10 jun, 2024 - 07:42 • Pedro Vaz Patto
Devo confessar que me chocaram as imagens dos festejos junto à Porta de Brademburgo (onde também se festejou a unificação alemã), em Berlim, pela aprovação da legalização do consumo de canábis para fins recreativos na Alemanha. Viam-se jovens e velhos a fumar essa droga com a maior descontração e alegria. Não ignoro que a corrente em prol dessa legalização vai crescendo de dia para dia: depois do Canadá, são já vinte e dois os Estados federados norte-americanos que fizeram tal opção, tendo ela ampla aceitação na população em geral desses e de outros.
Vem-nos de imediato à mente a legislação e jurisprudência portuguesas, que desde há muito, e ainda agora, punem severamente (com frequente recurso a penas de prisão) o tráfico desse produto, baseando-se nos seus graves malefícios para a saúde individual e para a saúde pública. Será que (legisladores, magistrados, polícias, sociedade em geral) nos temos enganado a esse respeito? Será que se trata, afinal, de um produto inócuo? Será que tais penas de prisão terão sido, e são, profundamente injustas, por os traficantes que as sofreram, e sofrem, não terem feito nada mais do que satisfazer a vontade dos seus clientes, como qualquer faz qualquer comerciante?
O que deve, porém, ser salientado, e que contrasta com o sentido dessa corrente, é que os dados mais recentes cada vez acentuam mais os malefícios da canábis, hoje mais conhecidos e evidentes do que o eram quando o seu consumo começou a difundir-se no Ocidente, nos anos sessenta e setenta do século passado.
Por um lado, porque a canábis hoje geralmente consumida contém uma percentagem de produto ativo (THC) substancialmente maior do que continha quando esse consumo inicialmente se difundiu no Ocidente (de cerca de 5% passou a 30% ou até 50%).
Depois, e sobretudo, porque os malefícios do consumo de canábis no plano da saúde mental que hoje cada vez mais se evidenciam já não são apenas os dos riscos de depressão, ansiedade, perdas de capacidade de atenção, memória e aprendizagem, são os de psicose e psicose esquizofrénica. Esse risco já foi quantificado em 15 a 26% quando o consumidor não tenha uma antecedente predisposição para contrair tal doença, e de 25 a 50% quando se verifique tal predisposição prévia (ver www.mercatornet.com, 26/8/2022).
É verdade que se trata de um risco e um perigo, não de um dano certo. Tal como se tem concluído que a transição do consumo de canábis para o consumo de outras drogas ditas “pesadas” representa um risco significativo e não uma certeza. De qualquer modo, o simples perigo, quando é grave e significativo, pode justificar a criminalização: não há apenas crimes de dano, há também crimes de perigo, concreto e a abstrato. O tráfico de estupefacientes pode ser considerado em larga medida como crime de perigo (como são muitos crimes contra a saúde pública, o ambiente ou a segurança rodoviária).
Por este motivo, há quem alerte para as consequências que a legalização da canábis, no Canadá e nos Estados Unidos, tem provocado nesse plano da saúde mental, salientando que se tratou de um erro que se pagará caro e de que os políticos se virão a arrepender (ver www.nbcnews, 6/5/2023 e 22/5/2024 e www.whashingtonexaminer.com, 17/5/2023).
Neste, como noutros casos, razões ideológicas sobrepõem-se a dados científicos objetivos, com consequências graves. Neste caso, é uma ideologia libertária (a autonomia individual acima de tudo) que justifica a legalização do consumo de canábis com desprezo desses dados científicos objetivos. Assistimos hoje a algo de semelhante no que se refere às intervenções clínicas tendentes à suposta “mudança de sexo”, com hormonas cruzadas e bloqueadores de puberdade, intervenções ditadas por razões ideológicas próprias da ideologia do género (a autoperceção do género prevalece sobre a realidade biológica) com desprezo desses dados objetivos, o que tem provocado maléficas consequências que levam a travar tais experiências, precisamente em países que delas foram pioneiros.
Mas não são apenas estes dados científicos a desmontar a ideologia libertária que subjaz à legalização do tráfico e consumo de estupefacientes (hoje, a canábis, amanhã outras drogas). A exaltação da autonomia individual acima de tudo como justificação para tal legalização esquece um aspeto da questão e encerra uma contradição.
Por um lado, esquece que cada pessoa não é uma ilha isolada e que a sua saúde individual, ou a falta dela, têm sempre mais ou menos diretas repercussões sociais.
Por outro lado, e sobretudo, porque tudo o que favoreça a toxicodependência, não só afeta a saúde física e psíquica, como afeta gravemente a própria liberdade e autonomia da pessoa toxicodependente. Pode até dizer-se que esse será o seu mais grave malefício. Invocar a liberdade para ter mais fácil acesso a produtos que provocam grave dependência é profundamente contraditório; é invocar a liberdade para a destruir. Uma liberdade que se destrói a si própria (como uma escravidão consentida) não é verdadeira liberdade.
Nessa linha, afirmou o cardeal Piero Parolin, secretário de Estado do Vaticano, numa mensagem de 4 de maio de 2022 a um colóquio, onde se abordou a questão da legalização da canábis em Itália, organizado pelo Centro de Estudos Rosario Livatino (nome de um juiz italiano já beatificado): o consumo de droga afeta aquelas faculdades graças às quais a pessoa é livre, dona de si mesma e entra em relação com os outros; importa promover o livre desenvolvimento dessas faculdades, não a sua alteração, redução ou supressão.
Ao condenar o tráfico de estupefacientes, incluindo o de canábis, não nos temos, pois, enganado.