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Reportagem

Aos 50 anos, Ana conseguiu um contrato de trabalho (a ganhar 300 euros)

17 out, 2024 - 06:00 • Ana Catarina André

Ana Santos trabalha desde os 21 anos. Acumulou empregos precários, nunca conseguiu juntar dinheiro e chegou mesmo a passar fome. Dez por cento dos trabalhadores estão em risco de pobreza, segundo dados do Eurostat.

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Aos 50 anos conseguiu um trabalho com contrato (a ganhar 300 euros)
Ouça a reportagem de Ana Catarina André. Ilustração de Salomé Esteves

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Ana Santos tinha 50 anos quando conseguiu assinar, pela primeira vez, um contrato de trabalho que a deixou satisfeita. “Ganhava cerca de 300 euros, mas pelo menos já tinha descontos, já tinha ADSE”.

Recorda que, nessa altura, em 2017, esse rendimento mensal provinha de umas horas de trabalho em duas escolas da cidade de Bragança - numa fazia limpezas, noutra era ajudante de cozinha.

“Depois de tantos anos de precariedade, consegui sentir-me mais realizada”, afirma. Com a ajuda dos filhos mais velhos, que, entretanto, tinham entrado na vida ativa, foi conseguindo sobreviver, “contando os tostões” à medida que o calendário avançava. “Primeiro pagava as contas. O resto ia gerindo”, sublinha em declarações à Renascença.

Foi assim ao longo da vida. O trabalho nunca lhe bastou para viver sem preocupações financeiras. Acumulou empregos mal pagos – às vezes, dois ou três ao mesmo tempo. Nunca conseguiu juntar dinheiro. Nunca levou os filhos de férias - nem, por um dia, para verem o mar.

Há cinco anos, após décadas a tentar encontrar um emprego estável, conseguiu finalmente entrar nos quadros de um agrupamento de escolas em Bragança, como assistente operacional. O salário, porém, nunca passou do ordenado mínimo, vencimento que continua a auferir atualmente aos 57 anos. “Tenho de ter outros trabalhos para fazer face a despesas inesperadas. O ordenado mínimo é uma ilusão. Continuo pobre.”

"Trabalhadores pobres são realidade muito crítica"

Em Portugal, de acordo com o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento de 2022, há 2,1 milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social. Destas há uma parte que, tal como Ana Santos, trabalha, mas não consegue fazer face às necessidades básicas. Segundo dados do Eurostat de 2023, no país há 10% dos trabalhadores em risco de pobreza, um número que diminuiu 0,2% face ao ano anterior.

Uma realidade notória entre os que trabalham no terreno. Paulo Pereira, diretor do Centro Porta Amiga da Assistência Médica Internacional (AMI) de Coimbra, diz que, entre os que pedem ajuda à instituição, há também pessoas que trabalham e mesmo assim não conseguem suprir as necessidades básicas.

“Se o trabalho é o fator de inserção primordial, e esse trabalho não resolve a satisfação das necessidades básicas de um agregado familiar, preocupa-nos muito”, afirma o responsável, acrescentando que “o salário mínimo, apesar de estar a aumentar, não é suficiente para fazer face às despesas, desde logo por causa do preço da habitação”.

Nos primeiros seis meses de 2024, a AMI apoiou 6.772 pessoas carenciadas, o que representa um aumento de 5% face ao mesmo período do ano passado. A maioria dos pedidos de apoio é de cidadãos de nacionalidade portuguesa.

A coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, Sandra Araújo, chama a atenção para taxa de pobreza entre os desempregados (46,7%) e entre as crianças e os jovens (20,7%).

Mas não só. “A questão dos trabalhadores pobres é ainda uma realidade muito crítica no nosso país”, refere, explicando que em muitos casos se deve a contratos de trabalho incertos e precários e a baixos salários.

“Alguns destes trabalhadores têm baixa intensidade laboral, ou seja, trabalham poucas horas ou a tempo parcial não por opção, mas muitas vezes por questões de saúde”, indica Sandra Araújo, acrescentando que entre estas situações há também famílias monoparentais, sobretudo mulheres.

A pensar neste grupo, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 pretende reduzir para metade a taxa de pobreza dos trabalhadores pobres. Sandra Araújo diz que “o Governo já assumiu compromissos para continuar a trajetória de valorização do salário mínimo nacional, mas também do salário médio”.

Para a responsável, é importante que não haja “desvios em relação aos compromissos assumidos”, para “fazer tudo do ponto de vista de política pública, para atingir o efeito esperado nos principais indicadores de pobreza e exclusão social”.

“Custava-me ir ao supermercado, pedir para ficar a dever”

Em Portugal, continua a ser difícil sair do ciclo da pobreza. Ana Santos sabe disso, mas nunca aceitou baixar os braços. Com os três filhos ainda pequenos, deixou o trabalho na agricultura para se mudar para Bragança, a 100 quilómetros da localidade de Bemposta, onde morava com a família.

Tudo para fazer um curso de auxiliar de ação educativa, na esperança de ter uma vida melhor. “Os gémeos ficaram com o pai e eu fui com o mais novo”, diz. Esta formação dinamizada pelo Centro de Emprego permitia-lhe ter um rendimento mensal que dava “para pagar o básico”.

O esforço, porém, não trouxe os frutos desejados. “Não consegui encontrar um emprego estável e tive de voltar aos trabalhos precários. Fazia umas horas nas limpezas, ia a um solar fazer umas camas, e ainda lavava loiça num restaurante. Estive assim nove anos.”

Os filhos habituaram-se a crescer com o que havia. “Tínhamos de ter algumas regras na alimentação, nos iogurtes, por exemplo. Eles cresceram a sentir que não podiam ter o mesmo que os colegas. Às vezes, diziam-me: ‘Mãe, precisava de umas sapatilhas. Será que podes comprar?’.”

Numa das fases mais difíceis, em que o marido ficou desempregado, Ana Santos não conseguia ganhar mais de 400/500 euros, mesmo acumulando três empregos. “Custava-me ir ao supermercado, pedir para ficar a dever. Era uma bola de neve. No mês seguinte, pagava, mas ficava logo sem dinheiro”, recorda, assumindo que chegou a passar fome. “Era complicado. Tentei desenrascar-me sem pedir ajuda. Tinha vergonha. As pessoas conheciam-me.”

Ainda assim, acreditou que os estudos a poderiam ajudar a progredir. Pouco depois, fez um novo curso que lhe dava equivalência ao 12.º ano e que lhe dava formação na área dos cuidados a idosos. Saíra da escola, na adolescência, sem completar o 6.º ano de escolaridade. “Fui criada pelos meus avós, porque perdi os meus pais muito cedo – era um bebé de 18 meses. Com a morte da minha avó, tive de sair da escola para cuidar do meu avô que tinha problemas de saúde. Tinha 12 anos.”

O regresso aos estudos para acabar o ensino secundário voltou a não ter os resultados esperados. O almejado contrato de trabalho parecia uma miragem. Foi, então, que decidiu regressar a Bragança, onde fez mais uma formação como técnica de apoio à gestão, no Centro de Emprego, e trabalhou, durante algum tempo, nas limpezas de um hospital. “Só consegui tirar a carta de condução há 10 anos. Andei na apanha da castanha e juntei uns trocos para conseguir pagar a carta e ter um carrito.” Mais um esforço entre tantos.

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