29 jul, 2024 - 08:36 • Lusa
A presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens apontou o conflito parental como o "maior flagelo", a par da violência doméstica, com crianças "que são autênticas bolas de pingue-pongue" entre os pais.
Em entrevista à agência Lusa, quando termina o mandato à frente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), onde esteve sete anos, Rosário Farmhouse assumiu que o conflito parental é o que mais a preocupa atualmente.
"Estamos com situações de crianças que são autênticas bolas de ping-pongue, de um lado para o outro, quando os pais estão em conflito", alertou a responsável, lembrando que "a relação terminou, mas a parentalidade não".
Rosário Farmhouse deu conta de um "drama maior", com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) a receberem "testemunhos horríveis" de casos "nas mais variadas zonas do país", e em que "ninguém pensa no interesse da criança".
Contou o caso de uma criança, ainda em idade de creche que, como os pais estavam separados e cada um em zonas distintas do país, estava 15 dias numa creche e 15 dias noutra, e apontou que há casos em que os adultos "começam a entrar num registo que para a criança é um sofrimento atroz".
"Temos crianças com tentativas de suicídio, crianças com comportamentos autolesivos, precisamente porque estão a viver a violência entre os pais, já para não falar da violência doméstica enquanto ainda estão juntos, que é outro flagelo", alertou.
Salientou que as crianças em contexto de violência doméstica desenvolvem "sintomas equiparáveis a sintomas de [trauma de] guerra".
"Não há nada pior do que ver as duas pessoas que são referência, que tanto amam, em guerra, seja enquanto vivem debaixo do mesmo teto - e aí é horrível porque é constante - seja quando a separação é conflituosa, em que sempre que é tempo de trocar de pai é um drama, a criança perde o apetite, fica apática", alertou.
Revelou que há igualmente escolas a queixarem-se deste conflito entre pais e a dirigirem-se às CPCJ "sem saber como gerir" casos, como por exemplo, de "pais [que] vão à porta da escola fazer escândalo".
Defendeu que é preciso "avançar muito" no direito à participação das crianças em "todas as matérias que lhes dizem respeito", salientando que "o que elas querem mesmo é passar tempo de qualidade com os seus pais ou os seus adultos de referência".
Questionada sobre o aumento do número de crianças acompanhadas pelas CPCJ em 2023, mais 6,7% do que no ano anterior, e com perto de 55 mil comunicações de perigo, a maioria por negligência e violência doméstica, Rosário Farmhouse disse acreditar que esse aumento reflete uma maior sensibilização da sociedade para a problemática.
Segundo a responsável, e em comparação com outros países, Portugal tem uma taxa de incidência semelhante, que ronda os 2,5% e os 3%, dependendo da zona do país.
Admitiu, por outro lado, que "cada situação de perigo é de uma complexidade enorme" e apontou que as CPCJ têm sentido que "as situações são cada vez mais complexas".
"Aquilo que aparentemente pode ser um absentismo escolar, quando se vai a ver é a ponta do icebergue. Há uma enorme tipologia de crimes por trás, não só negligência, mas às vezes violência, maus tratos físicos, maus tratos psicológicos, violência doméstica, e está tudo por trás a provocar que a criança falte à escola", exemplificou.
Lembrou, a propósito o papel das escolas na denúncia deste tipo de casos, apontando que "são a segunda entidade que mais comunica situações de perigo", e salientando que se trata de um "drama que não só põe em causa o direito à educação, mas também todos os direitos da criança".