06 jun, 2024 - 07:00 • Sandra Afonso (Renascença) e Raquel Martins (Público)
Se os patrões têm dinheiro para pagar um 15.º mês aos trabalhadores, então aumentem os salários em vez de darem prémios, defende o secretário-geral da CGTP, Tiago Oliveira, em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público.
Tiago Oliveira defende o alargamento a toda a função pública das negociações que estão a ser feitas com professores e polícias. Garante que a Intersindical vai analisar as medidas do Governo, que para já segue "pelos pingos da chuva", porque deixou as propostas do trabalho para mais tarde. Sobre uma greve geral, não se compromete, mas também não fecha a porta.
A CGTP marcou uma semana de "esclarecimento, ação e luta" entre 20 e 27 de junho, menos de três meses depois de o Governo tomar posse. É um prazo suficiente para avaliar o trabalho deste executivo?
Não é uma questão de ser cedo ou tarde. É uma questão de olharmos para o programa do Governo, e para aquilo que, na primeira reunião de concertação social, afirmou ser sua vontade cumprir, e de levar esta discussão aos locais de trabalho.
No nosso ponto de vista, o que está no programa do Governo é muito mau para o mundo do trabalho: irá acentuar de forma significativa a desregulação dos horários de trabalho, a precariedade, irá estagnar cada vez mais os salários e continua a perpetuar um ataque enorme à contratação coletiva.
Esta semana tem ainda outra vertente que é, perante um brutal aumento de custo de vida, conduzir os trabalhadores para a luta pela melhoria dos salários.
Que pontos do programa do Governo é que levam a essa desregulação dos horários e à estagnação dos salários?
O programa, sempre que se refere às questões da valorização dos trabalhadores, anexa essa valorização ao aumento da produtividade nas empresas.
Está a referir-se ao facto de fazer depender o aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) da produtividade?
Estou a falar em todas as vertentes, seja no salário, na questão dos horários, na precarização das relações de trabalho. No que diz respeito aos horários, temos 45 % dos trabalhadores com horários de trabalho atípicos (trabalho noturno, ao serão, por turnos, aos fins de semana, feriados), estamos a falar de 2,9 milhões de trabalhadores.
O programa do Governo prevê dar um apoio financeiro às empresas que queiram constituir creches nos locais de trabalho. Podemos olhar para esta medida e partir do pressuposto de que é socialmente importante, mas nós conhecemos a realidade no mundo do trabalho. Porque é que temos que ter o horário de trabalho alargado aos domingos no comércio? Por que é que temos que ter o comércio aberto nos feriados? É uma questão fundamental, é essencial para o país? Não é.
Dessa percentagem de trabalhadores afetados por horários atípicos, quantos correspondem a funções imprescindíveis?
É uma discussão que pretendemos fazer com o Governo e com as associações patronais. Quais são os critérios que estão estabelecidos para considerarmos que uma empresa que trabalha com horário contínuo é uma empresa essencial naquilo que produz.
A laboração contínua aplica-se a empresas cujos métodos de produção não podem ser parados. Por exemplo, uma fundição é muito difícil que não trabalhe em horário contínuo, porque tem fornos a trabalhar a altas temperaturas. Mas numa empresa de batatas fritas, numa empresa de cortiça? Cada vez mais assistimos à desregulação e ao alargamento dos horários de trabalho.
A atual ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, inspira-lhe confiança de que vai defender os interesses dos trabalhadores?
Temos dado nota dos receios que temos relativamente ao futuro no que diz respeito à senhora ministra do Trabalho e não é difícil explicar porquê. Primeiro, porque era árbitro no CES [Conselho Económico e Social] indicada pelas associações patronais, portanto, a partir daqui, está dado o mote para percebermos qual é o posicionamento que a senhora ministra tem. E, depois, por declarações que tem tido ao longo do seu percurso que pendem para o lado, não dos trabalhadores, mas do patronato. Ligar isto ao programa do Governo é perspetivar um futuro muito complicado para os trabalhadores.
"Há dinheiro para melhorar as condições salariais"
Já tiveram a primeira reunião de Concertação Social e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, disse que iria revisitar a agenda do trabalho digno e rever o acordo de rendimentos. Como é que avalia as intenções do Governo nesta área?
A CGTP denunciou que este acordo de rendimentos não perspetivava a melhoria das condições salariais dos trabalhadores e que seria um bloqueio ao aumento dos salários. Hoje constata-se isso.
Vou dar um exemplo concreto, temos mais de 100 mil trabalhadores administrativos, não abrangidos por contratação coletiva e que, em 2024, tiveram um aumento salarial de 7,9% com base num despacho do Governo. As associações patronais disseram que estavam contra e defendiam que o aumento devia ser os 5 % do acordo de rendimentos. E isto constata-se em cada local de trabalho, quando há condições mais que suficientes para ir mais longe.
Como vê a proposta de alívio do IRS?
A CGTP está aberta à discussão da revisão da carga fiscal aplicada aos escalões mais baixos. Mas há aqui uma questão que, para nós, é fundamental. Nós estamos a discutir o aumento do poder de compra das pessoas e a melhoria das suas condições de vida através da redução dos impostos e não através do aumento dos salários.
A redução dos impostos não vai ter o impacto de que todos necessitamos para o nosso dia-a-dia e não vai transformar a vida de ninguém. Pelo contrário, vai tirar ao Estado uma parte fundamental [da receita] para o Governo executar as suas políticas.
Embora prefira aumentos salariais, não está contra alívios fiscais?
É claro que não. Temos abertura para discutir um alívio nos escalões inferiores, de forma a melhorar as condições de vida dos que mais precisam. Mas não é por aí que vamos resolver o problema, o objetivo é o aumento dos salários.
Concorda com a isenção fiscal de um 15.º mês, como o Governo propõe, indo buscar uma proposta da CIP?
Temos que perceber a sua aplicação. Se há, de facto, capacidade das empresas para atribuírem prémios, então porquê é que não o colocam no salário que, de certeza, seria muito mais vantajoso para os trabalhadores, com a garantia de que amanhã esse prémio não é retirado.
É uma medida que coloca de forma escancarada que há dinheiro para melhorar as condições salariais e tenta-se capitalizar através de um prémio para que o trabalhador esteja cada vez mais disponível para o trabalho.
Do nosso ponto de vista, não é por aí o caminho, mas, lá está, é preciso perceber bem como é que vai ser aplicada essa medida, sabendo que se há dinheiro para essa medida, há dinheiro para salários. Senão, o patronato não vinha com essa proposta.
E como é que vê a intenção de incentivar os esquemas complementares de poupança para a reforma?
Com muita preocupação. A questão de avançar com esse tipo de incentivos, é colocar a Segurança Social em concorrência com o setor privado e nós sabemos o que é que ocorre a partir desse momento, estamos a procurar descapitalizar a Segurança Social.
Já não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira tentativa de o setor privado, deitar a mão àquilo que é o objetivo concreto da Segurança Social. A Segurança Social tem um fundo de estabilização para dois anos, caso aconteça qualquer dificuldade, de 35 mil milhões de euros [o valor é de cerca de 30 mil milhões]. Não quero dizer que não tenham que ser revistas as formas de financiamento, estou a dizer é que não há nenhuma questão urgente de sustentabilidade da Segurança Social. Há, sim, opções políticas que são seguidas, em que há milhares de milhões de euros disponíveis, e, obviamente, o capital quer meter mão nisso.
Em menos de três meses, o Governo conseguiu um acordo com os professores para recuperar o tempo de serviço. A Federação Nacional de Professores (Fenprof) ficou de fora. Apesar disso, este é um bom acordo?
A CGTP não pode ficar à margem do posicionamento dos seus sindicatos. Aqueles homens e mulheres [professores] lutaram durante seis anos para verem reposta a valorização das suas carreiras e tempo de serviço. Quem luta durante seis anos tem consciência daquilo que está a fazer e tem a razão do seu lado. E aquilo que a Fenprof fez, e bem, foi não dar o seu acordo, e avançar com novos pedidos de reunião. São seis anos de luta e quem luta durante seis anos não iria abdicar de 30 mil professores que ficaram de fora deste processo.
"Negociações têm de ser alargadas para valorizar todos aqueles que, durante anos, têm sido colocados à margem"
E o que é que seria um bom acordo com as polícias sobre a revisão dos suplementos?
As Forças de Segurança têm uma plataforma própria. É interessante avaliarmos aquilo que está a acontecer na administração pública no seu global. São os professores que estão em luta porque sentem que durante anos e anos as carreiras não foram valorizadas. São as Forças de Segurança que estão em luta porque durante anos e anos não foram valorizados. Temos os médicos, os enfermeiros, os auxiliares, os magistrados, os funcionários judiciais. Antes, um funcionário público era alguém que era valorizado, hoje em dia quem é que quer entrar para os quadros do Estado?
Estas negociações que estão a decorrer para algumas carreiras deviam ser alargadas a todas as carreiras da função pública, especiais ou não?
Têm de ser alargadas para valorizar todos aqueles que, durante anos, têm sido colocados à margem. É preciso haver uma inversão de políticas.
Se as outras carreiras da função pública não recuperarem o tempo de serviço congelado da mesma forma que os professores, os trabalhadores vão sair para a rua?
Nós não fazemos a luta pela luta. Quem luta perde um dia de salário. Só luta e só faz greve quem de facto sente que tem a razão do seu lado, que tem a força, que tem a vontade, que tem a unidade de ultrapassar a dificuldade e lutar por uma vida melhor.
Mas os restantes trabalhadores da função pública têm a razão em pedir o mesmo que os professores?
A CGTP e os seus sindicatos, quando avançarem com a luta, fazem-no com base em questões concretas. Estamos à espera daquilo que está a ser negociado no âmbito dos sindicatos da administração pública - e serão os sindicatos a definir o seu caminho futuro e a luta concreta desses trabalhadores. A CGTP irá fazer a avaliação política das medidas e depois, nos seus órgãos, há de encetar lutas futuras. Neste momento, aquilo que está em cima da mesa é a semana de luta de 20 a 27 de junho.
"A CGTP não tem nada contra os movimentos inorgânicos. A questão é saber porque é que surgem"
A consequência dessa semana de luta não será uma greve geral ou um reforço dos protestos?
Avaliaremos as políticas do Governo, caso a caso. A nossa leitura era que este Governo PSD/CDS iria inicialmente avançar com medidas para responder a alguns anseios da população e essas medidas foram colocadas. Não vão responder no essencial, mas são políticas que permitem andar pelos pingos da chuva. Mas não vão esquecer as [políticas] que dizem respeito ao mundo do trabalho, vão deixá-las mais para a frente.
A CGTP propõe um aumento de mil euros já este ano para o Salário Mínimo Nacional (SMN). Tendo em conta que o salário-base médio em Portugal é de 1.200 euros, esse aumento não iria comprimir ainda mais os níveis salariais?
Comprime-se se nós não fizermos nada com os salários que estão acima. Além do aumento do SMN para 1.000 euros, temos uma proposta de aumento de 150 euros para todos os salários.
Mas dar aqui um exemplo concreto daquilo que é o esmagamento dos salários. Na semana passada, estive na Nobre. Os trabalhadores fizeram, durante o ano passado, 11 greves e sabem qual é a proposta da empresa de aumento de salários por este ano? É 5 euros. Portanto, é esta a política de aumento de salários no nosso país.
Acha que o sindicalismo está a perder força? Fizeram 11 greves e não conseguem mais do que 5 euros de aumento.
Não. Pelo contrário, se não houvesse estrutura sindical, não faziam 11 greves, se calhar desistiam logo à primeira. O sindicalismo está bem vivo, a questão é que o capital tem muito mais capacidade de aguentar a pancada do que os trabalhadores. Porque um dia de greve para a Nobre são tostões e para os trabalhadores é muito dinheiro.
A CGTP e os sindicatos têm vindo, historicamente, a perder filiados. Qual é que é a sua estratégia para inverter essa situação?
Nós apresentámos, agora no nosso congresso, 110 mil novas sindicalizações em quatro anos. Não quer dizer com isto que não tenham saído sócios, temos que ser leais na análise que estamos a fazer. Mas são 110 mil novas sindicalizações em quatro anos, em que dois foram de pandemia e em que o contacto com os trabalhadores foi muito difícil. Neste momento temos 562.500 associados. Não há ninguém que aponte o dedo à CGTP de ter defraudado ou traído os interesses dos trabalhadores, seja através de qualquer assinatura em sede de concertação social...
Por oposição à UGT?
A UGT é um projeto diferente da CGTP.
Como falou em assinar acordos na concertação social.
A UGT segue o caminho que entende. Eu falo pela CGTP e há uma coisa que eu, de cabeça erguida, posso dizer: em nenhum momento deixámos de estar junto dos trabalhadores.
Por que razão, no último congresso, não aceitaram alargar a participação das tendências minoritárias na Comissão Executiva, o que fez com que os socialistas abdicassem dos seus lugares?
A pergunta foi mal colocada, se me permite dizer. A proposta que surgiu no último congresso foi de manter a constituição dos órgãos que sempre existiu. Houve de facto um conjunto de camaradas que queriam alterar e decidiram não integrar os órgãos.
Porque é que a maioria não aceita alargar a participação das tendências minoritárias?
A CGTP é formada por delegados e dirigentes sindicais que emanam dos locais de trabalho.
É o PCP que decide na CGTP?
Não, são os 147 elementos que compõem o conselho nacional da CGTP.
A maioria é comunista.
Se a CGTP tem nos seus órgãos delegados e dirigentes sindicais que têm atividade política, fora da central, no Partido Comunista Português (PCP), no Partido Socialista, no Bloco de Esquerda, achamos muito bem. Se dos locais de trabalho emanam mais dirigentes com simpatia ou filiação partidária ao PCP, acho que isso é normal num partido que está mais ligado aos locais de trabalho. Agora, os órgãos que são eleitos para a CGTP emanam dos locais de trabalho.
Quer dizer que não vai haver alteração de posicionamento?
Isso é uma discussão interna que cabe ao conselho nacional da CGTP. Dizemos desde o início que estamos disponíveis para que os camaradas integrem os órgãos, que façam parte da discussão. Agora, são os camaradas a decidir. Foram esses cinco camaradas que tomaram a decisão de sair, as portas estão abertas para voltarem.
Situações como esta não favorecem o surgimento de movimentos e protestos inorgânicos?
A CGTP não tem nada contra os movimentos inorgânicos. A questão é saber porque é que surgem, com que objetivo e para onde encaminham o descontentamento dos trabalhadores. Se surgirem só para esvaziar, naquele momento, o descontentamento daquela franja da população, então não adianta de nada.
Desde que assumiu a liderança da CGTP, já se reuniu com o secretário-geral da UGT?
Ainda não.
E admite fazê-lo?
Não há razão nenhuma para não o admitir fazer. Se a resposta aos problemas dos trabalhadores exigir, em certo momento, a discussão com a UGT estaremos disponíveis para o fazer.