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Maternidade e emprego

“Uma mãe é um peso” para muitas empresas. E isso “não é justo”

16 out, 2024 - 06:30 • Salomé Esteves

As mães portuguesas são das que mais trabalham no espaço da OCDE e, em Portugal, a lei protege a grávida e a mãe trabalhadora. Mas há situações de discriminação em todas as áreas. Sete mulheres contam, na primeira pessoa, como a maternidade lhes trouxe decisões difíceis, ansiedade, advogados, perda de responsabilidade e quebra de rendimento.

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Marina foi "convidada a sair” do trabalho por se ausentar para acompanhar o tratamento de quimioterapia da filha. Francisca sente que regressou da licença com pouco trabalho. Maria Monteiro perdeu o potencial de promoção. Sara adiou a gravidez para se dedicar ao internato. Joana foi incitada a despedir-se durante a gravidez. Aurora perdeu horas e rendimento num contrato de trabalho precário. Mas, para Rita, duas licenças de maternidade representaram duas experiências positivas.

Sete mulheres, seis mães, cinco nomes fictícios. Sete histórias diferentes sobre maternidade, em que se contam saídas de empresas, sentimentos de injustiça, licenças alargadas, decisões sobre adiar a gravidez e regressos pejados de culpa.

Cada uma das sete histórias representa um único testemunho, mas todas estas mulheres acrescentam exemplos de amigas, colegas e conhecidas, que ficam por escrever. Afinal, conta uma das mulheres: “qualquer rapariga-mãe vai responder: eu tenho uma coisa para contar”.

Marina. Quando a saúde da criança está em causa

Marina, nome fictício, teve uma gravidez e licença de maternidade normais. Durante esse tempo, a empresa onde trabalhava há seis anos e onde estava colocada nos quadros superiores agiu como a lei pede.

Só mais tarde viriam a levantar problemas.

Em 2022, a filha de Marina, então bebé, “foi diagnosticada com uma doença oncológica”. À partida, seriam “pelo menos, dois anos de tratamentos de quimioterapia”.

Durante o primeiro ano do tratamento da bebé, Marina esteve completamente ausente da empresa para acompanhar os tratamentos da filha. Quando voltou, havia todo um ano de quimioterapia pela frente.

"Com o diagnóstico soubemos à partida que seriam pelo menos dois anos de tratamentos de quimioterapia."

Ao voltar à empresa, partilhou com os superiores “desde logo” que “teria de a acompanhar a consultas agendadas duas vezes por mês”. Além disso, como acontece com “qualquer criança”, teria de ficar com ela “sempre que ficasse doente”.

Marina estava convicta de que voltar ao trabalho depois de um ano ia corresponder a “um regresso à normalidade”, mas o que a recebeu foi “uma equipa reestruturada sem [ela] e uma mudança de funções forçada”.

Como “não estava sempre lá”, de acordo com a justificação da empresa, perdeu responsabilidades e tarefas. E foi nesta situação, a conciliar um trabalho menos exigente com o tratamento da filha, que se manteve mais um ano.

Até que Marina teve “necessidade de estar de baixa psicológica durante alguns dias”. “Logo no início” desse período, é contactada pelos recursos humanos sobre a sua posição na empresa. Quando essa licença terminou, dias depois, foi “convidada a sair”.

Mas durante a gravidez e mesmo no ano em que se ausentou para acompanhar a quimioterapia da filha, na empresa de Marina “mostraram-se sempre disponíveis” e nada fazia prever a hostilidade que acabaria por se seguir.

Apesar de a postura dos superiores ter abalado a estabilidade do núcleo familiar, Marina não procurou uma ação contra a empresa. Apenas recorreu a “aconselhamento antes de assinar o acordo de rescisão” com um advogado.

Hoje, a filha é saudável e alargar a família até pode estar no horizonte, mas a decisão vai ser mais demorada. Esta situação, confessa, “irá influenciar o ‘timing’ em que planearmos ter mais filhos”.

Francisca e Maria Monteiro. Quando o regresso é difícil

Depois de uma grande ausência de um trabalho vem sempre uma maratona. Os ritmos não são os mesmos e as tarefas mudaram, entretanto. Para as mães que regressam, o equilíbrio entre as responsabilidades no trabalho e o tempo com os filhos trazem um sentimento em comum: culpa.

Francisca e Maria Monteiro, ambas com nome fictício, têm histórias semelhantes. As licenças de maternidade correram dentro do normal, mas, depois, há promoções que não chegam e horas do banho e do jantar em que se querem presentes.

Antes de engravidar, os últimos cinco anos da vida de Maria Monteiro eram recheados de avaliações excelentes e promoções verticais. Durante esse tempo, casou-se e tudo continuou a correr bem.

Com a gravidez, a executiva de marketing de vendas sabia que, no mínimo, estaria entre seis e oito meses ausente. Para prevenir que o trabalho ficasse por fazer na sua ausência e para evitar ser prejudicada na avaliação, trabalhou até às 35 semanas, altura “em que já estava exausta”.

Quando regressou, depois do nascimento da bebé, “disseram logo: ‘é muito difícil avaliar quem foi de licença”. O sistema de quotas da avaliação, clarifica, não tinha em conta o excesso de trabalho que tinha feito na preparação da licença. “Apesar de ter feito mais do que era expectável para a minha função, porque fui mãe e estive de licença, não me podiam dar a avaliação melhor, que era o que eu tinha sempre [...] e deixei de ter potencial de promoção”, lamenta.

O que é incompreensível para Maria Monteiro, é que as empresas parecem não perceber que “uma mãe é mesmo um perfil muito válido”.

“Não tens tempo ilimitado no trabalho, por isso, focas-te muito mais”

Para a jovem mãe, há um paradoxo muito claro entre a progressão na carreira e a maternidade: “a promoção vem sempre com alguma coisa atrás. Perdes tempo com o teu filho”. À Renascença, lembra uma conversa que teve, uma vez, com uma amiga na mesma situação, que a levou a perceber: “ninguém se vai lembrar se eu dei mais uma hora no trabalho, mas a minha filha vai”.

Enquanto o marido aceitou um novo trabalho quando a bebé nasceu, para assegurar melhor rendimento para a família, Maria Monteiro lamenta que, para as mães, a realidade seja diferente: “tens um prazo para apostar na tua carreira”.

Numa gestão familiar em que nem sempre os horários se coordenam e Maria Monteiro não tem “ajuda de manhã ou em parte da noite”, para o casal há “sempre este duelo” entre a família e o trabalho. E, no fim do dia, o que resta é a culpa: “estás sempre a culpabilizar-te", ora porque sobram tarefas pendentes no escritório, ora porque passou menos uma hora em casa.

Francisca, nome fictício, é advogada e, apesar de o emprego ser muito diferente do de Maria Monteiro, a dualidade entre querer progredir na carreira e insistir em estar presente para os filhos é em tudo semelhante.

Depois de passar por duas licenças de maternidade no mesmo escritório de advogados, Francisca notou que, ao regressar, “os assuntos estavam todos redistribuídos” e chegou a considerar que “estava com pouco trabalho”.

Apesar de não ter a disponibilidade que outros colegas (sem filhos) têm para prolongar o dia de trabalho, Francisca gostava de ter as mesmas responsabilidades que tinha antes de ser mãe. “Quero trabalhar e quero acompanhar os assuntos que sempre acompanhei, mesmo com menos disponibilidade de horário”, mas “enquanto eu saio às sete, eles [quem não tem filhos] conseguem ficar até às oito ou nove”.

No entanto, essa é uma cedência que Francisca não faz: “eu quero estar presente no momento do jantar e do banho dos meus filhos. Não quero ser essa mãe ausente que nem sequer ao final do dia está em casa. Já me chega estar fora o dia inteiro”.

"Não quero ser essa mãe ausente que nem sequer ao final do dia está em casa. Já me chega estar fora o dia inteiro."

Como outras advogadas e trabalhadoras independentes, Francisca não teve direito à licença de maternidade tradicional. No caso de advogadas e juristas, o período que equivale à licença de maternidade é estabelecido por cada escritório e pode variar – ou nem existir.

As trabalhadoras independentes que não são advogadas podem aceder ao subsídio parental da Segurança Social, mas apenas em situações específicas. Podem pedir este apoio as mulheres inscritas no Registo Profissional dos Profissionais da área da Cultura, as que contribuírem com o Seguro Social Voluntário — como bolseiras de investigação —, as grávidas que receberem o subsídio de desemprego, invalidez ou sobrevivência e, também, quem esteja em pré-reforma.

Estas trabalhadoras também têm direito ao abono pré-natal e ao abono de família. Mas, como estes são dependentes do rendimento, lembra a jurista Rita Garcia Pereira, os valores atribuídos a trabalhadores independentes serão forçosamente mais baixos.

O que acontece com os advogados é diferente. Como não podem aceder às licenças de maternidade tradicionais, Francisca e o marido, que tem um contrato por conta de outrem, não puderam partilhar a licença de parentalidade. Por ser advogada, Francisca não é abrangida pela medida.

Esta é uma das razões que leva a jurista Rita Garcia Pereira a afirmar que os advogados “estão infra os trabalhadores independentes”. Como não estão abrangidos pela Segurança Social, quando têm filhos têm direito “apenas a um adiamento de prazos”, o que significa, acrescenta, “que têm de continuar a trabalhar”.

A especialista em direito do trabalho diz mesmo que “não podemos falar de grandes direitos de parentalidade para as advogadas”. Afinal, os prazos da justiça não podem ser adaptados à maternidade de uma advogada ou jurista, explicando que “se há um julgamento, o julgamento não vai parar” porque a profissional em causa teve um bebé.

“Não podemos falar de grandes direitos de parentalidade para as advogadas”

Na segunda gravidez, Francisca enfrentou uma situação de risco. Teve de se ausentar do trabalho mais cedo e não pode esperar até à data do parto para iniciar a licença. Como esta dispensa, assim como o horário reduzido para a amamentação, não são direitos de uma advogada grávida ou mãe, Francisca pode ausentar-se porque o escritório o permitiu.

Depois, por se “sentir mal por já ter estado vários meses ausente” e exceder o tempo estabelecido, usufruiu da licença mínima que o seu escritório estabelece — três meses —, em vez de optar por estar em casa mais um mês sem receber. Mas regressar tão cedo, admite, “foi extremamente violento”.

O receio de estar ausente do trabalho e a instabilidade das licenças de maternidade e de parentalidade para trabalhadores independentes foi, aliás, o que levou a advogada a adiar a decisão de expandir a família. Foi apenas quando integrou o atual escritório que avançou com “a decisão de ter filhos, por saber que as condições eram melhores”. Mas também não hesita em confessar: “claro que gostaria de ter sido mãe mais cedo”.

Os primeiros meses de vida da segunda filha, garante, só foram possíveis graças ao apoio familiar, especialmente dos seus pais e sogros.

Hoje, permanece no mesmo escritório. Ainda que as licenças lhe tenham parecido curtas, admite que o seu local de trabalho, ao contrário de outros que conhece, tem bastantes apoios para a trabalhadora que engravide. Mas, em termos de “organização familiar, é impensável ter mais um filho. Não dá”.

Sara. Quando a decisão é adiada

Como Francisca, há outras mulheres que adiam a decisão de ter filhos para priorizar a carreira.

Sara Ferreira é assistente hospitalar no SNS. Aos 33 anos, depois de completar o internato, está no patamar mais baixo na carreira de médica especialista de Endocrinologia no Serviço Nacional de Saúde.

Durante os anos que passou também numa relação longa, entretanto terminada, Sara adiou a decisão de ser mãe para completar o internato.

Recentemente, já numa nova relação, Sara decidiu fazer criopreservação de ovócitos, ou seja, congelar óvulos para ter a garantia de que pode engravidar mais tarde. Por se tratar de uma relação recente, ser mãe não é uma opção neste momento.

A jovem médica fala de uma “cultura” em que muitas mulheres adiam a maternidade pela mesma razão, e que acabam por engravidar “logo, logo a seguir” ao fim do internato, em média nos seis meses seguintes.

“A principal questão em adiar a maternidade e paternidade durante o internato é que temos um currículo para cumprir e apresentar no final e há a perceção de que, se formos mães, não teremos tempo para o fazer. O mesmo não acontece com os homens”, acrescenta.

Apesar de as circunstâncias relacionais também terem impactado este adiamento da maternidade, Sara não deixa de olhar para trás com alguma tristeza: “Se não fosse esta cultura, eu teria sido mãe mais cedo e não teria de passar por isto.”

O tratamento a que se sujeita para preservar a fertilidade é “invasivo”, “muito caro” e “envolve estimulação hormonal”. Além disso, custa, normalmente, por volta dos dois mil euros, mas há quem pague até seis mil.

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"Se não fosse esta cultura, eu teria sido mãe mais cedo e não teria de passar por isto"

No fundo, a decisão foi difícil e simples em simultâneo: “Eu quero ser mãe e não quero ficar sem essa possibilidade”.

Como Sara, muitas médicas passam por uma decisão semelhante e sentem que, se engravidassem durante o internato, essa decisão as prejudicaria. “Foram anos férteis da minha vida que passaram e não são muitos que tenho pela frente. É uma coisa muito fria de se dizer, mas é verdade.”

“Eu quero ser mãe e não quero ficar sem essa possibilidade”

No serviço de Sara, a maioria são mulheres, todas em idade fértil e muitas têm filhos, “sem qualquer entrave e sem qualquer preconceito”, mas isso não reflete a maioria da realidade de outros serviços hospitalares. Em especialidades cirúrgicas, exemplifica, é mais difícil, porque “são muito mais horas e são muito mais homens”.

Afinal, “a medicina é uma especialidade muito competitiva, com horários muito exigentes”, e mesmo quando as crianças crescem “é difícil conciliar” duas realidades que são tão árduas: a medicina e a maternidade.

“O trabalho tem de ser feito na mesma”, lembra, e “tem de ser distribuído por quem fica” — mesmo quando há prioridades familiares, ou licenças de maternidade ou de acompanhamento a filhos, que têm de ser atendidas.

De cada vez que há um concurso para um serviço, Sara aponta que há sempre aquele comentário: “Esperemos que seja um homem, porque estamos fartos de mulheres em idade fértil.” Uma postura, lamenta, que é muitas vezes assumida por médicas que já foram mães.

Joana e Aurora. Quando são mulheres – e mães – a causar pressão

Mas Sara não é a única a apontar a incoerência de mulheres (e mães) que intimidam, pressionam ou discriminam outras mulheres (e mães) trabalhadoras. Também Joana e Aurora (nomes fictícios) se depararam, e chocaram, com situações desagradáveis com superiores, durante e após a maternidade.

Joana Gonçalves estava hesitante em começar um trabalho como designer de interiores para uma colega que admirava. Foi apenas à terceira entrevista que aceitou acatar uma série de novas responsabilidades e fazer, vezes e vezes, os 300 km entre Porto e Lisboa.

Durante um período de particular responsabilidade, e sem planear, Joana engravidou. No início, queria guardar essa informação para um momento oportuno, em que tivesse a certeza de que a gravidez era viável. Mas um acidente de trabalho obrigou-a a falar mais cedo.

“Não era a forma como lhe queria contar” que estava grávida, confessa Joana.

“Tive de ir para o hospital de noite e fui forçada a contar-lhe porque no dia seguinte ia fazer uma montagem para Lisboa”. Depois de passar a noite no hospital, Joana não se sentia capaz de assegurar uma tarefa que envolvia tanto esforço físico.

“Não era a forma como lhe queria contar”

Depois desse incidente, a chefe “nunca, nunca, nunca mais tocou no tema gravidez”, nem para fazer perguntas comuns. “Era como se eu nunca lhe tivesse contado nada.”

Entre viagens longas e trabalho físico intenso, a designer de interiores começou a sentir o corpo a desgastar-se. Passados poucos meses, “devido a uma doença autoimune e a esta pressão constante e stress, o médico prescreveu-me baixa por gravidez de risco”.

Nesse momento, o “real risco de perder o bebé” aliou-se a outra preocupação: a chefe “começou a pressionar para repensar a posição”. “No fundo, sentia que ela me queria despedir, mas queria que fosse eu a tomar a iniciativa”, acrescenta.

Dois meses depois, já com um diagnóstico de gravidez de risco, a superior ameaça não renovar o contrato. Mas essa prática não é totalmente legal em Portugal: para despedir ou não renovar o contrato a uma mulher grávida, em período de amamentação ou qualquer pessoa durante uma licença de parentalidade, é necessário comunicar — ou validar, no caso de um despedimento — à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).

Contudo, este pedido de autorização nunca chegou a acontecer. Ao contactar uma advogada, Joana apercebeu-se da irregularidade do seu vínculo à empresa: “a minha sorte era que o meu contrato estava mal formulado”, conta.

Com um contrato a termo incerto, porque o documento inicial não definia uma data para cessar funções, “passados seis meses, sou efetiva na empresa”. Logo, nunca poderia “rescindir o contrato sem apresentar uma causa plausível”.

Sem vontade de continuar a empresa, por antever falta de consideração pelo estado de gravidez ou de recém-mãe, Joana pediu à advogada que negociasse a sua rescisão.

A jurista Rita Garcia Pereira revela que é muito comum contratos a termo estarem mal formulados. E que, na verdade, rever a correção do contrato com a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), com o Ministério Público ou com um advogado é o primeiro passo que um trabalhador deve tomar se sentir que os seus direitos de parentalidade estão a ser postos em causa.

Durante este processo, Joana sentiu-se “muito injustiçada”, especialmente porque a sua superior — “que é mulher e é mãe” — nunca revelou ter um problema com a gravidez, chegando a dizer-lhe que “gravidez não é doença” e que não tinha “problema nenhum em relação a isso”.

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"A minha advogada perguntou-me se eu tinha interesse em continuar na empresa e eu disse-lhe que não, porque senti que não ia ser respeitada, nem eu nem a minha filha"

A negociação da rescisão do contrato e a saída da empresa acabaram por trazer muita ansiedade e fazer com que o primeiro trimestre fosse “muito desafiante”. Joana chegou a ter medo de perder a bebé.

Agora, a filha está quase a fazer um ano. Depois de rescindir o contrato, Joana pode “usufruir de uma gravidez plena e pacífica” e procurar um outro trabalho com alguma calma. Poucos meses depois de dar à luz, tinha um novo emprego.

Quando Aurora engravidou, todos os colegas e superiores acharam “um máximo”. Habituada a trabalhar com mulheres, nunca anteviu que a maternidade fosse “um assunto”. Mas, depois ter uma filha, a professora universitária percebeu como estava enganada.

O início da vida da bebé foi atribulado. Longe da terra natal e depois de uma separação do parceiro cinco meses depois de dar à luz, “mesmo antes de voltar ao trabalho”, Aurora teve de inscrever a bebé na creche aos seis meses.

No primeiro ano de vida, estar em contacto com outras crianças levou a muitos contágios e a muitos dias de febres e choro. “Durante esse primeiro ano, tive de trocar imensas aulas”, conta. De uma maneira ou de outra, deu todas as aulas, sem faltar, mesmo tendo de acompanhar várias vezes a filha quando adoecia.

No ano letivo seguinte, o ambiente na faculdade deixou de ser tão acolhedor. De um momento para o outro, Aurora “soube que [lhe] iam tirar 20%” de horário. Quando inquiriu o porquê da mudança, responderam “que no ano anterior tinha estado muito ocupada com a maternidade”. Dado que é professora convidada e não de carreira, todos os anos letivos é feito um novo contrato — sempre a termo — e não há como garantir que não existem alterações de horário e, consequentemente, de rendimento.

Ao conversar com um advogado sobre a situação, ouviu: “Se tivesses isso escrito, é claramente um caso de discriminação e podias perfeitamente ir adiante com um processo. A questão é se queres.” Mas “claro” que Autora não queria. Afinal, sentia que não podia dar-se ao luxo de processar a instituição.

Passados mais de dois anos, a indignação permanece e o tom de voz sobe ao lembrar-se da ansiedade desses meses.

“Imagina a minha cara quando as minhas chefias, que são mulheres, disseram que eu tinha estado muito ocupada com a maternidade. E eu respondi: ‘Uau, por que será? Estou sozinha com uma filha de um ano!'”.

Aurora entende que “as outras mães, quando [os filhos] crescem, perdem empatia” e que “uma mãe é um peso” para as instituições. É por isso que, lamenta, as questões em torno da maternidade começam muito antes da gravidez.

“Já me aconteceu ir a entrevistas de emprego e perguntarem-me se eu estava a pensar ser mãe nos próximos anos”, diz Aurora, falando de amigas que, em algum momento da carreira, ouviram a mesma pergunta.

Contudo, de acordo com a jurista Rita Garcia Pereira, esta prática é ilegal. Segundo o Código do Trabalho, o “empregador não pode exigir” informações sobre a “saúde ou estado de gravidez” que não sejam vitais para o exercício da função.

Apesar das dificuldades em gerir o horário de uma bebé pequena e as responsabilidades do trabalho, especialmente com “contratos precários”, Aurora garante que tudo fez para cumprir o que esperavam de si. Em nenhuma situação pediu licença de apoio à família, a que tinha direito, e deu todas as horas que o contrato previa, mesmo quando foi obrigada a afastar-se mais uma vez.

Depois de ter a filha, Aurora teve de ser operada às costas, por lesões resultantes da gravidez e as chefias “ficaram chateadas com a baixa” obrigatória de duas semanas. Ao final desse tempo, “ainda não estava bem”. Enquanto ponderava estender a baixa médica, recebeu um telefonema —“nem penses que vais tirar mais uma semana” — e foi dar as aulas.

Entretanto, Aurora conseguiu recuperar a carga horária a leccionar disciplinas optativas na mesma instituição, mas continua a sentir que perdeu o “comboio profissional” — “e não é justo”. Principalmente, acrescenta, não é justo que as mulheres acartem a responsabilidade de cuidar da família e que haja “muito poucos homens a tirar a licença, e a tirar a licença alargada”.

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que a perceção de Aurora está alinhada com a realidade. Apesar de o número de mães e pais a pedir licença parental alargada ter aumentado gradualmente nos últimos anos, há, ainda, dez vezes mais mulheres do que homens a pedir este apoio. Já nas licenças parentais iniciais, as diferenças entre os sexos são mais atenuadas.

Rita. Quando tudo corre bem

Por cada mão cheia de mães com histórias de pressão e ansiedade, há uma em que tudo corre bem.

Como Francisca, Rita é advogada e passou por duas licenças de maternidade no local onde trabalha.

No escritório de Rita, uma advogada que engravide tem direito a três meses de vencimento completo, a partir do momento em que o bebé nasce. “O quarto mês é optativo, no sentido em que a advogada pode ficar em casa, mas sem receber”, explica.

Mas, como este sistema “não é uma licença do sentido jurídico”, há outros direitos da mãe trabalhadora que não se aplicam”. Para mães como Rita, não há um período de amamentação”, “nem redução de horário”. Ou seja, “quando uma pessoa volta, volta ao horário normal”, clarifica.

Na última gravidez, Rita precisou de “ficar em casa cinco meses deitada” por indicação médica e o escritório “facilitou imenso a situação”. Durante os últimos cinco meses da gravidez e os primeiros três meses de vida do bebé, a advogada recebeu “sempre como se estivesse a trabalhar”.

Já o marido, também advogado, mas noutro escritório, não teve direito a qualquer tipo de licença: “acabou por só não trabalhar no dia em que ela nasceu”, “mas no dia a seguir já foi trabalhar”. Como trabalhador liberal, o marido de Rita “poderia ficar o que quisesse”, na teoria. “Mas, na prática, quando se faz parte de um escritório, acaba por estar submetido a prazos e a pedidos e não consegue não estar presente”.

Para Rita, “o grande medo das advogadas é não haver uma regra”, o que quer dizer que a gestão da maternidade nos escritórios de advogados “passa muito pelo bom senso de cada uma das empresas”. Afinal, lembra, há escritórios de menor dimensão que não têm capacidade para assegurar um salário a uma trabalhadora que se ausente para ter um filho.

Como a experiência foi tão positiva e até facilitou a decisão de arriscarem na gravidez anterior, Rita e o marido não colocam de parte a possibilidade de ter mais uma criança. Uma boa cultura, que respeita as mulheres trabalhadoras, é essencial.

“Se eu estivesse num escritório que não me desse tempo para estar com um bebé depois de ele nascer, também já não estaria lá"

Ao regressar, sentiu-se ligeiramente afastada, “não no sentido de ter sido prejudicada por ter sido mãe, mas pelo facto de ter estado fora”. No fundo, pareceu-lhe um afastamento dentro “do normal” para quem se ausenta do trabalho.

No caso específico dos advogados, “a própria ordem dos advogados e a CPAS (Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores) não é muito favorável”. Segundo Rita, o montante destas ajudas não é comparável ao vencimento de um advogado e, portanto, não é suficiente para assegurar uma licença sem qualquer tipo de rendimento, caso o escritório não o garanta.

A jurista Rita Garcia Pereira confirma e acrescenta que a contribuição do advogado à CPAS continua, mesmo quando a advogada recebe este apoio. Ou seja, a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores dá um apoio único de um mês só, mas exige que a contribuição seja paga, mesmo que exista uma pausa no trabalho ou quebra de rendimento.

Uma “discussão de género” que começa a acontecer

Portugal é o segundo país da OCDE com uma taxa de emprego materno mais elevada, atrás da Eslovénia. Não só mais de 85% das trabalhadoras portuguesas com um ou mais filhos abaixo dos 14 anos estão empregadas, como perto de 80% tem um trabalho a tempo inteiro.

Para Teresa Leão, coordenadora do projeto de investigação MERIT — MothERhood Income inequaliTy, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), sobre parentalidade e emprego em Portugal, as mães são as que dedicam mais tempo à família e são as que mais reportam conflito em relação à dualidade trabalho-família, com “muitas sensações de ansiedade, depressão e de culpa”.

Como nas histórias de Maria Monteiro, Francisca ou Aurora, esta culpa manifesta-se por “terem de abdicar do tempo da família para continuarem a dedicar no trabalho ou de abdicar no trabalho de tempo para dedicar à família”. os homens, apontam os resultados do estudo, não reportam esta sensação de culpa.

Teresa Leão, investigadora em saúde pública, lembra que os papeis de género tradicionais persistem e que devem ser discutidos. Por um lado, é esperado de uma mulher que assuma a responsabilidade da vida familiar e que, em caso de gravidez, tire grande parte ou a totalidade da licença. Mas por outro, “as mulheres também tendem a chamar a si este papel”.

Neste contexto, “há pouco espaço para que seja ele”, o pai, a assumir o cuidado dos filhos. Ou seja, “os homens ainda não assumem a paternidade como, de facto, um ato de cuidar”.

Para a investigadora, da mesma maneira que não é justo que as mães tenham de sacrificar a vida profissional, é injusto para os pais não ser natural investir na vida familiar.

No fundo, “é muito confortável para os pais continuarem a ter a sua esfera profissional muito bem-marcada e muito bem delineada”. Se este é o caso, a “vida familiar é aquela que é mais flexível” e acaba por receber menos dedicação.

E acrescenta, “o que é recomendado por alguns especialistas é que este tempo seja tomado pelo pai sem haver simultaneidade com a mãe, para que ele consiga, a seu tempo, estar confortável neste papel de cuidador. Também estamos constantemente a tirá-los deste papel”.

Na gestão entre a maternidade e o trabalho, há “duas esferas” inflexíveis que entram em conflito e há uma ideia de que é possível uma mulher fazer tudo. Mas, lembra Teresa Leão, falta discussão acerca das expectativas sobre os papéis de mãe e de pai: “as mulheres assumem que têm dificuldade em fazer tudo, mas parece que não houve um questionamento sobre se faz sentido serem elas a fazer tudo”.

"O que é recomendado por alguns especialistas é que este tempo seja tomado pelo pai sem haver simultaneidade com a mãe, para que ele consiga, a seu tempo, estar confortável neste papel de cuidador."

O estudo do ISPUP também concluiu que “após serem mães, sentem que há um impacto na carreira, não porque o empregador necessariamente as prejudica, mas porque estão menos disponíveis para alargar horários ou fazer viagens em trabalho, por exemplo”. No caso de Francisca e Maria Monteiro, uma menor disponibilidade para fazer horas extra não significa menos vontade de assumir responsabilidades durante o horário de expediente originalmente estabelecido.

Para Teresa Leão, esta é uma “fase de discussão” natural nestas matérias. Para assegurar a coexistência entre a parentalidade e o emprego, para mães e pais, é preciso que se construa um “maior equilíbrio de forças”.

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Muitas mães manifestam culpa por “terem de abdicar do tempo da família para continuarem a dedicar no trabalho ou de abdicar no trabalho de tempo para dedicar à família”

Se as empresas permitirem uma maior “flexibilidade no local de trabalho”, acredita, será mais fácil “prevenir situações de conflito” entre a vida familiar e profissional e, no limite, situações de “doença mental associada à gravidez”.

A investigadora também verifica que “há uma tendência de alargamento das licenças”. E Portugal também dá sinais de entrar nesse padrão. No final de setembro o Parlamento aprovou, na generalidade, um alargamento da licença de parentalidade inicial de 120 para 180 dias, e de 150 para 210 dias pagos a 80%.

A medida partiu de uma iniciativa legislativa de cidadãos que contou com quase 24 mil assinaturas. Depois de receber votos contra do PSD e do CDS, o texto seguiu para discussão na especialidade.

Este não é o único avanço que Portugal tem feito para aumentar os direitos de recém mães e pais. Apesar de existirem alguns entraves burocráticos e nem sempre ser uma escolha do agregado, notou Teresa Leão, os pais portugueses podem partilhar em partes iguais as licenças com as mães.

Em Portugal também é tecnicamente — mas não absolutamente — ilegal despedir ou não renovar o contrato de uma mulher grávida ou de qualquer pessoa durante uma licença de parentalidade ou de amamentação. Isto só pode acontecer depois de um parecer favorável da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) ou por decisão de um tribunal.

Caso o parecer seja positivo, tanto para mulheres grávidas, puérperas ou lactantes, como para homens que estejam a gozar a licença parental, a pessoa pode ser dispensada. Segundo a lei laboral, o despedimento de uma pessoa em qualquer destes casos é ilegal se for provado como discriminatório.

De acordo com a última informação disponível, de 2022, citada pelo Jornal de Notícias, nesse ano, 1400 mulheres grávidas ou a amamentar foram dispensadas por não-renovação do seu contrato de trabalho e oito homens foram dispensados durante a licença de parentalidade.

Mas, lembra a jurista Rita Garcia Pereira, as empresas não são obrigadas a comunicar uma não-renovação de um contrato de uma mulher grávida ou qualquer pessoa em licença de parentalidade. O que quer dizer que este número pode ser mais alto.

Quando um contrato não é renovado, ele termina automaticamente, ou seja, o vínculo “continua a não ser renovado”. Neste caso, omitir à CITE uma não-renovação de um contrato nestas condições constitui apenas uma contraordenação e “quando muito, [a empresa] poderá ter de pagar uma coima”.

Se tiver passado por uma história semelhante, envie o seu testemunho para salome.esteves@rr.pt

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