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Delinquência juvenil. "A trajetória de um crime é como um filme a andar, dá sempre sinais"

14 out, 2024 - 08:00 • Miguel Marques Ribeiro

No Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do Conde, procura-se reabilitar um grupo de 22 jovens encaminhados pelo tribunal, depois de praticarem roubos, agressões e outros crimes. O esfaqueamento de seis crianças numa escola da Azambuja veio alertar para o aumento da criminalidade praticada nas escolas e para a necessidade de um sistema de detecção precoce de comportamentos de risco.

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Reportagem num centro educativo para jovens. "A trajetória de um crime é como um filme a andar"
Veja a reportagem vídeo

“Dinheiro, mulheres, fama”. São as justificações que Manuel (nome fictício) aponta para os crimes que praticou desde os 12 anos contra outras crianças. Um percurso de delinquência que culminou em abril, com o internamento no Centro Educativo de Santa Clara (CESC), em Vila do Conde.

O jovem, agora com 15 anos, vivia com a avó e um irmão mais novo. Viu os pais pela última vez há mais de um ano, quando os foi visitar em Angola. “Não tens uma mãe nem um pai para poder pedir pelo menos 100€ para comprar uns ténis, 200€ para comprar um telemóvel, um iPhone”, justifica, enquanto recorda o dia de roubos e violência que culminou na sua detenção pela polícia.

Casos mais graves e persistentes

Tal como Manuel, que vai ficar internado em Vila do Conde até final de 2025, também o rapaz de 12 anos que, em meados de setembro, feriu seis colegas com uma faca numa escola da Azambuja, foi retirado da família e encaminhado para um dos seis centros educativos da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) existentes no país.

São estruturas de “fim-de-linha”, explica o diretor do CESC, Eduardo Garrido. Acolhem os jovens que “têm perturbação de comportamento mais grave e persistente”.

"Chega a um ponto em que nem a polícia, nem as instituições de acolhimento, nem o tribunal, nem os pais conseguem fazer alguma coisa que seja positiva para o jovem". É nessa altura que entram em cena os centros educativos.

O seu funcionamento é regulado pela Lei Tutelar Educativa, que se aplica aos crimes cometidos entre os 12 e os 16 anos.

Pior ano desde 2013

Apesar de ser um caso “extremo”, como sublinha o diretor Eduardo Garrido, a ocorrência da Azambuja, pelos contornos de violência de que se revestiu e que tiveram enorme impacto social, veio reacender o debate em torno de um eventual aumento da criminalidade juvenil em Portugal.

Os últimos dados conhecidos parecem apontar nesse sentido. O ano de 2023 foi o pior da última década ao nível da criminalidade praticada nas escolas.

Comparando com o ano anterior e em termos globais, as ocorrências subiram 16,1%, superando 2013, revela o último Relatório Anual de Segurança Interna. Isto depois do decréscimo significativo verificado entre 2015 e 2020.

Entre os crimes com um aumento mais acentuado em 2023 estão os furtos (33%) e a posse/ consumo de estupefacientes (40%). Em sentido inverso, as ofensas sexuais decresceram 10%.

Impacto dos confinamentos

“A seguir à Covid, houve um 'boom'”, nota a psicóloga Sónia Dantas. Depois de mais de duas décadas a trabalhar com adultos, Sónia aceitou, em 2018, o desafio de integrar a equipa do CESC.

“Fui percebendo que se calhar havia situações em que, se nós começássemos a intervir mais cedo, provavelmente não chegariam ao sistema penal”, justifica.

Nos últimos anos, constata esta profissional, os jovens “de repente começaram a entrar muito mais novos”. Aumentaram também as situações de reincidência e os casos de acompanhamento médico.

“Nunca vi tantos jovens tão medicados por pedopsiquiatria”, garante a psicóloga.

Algo que pode, no seu entender, ter ligação com os confinamentos da Covid-19. “Houve menos aplicações de medidas tutelares, menos audiências de tribunal. As coisas estiveram um bocadinho paradas e estes jovens se calhar estiveram um bocadinho mais confinados ao seu espaço, seja institucional, seja nas famílias. Sabemos que há famílias que passaram muito mal com esta situação”.

Um impacto que se reflete nos números. Entre 2021 e 2022, o número de jovens em internamento nos centros educativos cresceu 20%.

O educativo e o punitivo

Quem entra no edifício do centro educativo de Santa Clara, em Vila do Conde, tem a sensação de entrar numa prisão. Lá dentro cumprem uma medida de internamento decretada pelo tribunal 22 jovens (10 raparigas e 12 rapazes), com idades entre os 14 e os 18 anos, pela prática dos mais variados crimes: agressões, roubos e tráfico de droga.

O espaço é rodeado de um muro alto (a espaços substituído por uma cerca) que é encimado por arame farpado. Câmaras de videovigilância apontam em várias direções, transmitindo imagens em tempo real para uma sala de controlo.

Todos os movimentos e atividades dos jovens são vigiados. Desde a ida para as aulas, ao tempo passado no recreio, passando pelos duches que são tomados ao fim do dia, ou as refeições separadas entre rapazes e raparigas. As portas são abertas através de controlo remoto, a pedido dos monitores ou seguranças, que comunicam através de walkie-talkies, e podem ser fechadas a qualquer momento.

Abílio Capelo, no entanto, recusa identificar o centro de Santa Clara como um estabelecimento prisional. “Não, não é claramente uma prisão”, sublinha o coordenador do CESC. Existe efetivamente uma “medida privativa da liberdade”, mas “a intervenção é educativa e não punitiva”.

"Quando os jovens chegam ao centro educativo vêm muito desregulados. E é preciso uma contenção que lhes permita regularizarem-se emocionalmente".

Contudo, o objectivo, aponta este antigo professor que exerce funções na Direção-geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) há 24 anos, é que “os jovens ganhem cada vez mais autonomia, abertura ao exterior e responsabilidade ao longo da execução da sua medida”.

“Não poderei nunca trabalhar em cima de um modelo que não tenha uma base afetiva”, afirma Abílio Capelo.

A medida aplicada a cada jovem é definida pelo tribunal, que pode optar por três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Em regime fechado, o jovem só pode sair do centro educativo por motivos de saúde ou judiciais (ou excepcionalmente, se o tribunal autorizar). A lei prevê um “máximo de três anos de aplicação no regime fechado”, realça Abílio Capelo.

Os regimes semiaberto e aberto permitem uma maior abertura ao exterior, com a possibilidade de o jovem realizar atividades fora do centro (como estudar, trabalhar ou praticar atividades extra-curriculares) e fazer visitas à família, situação que está dependente do bom comportamento, do sucesso escolar e da participação nas tarefas de grupo (limpeza e arrumação).

“A família acaba por ter um papel primordial”, refere o profissional, na progressão do adolescente. “A ligação afetiva de um jovem está sempre com os pais”, ou com quem os substitui.

“Os jovens com quem nós temos mais dificuldade em trabalhar são precisamente aqueles que não têm um modelo de base afetivo devido à ausência dos pais”, acrescenta o coordenador.

O "lado oculto do crime"

O fim último destas estruturas é permitir que o jovem “comece a construir de alguma forma um projeto alternativo de vida”, avança Eduardo Garrido, que começou a trabalhar em 2000 nesta área como segurança de um centro educativo, no Porto. Desempenhou desde então várias outras funções na DGRSP e como psicólogo, até assumir, desde há um ano, o papel de diretor em Santa Clara.

O jovem é colocado num “ambiente artificial”, controlado, “em que a vida passa a ter novas regras”, um "conjunto de rotinas que fazem sentido". Consegue-se assim “travar um comportamento desviante”, "interromper um filme" cujo final estava destinado a não ser feliz. Mas isso não basta. É preciso tentar a reinserção plena na comunidade e para isso há ainda outros passos a dar.

“O que é que levou o jovem a praticar o crime? A ter prazer em fazer aquilo?”, questiona Eduardo Garrido. Esse é o “lado oculto do crime”, vinca o responsável.

“'Estava em casa com o pai, com a minha mãe, meus pais separaram-se. Fui uns tempos para casa do meu pai. Não correu bem. Tive que ir para casa da minha mãe, não correu bem. Fui para a instituição, não correu bem. Fui para outra instituição, não correu bem. Fui para outra, não correu bem. Finalmente acabei no centro educativo'. O jovem traz uma história fragmentada. É um puzzle em que as peças estão espalhadas. No centro educativo temos o trabalho de tentar colar essas pecinhas”, ilustra o responsável.

"É esta história que precisa de ser contada" por quem cometeu os crimes, para que o primeiro passo seja dado no caminho da reconstrução do percurso de vida.

Psicoterapia e qualificações

A maior parte dos jovens que estão no CESC (cerca de 80%) vêm de outras instituições (designadas de casas de acolhimento residencial) e portanto já tinham sido retirados temporariamente à família e sinalizados como estando em situação de risco. Apenas um em cada cinco vem diretamente das famílias.

Em ambos os casos, do puzzle da sua história de vida fazem parte peças como o abandono, a negligência e o abuso, complementa a psicóloga do CESC.

“Quase todos os nossos jovens, mas maioritariamente as meninas, têm na sua curta história de vida, experiências traumáticas brutais”, que incluem “violações, os crimes de abuso sexual e maltrato físico em geral”.

Os impactos fazem-se sentir de várias formas, acrescenta Sónia Dantas. “Temos perturbações de hiperatividade, défice de atenção, perturbações de comportamento anti-social e de vinculação”.

Ao mesmo tempo há uma educação básica para a sexualidade e para a saúde que é preciso assegurar. “A maior parte das meninas que aqui chegam nunca foram a um ginecologista”, exemplifica a profissional. “Programas de apoio dirigidos às questões da violência de género, da violência no namoro, da prevenção de comportamentos de risco ligados às agressões e bullying” também são necessários.

Além da “componente mais psicoterapêutica”, também são realizadas “outro tipo de ações, nomeadamente a estabilização emocional, a intervenção na crise, a prevenção do suicídio, a prevenção dos comportamentos”, refere a responsável pelo gabinete de psicologia.

O progresso escolar e a aquisição de competências profissionais são também fundamentais na perspectiva da reabilitação. O centro educativo disponibiliza cursos de formação que permitem concluir o 9.º ou o 12.º ano e adquirir qualificações nas áreas de Cabeleireiro e Restauração/ Bar.

É preciso "conseguir captar os sinais"

Eduardo Garrido faz uma avaliação positiva da implementação da Lei Tutelar Educativa. “O sistema em si funciona bem”. Trata-se de uma intervenção "cara, muito equipada e de grande qualidade para realmente fazer a diferença", sublinha.

Os aspetos a melhorar prendem-se sobretudo com uma maior articulação e “partilha de informação” entre os serviços públicos e “melhorias ao nível das qualificações dos profissionais”.

Mas haverá um sistema de prevenção capaz de evitar a ocorrência de novos casos como o da Azambuja? Aqui o diretor do CESC defende que é necessário ir mais longe do que aquilo que está previsto: “Temos uma sociedade com mais meios, mais recursos, mas cuja estratégia de prevenção tem de se ajustar”. Eduardo Garrido dá o exemplo do sistema da detecção da Suíça como um modelo a seguir. “Temos que ter uma intervenção comunitária ao nível da prevenção destes casos mais consistente”.

Os helvéticos têm previsto um conjunto de sinais "que dão logo origem a intervenção". "Uma criança não vai alguns dias à escola é logo sinalizada", descreve o responsável. Há também "equipas de interventores sociais, enfermeiros, que vão a casa das pessoas".

Já Abílio Capelo defende que as escolas têm que ter uma abordagem diferente. “Haverá pouco conhecimento, por parte da comunidade escolar, daquilo que efetivamente é a Lei Tutelar Educativa e a prática efetiva de um crime”. As escolas, quando identificam comportamentos delinquentes, devem fazer a denúncia imediatamente aos tribunais, em vez de fazerem correr primeiro “a via da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens”.

É preciso estar atento, defende.

“Se o jovem não tiver uma atividade estruturada, não tiver supervisão parental e se tiver baixas cognições e insucesso escolar, já temos aqui três indicadores muito fortes de que algo está mal com aquele jovem”.

Eduardo Garrido alerta que "é raro alguém passar invisível" e de repente cometer um crime como aquele que ocorreu na escola da Azambuja.

"Um ato muito grave esconde uma quantidade de pequenos atos anteriores preparatórios. Há sempre uma escalada. Nunca se chega a um ato muito grave sem nunca ter imaginado, sem nunca ter falado com outros, observado, admirado, aprendido. Tudo tem uma sequência. A trajetória de um crime é como um filme a andar que é preciso parar. Dá sempre sinais", afirma o responsável.

É preciso não desvalorizar estes indícios, algo que tem tendência a acontecer mais frequentemente se o jovem for "integrado socialmente". "Se ele estiver numa instituição ou for alguém que vem do bairro, o comportamento disruptivo tem logo outro significado".

Uma contaminação de perspectiva que pode ter custos irremediáveis. Por isso, defende, que quem acompanha estes jovens na comunidade tem que estar devidamente capacitado para o fazer.

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