma. Às vezes, acrescenta, isso é feito “com trabalho doméstico, às vezes é com trabalho emocional, outras vezes é com dinheiro”.
“O que é expectável de um homem da idade dele, casado, é que seja ele a bancar quase tudo. Portanto, é claro que isto o afeta a nível da imagem que ele tem dele próprio”, explica.
Também Patrícia, nome fictício, viveu uma relação, entretanto terminada, em que a diferença salarial era um constrangimento. Durante os anos em que que estiveram juntos, Patrícia e o ex-companheiro tinham vencimentos díspares. Enquanto gestora de comunicação e de marketing, Patrícia recebia cerca de “300 euros líquidos por mês” a mais do que o designer multimédia.
Ao contrário de Ângela e o marido, Patrícia ganhar mais do que o ex-namorado “trouxe algum pudor em falar sobre dinheiro”. “A conversa não era muito transparente”, acrescenta, o que, “para o parceiro, sempre trouxe alguma irritação”.
Quando faziam planos a dois, “seja um jantar ou uma viagem”, muitas vezes Patrícia “oferecia uma parte dos gastos” para que pudessem “fazê-lo em conjunto”.
A diferença salarial não foi a razão que separou o casal, mas estava sempre presente. Como Ângela, Patrícia acredita que “ainda há alguma expectativa de que seja o homem a ganhar mais”, acrescentando que “isso pode trazer alguma insegurança ao casal e à valorização pessoal que a outra parte atribui a ela mesma”. Mas, frisa, o vencimento do ex-namorado ser mais baixo “não coloca o valor dele em causa".
A disparidade salarial “pode trazer alguma insegurança ao casal e à valorização pessoal que a outra parte atribui a ela mesma”
Na altura, com 29 anos, Patrícia trabalhava no setor social e recebia acima da média entre organizações sem fins lucrativos, mas o seu vencimento estava a abaixo do que se praticava no privado. Hoje, empregada numa empresa de muito maior dimensão e depois de um “aumento anual líquido na ordem dos três, quatro mil euros”, conta que o salário é desajustado do número de horas e de tarefas que tem atribuídas.
“Sinto que trabalho muito mais horas do que trabalhava antes e não estou certa de que o rendimento que passei a ganhar a mais compense as horas a mais que eu trabalho. Diria até que não compensa”, confessa.
Legislativas 2024
A desigualdade entre homens e mulheres estende-se,(...)
Laura, nome fictício, é mais jovem do que Patrícia, mas tem uma diferença salarial semelhante com o namorado, “mais ou menos de 300 euros brutos”.
O dinheiro nunca foi um problema para o casal: “somos muito abertos em relação a isso", garante. Mas a diferença salarial, conta, acaba por ser anulada pelas despesas que Laura tem de pagar. Enquanto o companheiro vive numa casa da família, a economista de 24 anos tem de pagar a renda de um quarto.
Ao pensar no futuro, o cenário inverte-se. Comprar uma casa está nos planos do casal e, nesse caso, é o companheiro que espera assegurar a maior parte dos custos, uma vez que “ele tem mais dinheiro poupado”, por ser três anos mais velho.
O casal sempre estudou o mesmo e estão empregados na mesma área. Laura trabalha em “regulação económica e ele está a trabalhar em crime financeiro”.
Aos 24 anos, Laura está contente com a responsabilidade que tem e com o salário que recebe, “o suficiente para ter uma vida confortável”, apesar de apontar que “a progressão salarial, se continuar no mesmo sítio, não vai ser tão expressiva”.
Já Gabriela foi promovida mais cedo do que o normal dentro da sua empresa. Em vez de progredir automaticamente entre escalões, passou três níveis numa só promoção, tornando-se uma das pessoas mais seniores da equipa, especializada em “risk and compliance” em tecnologia.
Este salto de senioridade não significou só abraçar um conjunto novo de tarefas, mas receber, pelo menos, cerca de “mais dez mil euros por ano do que a maior parte das pessoas”. Gabriela sabe que “salário é extremamente competitivo”, mesmo quando comparado com empresas multinacionais.
Se, em muitos cenários, uma promoção repentina significa uma dinâmica diferente, na sua equipa “não há comentários” nem “aquele burburinho”. Antes, Gabriela passou a “ser uma alternativa aos gerentes” e “a pessoa a quem recorrer na equipa”, dadas as novas responsabilidades que assumiu.
Mas a senioridade que conquistou não impede Gabriela de “tentar fazer um salto na carreira”. No último ano, quis assumir mais tarefas de risco, que “são de muito maior responsabilidade” e estas, lamenta, não vê “refletidas no cargo nem no salário, por enquanto”. Neste momento, está “em negociações”.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a média de rendimento das mulheres é sempre inferior ao salário médio em Portugal, mesmo quando separadas as faixas etárias. Já nos homens, o cenário é quase o oposto: apenas os jovens dos 18 aos 34 anos recebem, em média, um vencimento inferior à média nacional. Em ambos os sexos, são os salários dos trabalhadores com mais de 65 anos, os que mais oscilaram desde 2012.
Ângela conta que esta diferença é muito notória nas empresas portuguesas em que trabalhou no início da carreira. Atendendo à sua sorte nas portas que tem “conseguido abrir”, lamenta que um bom rendimento não seja uma realidade para muitas mulheres que o mereçam: “É particularmente doloroso saber que há tantas mulheres tão competentes que estão presas a salários absolutamente medíocres a ver homens nas empresas delas ou espaços onde trabalham a atingir cargos de chefia e liderança com muito mais facilidade”.
Contudo, ao passo que os rendimentos têm, na generalidade e na média, aumentado desde 2012, a disparidade entre o rendimento médio horário acentuou-se pelo terceiro ano consecutivo. A diferença entre o valor de uma hora de trabalho de uma mulher e de um homem, que estava a decrescer desde 2017, aumentou depois da pandemia e fixou-se em 12,5% em 2022.
A disparidade salarial entre género, a chamada “gender pay gap”, varia ligeiramente conforme a fonte que calcula os dados e a metodologia que aplica. Esta taxa pode ser calculada tendo em conta o rendimento bruto, líquido, as prestações sociais, o tipo de contrato e mesmo a indústria.
O Relatório Global para a Desigualdade Salarial de Género de 2023 (“Global Gender Gap Report”) da OCDE concluiu que apenas 31% das mulheres empregadas desempenham uma função administrativa ou ocupam cargos de alta responsabilidade. Ao olhar para empresas detidas por mulheres, a percentagem cai para os 8%.
Apesar de existirem ligeiramente mais trabalhadoras em Portugal – 2.45 milhões para 2.43 milhões - as mulheres têm mais desvantagens. Não só a taxa de desemprego é superior para as mulheres (6.6%, comparativamente com 5,7%), como é muito mais provável que uma mulher tenha um trabalho em tempo parcial (36.6% para 27.39%). Já tendo em conta a dualidade entre a vida profissional e familiar, as mulheres são também quem dedica mais tempo a trabalho doméstico e cuidador não pago, com uma diferença de sete pontos percentuais (17.81% para 10.24%).
A proporção de mulheres que completam qualquer curso do ensino superior é maior. Enquanto cerca de um quarto dos homens entre os 25 e os 64 anos têm um curso superior, mais de um terço das mulheres têm o mesmo nível de educação. Na faixa etária entre os 30 e os 34 anos – onde se incluem Ângela, Patrícia e Gabriela -, a diferença acentua-se: os homens ficam nos 32%, enquanto as mulheres caminham para os 48%.
Se nada mudar, serão necessários 131 anos para atingir a paridade salarial entre géneros. Afinal, nenhum país conseguiu igualar os rendimentos entre homens e mulheres.
Em 2020, a União Europeia avançou com uma diretiva para que os estados-membros implementassem medidas de transparência da divulgação e partilha de vencimentos. Segundo a UE, “muitas mulheres desconhecem que existe discriminação salarial no seu local de trabalho”, reforçando que “a falta de transparência não permite o reconhecimento das razões que levam a estas desigualdades”. Esta diretiva integra a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025.
João Pacheco, da consultora Mercer – que realizou um estudo sobre a transparência salarial - não tem dúvida de que a implementação da diretiva europeia para a transparência salarial é fundamental para alcançar a paridade de rendimentos mais cedo. Afinal, esclarece, o principal objetivo de políticas de transparência salarial é “mitigar o gap que existe entre os géneros”, esclarece.
Está previsto que um conjunto de medidas europeias entre em vigor até 2026, mas empresas em Portugal e na Europa estão relutantes em fazer alterações às suas políticas. Para 40% das empresas, concluiu a Mercer, esta demora deve-se ao desconhecimento sobre esta diretiva e às suas implicações.
Para João Pacheco, a demora na aplicação das medidas assenta na própria definição do valor do trabalho. Ou seja, será difícil estabelecer um “salário igual para trabalho de valor igual”, quando esse valor não é claro e, acima de tudo, “não é uma prioridade para muitos decisores” que possam ter outras preocupações.
Entre os 146 países analisados no relatório da OCDE, Portugal surge em 32.º, quando, em 2022, atingiu o 29.º lugar no índice na igualdade salarial. O estudo da Mercer é independente do relatório anual da OCDE, mas as conclusões são semelhantes.
João Pacheco revela que o estudo concluiu que “os países nórdicos estão claramente na vanguarda” e “alguns já têm políticas muito concretas de transparência salarial e outros já estão a concretizar a transposição da lei europeia para a lei nacional”. Portugal, refere, não está nesse ponto, mas também “não está na cauda”.