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Reportagem

Maternidades por um fio. “Cinco ou dez minutos de diferença podem ser fatais”

10 jan, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta , Maria Costa Lopes , Diogo Camilo

A poucos dias de ser conhecida a decisão do Governo em relação ao futuro das maternidades, a Renascença mostra a realidade de dois blocos de parto que foram sinalizados para encerrar. Neles ouviu a preocupação dos profissionais e sobretudo das grávidas, que afirmam que ficariam desamparadas e inseguras sem eles. Responsável do estudo que propôs fechos não vê outra solução no curto prazo, porque a falta de profissionais especializados demorará anos a resolver. A possibilidade de um novo verão complicado nas maternidades não está afastada.

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Maternidades por um fio. “Cinco ou dez minutos de diferença podem ser fatais”

Rosa está grávida de 33 semanas e internada há quase dois meses no serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital do Barreiro/Montijo. Um colo do útero bastante curto transformou a gestação do seu bebé num risco quase permanente.

Esta não é a única situação de instabilidade com que teve de lidar: para além da gravidez de risco, Rosa tem de lidar com as ameaças de encerramento da maternidade onde é seguida, e que têm pairado durante os últimos meses.

É a segunda vez que a jovem está hospitalizada, e todos os cuidados são poucos para que o bebé nasça com pelo menos 34 semanas de gestação. A ideia era a de que o pequeno João Lucas não chegasse ao mundo ainda “muito prematuro”.

A situação que vive leva Rosa, de 32 anos, a sentir ainda mais que a proximidade a uma maternidade e a um bloco de partos pode fazer a diferença.

“Da minha casa até aqui levo 20 minutos. Se tivesse de ir para Almada seria mais. Às vezes, o tempo percorrido não ajuda. Cinco ou dez minutos de diferença podem ser fatais. Por isso, eu acho que a maternidade faz falta ao hospital, esta ala faz bastante falta para as gestantes”, reforça à Renascença.

A ameaça em relação ao futuro da unidade na qual Rosa é seguida é resultado de um estudo que foi dado a conhecer em outubro passado. Nas conclusões, propunha o fecho de vários blocos de parto e urgências obstétricas e ginecológicas do país.

Após um verão caótico nas várias maternidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – com encerramentos temporários constantes – o Ministério da Saúde então liderado por Marta Temido pediu um estudo técnico a uma equipa de especialistas liderada pelo obstetra Diogo Ayres de Campos – que, entre as propostas, ressaltou a da reorganização do mapa das maternidades que levaria ao fecho de seis locais: Póvoa de Varzim, Famalicão, Guarda, Castelo Branco, Vila Franca de Xira e Barreiro/Montijo.

Os critérios usados foram vários, com destaque para três: geográficos, ou seja, distância entre unidades já existentes (não deveria ser de mais de uma hora, sendo que os serviços das imediações têm de ter a capacidade de absorver o acréscimo de casos que resultaria dos fechos), número de partos e profissionais especializados no quadro.

Independentemente de uma qualquer racionalidade numérica, Rosa sente que o fim da maternidade do Barreiro/Montijo lhe traria uma sensação de abandono.

“Ficávamos desamparados sem saber exatamente para onde ir, o Garcia da Orta, em Almada, ou o de Setúbal. Mas os dois também têm estado constantemente com fechos. O Hospital do Barreiro tentava suprimir essas necessidades”, acredita.

Naquele hospital, a proposta da comissão de acompanhamento de resposta em urgência de ginecologia, obstetrícia e bloco de partos não foi uma completa surpresa, mas foi recebida com profunda desilusão. Ricardo Sarmento, obstetra no Centro Hospitalar do Barreiro/Montijo há 20 anos, personifica esta reação.

“Foi uma proposta de régua e esquadro. Abriu-se o mapa de Portugal, esta está no meio das outras duas [Almada e Setúbal], por isso fecha. Mas não vieram ver as condições desta maternidade. Não vieram ver a satisfação das pessoas que cá estão a trabalhar. Não vieram ver nada, não vieram falar connosco.”

Sarmento diz que quem ali trabalha se esforçou ao máximo no verão passado, “com excesso de trabalho”, “para não fechar dias à população e manter a qualidade de serviço”.

A isso soma-se a capacidade formativa da unidade hospitalar, que continua a receber especialistas internos, e a subida do número de partos, que em 2022 terá ultrapassado a barreira dos 1.500, acima dos 1.403 do ano anterior.

Um mal menor?

Diogo Ayres de Campos, o diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital Santa Maria, que liderou a comissão para a reorganização dos serviços, garante que a sua equipa não acha que o encerramento seja "uma boa coisa”.

“Acaba por ser um mal menor”, diz o especialista, ressaltando que, após a contingência que aqueles serviços viveram no verão, não podia deixar de se fazer alguma coisa.

“[O que existia até agora] não é uma solução para a população, e para as equipas médicas que têm de lidar com situações complexas de transferências de grávidas de um lugar para o outro.”

A comissão propõe por isso a “concentração de alguns recursos, que pode ser temporária, pode ser definitiva, enfim, é uma decisão política que permite às grávidas saberem quais são os hospitais a que podem deslocar-se”.

Ayres de Campos defende-se das críticas dizendo que a função da equipa que liderou era a de encontrar soluções técnicas. Por isso, não era missão da comissão ir aos hospitais e falar com os responsáveis. Alerta ainda que as propostas feitas são somente isso, propostas, e que cabe agora à direção executiva do SNS pegar nelas e tomar as decisões políticas.

Aliás, Fernando Araújo, que lidera a direção executiva do SNS, já começou a fazê-lo quando, antes do Natal, apresentou um plano de rotação de encerramentos temporários para as maternidades espalhadas pelo país.

Recentemente, o mesmo responsável anunciou o alargamento desse programa até ao final do primeiro trimestre de 2023. “O que está preparado para o primeiro trimestre é mantermos esta abordagem de suspensão da atividade rotativa em articulação”, explicou.

Segundo o CEO do SNS, o objetivo “é sempre termos, na mesma área geográfica, uma resposta consistente e evitar que as grávidas andem a ter que perceber se aquele local vai estar aberto ou não, até à última hora, até ao último dia”.

“É possível, com alguma estabilidade, sabermos exatamente isso e isso vai ser colocado. E vamos acima de tudo, já com base nisso, preparar o verão, quer dizer, o verão prepara-se no inverno.”

O plano já está delineado e deverá ser conhecido até 15 de janeiro, adianta Fernando Araújo.

Apesar das medidas tomadas, ainda temporárias, as notícias de fecho geraram muita instabilidade entre as grávidas. Regressemos por isso ao Barreiro, onde está Rita Ramos, que vive os últimos dias da gravidez do segundo filho.

Enquanto realiza os derradeiros exames pré-parto, desabafa que nas conversas com outras gestantes o tema dos encerramentos das maternidades está quase sempre presente.

“Preocupa-nos bastante. Quando tenho vindo fazer exames procuro sempre acalmar-me, a falar com as pessoas que cá trabalham, para ver o que é que seria possível fazer em relação a isto.”

Apesar de, durante o verão, não ter tido nenhuma urgência que coincidisse com um período de encerramento, a possibilidade de isso acontecer “foi um bocadinho stressante”.

Para o futuro projeta: “Agora, nós temos uma urgência para qualquer coisa que nos aconteça. Este hospital serve muitos utentes, serve utentes de uma zona muito, muito vasta. Nós falamos entre nós − entre as mães e as pessoas que moram aqui perto − que é um serviço que faz imensa falta aqui. [Se fechar] vamos ficar desamparados, porque não há alternativas.”

A ideia de terem de rumar a Almada, ao Hospital Garcia da Orta, não a convence. “É sempre um stress. É mais longe. Uma pessoa pensa que durante o caminho poderá acontecer qualquer coisa, como nós já vimos que às vezes infelizmente acontece.”

Um anúncio desastroso

Tornar público um documento de estudo em que eram identificadas as maternidades a fechar foi, na opinião do bastonário da Ordem dos Médicos, “desastroso”.

Miguel Guimarães é muito crítico em relação à comissão que, diz, “nunca teve a dignidade de enviar a proposta” àquele organismo.

“Virem dizer que era necessário encerrar maternidades foi uma situação desastrosa. Nem sequer apresentaram primeiro o relatório.”

Miguel Guimarães quer saber se a fuga de informação − que caiu que nem uma bomba nos hospitais visados e entre as populações servidas por aqueles serviços − saiu da comissão ou do Governo “para perceber qual a reação da sociedade civil”. Seja qual for o caso, considera a comunicação “desastrosa” e “um péssimo serviço ao país”.

“Não é só uma péssima comunicação do Governo, é um péssimo serviço ao país, porque essas coisas primeiro estudam-se, avaliam-se, e não é só tecnicamente, avaliam os políticos, e falam com os autarcas”, resume.

Os presidentes dos municípios visados levantaram-se num coro de críticas às propostas e fizeram promessas de manifestações e romarias a Lisboa caso as ideias da comissão se concretizem.

Confrontado com as acusações, Ayres de Campos responde, perentoriamente, que a fuga não saiu da comissão. E destaca que, perante o facto consumado de o documento ter sido parcialmente divulgado, não lhe restou outra opção senão vir defendê-lo publicamente.

Ao longo do verão, os holofotes mediáticos centrarem-se nas urgências obstétricas e blocos de parto, que passaram a estação a fechar ciclicamente. O Hospital de Setúbal, por exemplo, chegou a ter o serviço encerrado durante 21 dias.

A falta de pessoal nos hospitais justifica grande parte da questão. No Hospital do Barreiro, a responsável pela Urgência Obstétrica e Ginecológica, Daniela Pereira diz serem crónicos os problemas com recursos humanos, não só naquele hospital, mas em todos da rede pública do país.

As dificuldades em preencher escalas são recorrentes e Daniela Pereira não se lembra de, em 10 anos, haver um único em que isso não fosse um problema.

“Aqui e em todos os hospitais do Sistema Nacional de Saúde, há uma carência de médicos crónica que se tem vindo a agudizar e a ficar cada vez mais notória. Depois houve a pandemia, ficámos todos muito cansados e por um motivo que eu não consigo explicar aconteceu tudo em simultâneo.”

Esta responsável garante que, devido ao esforço do pessoal, foi possível fechar apenas seis vezes em 2022 em períodos de 12 horas. Mas os mapas usados pela comissão que propôs a reorganização das maternidades apontam 26 períodos que correspondem a um total de 13 dias no verão.

Aquele serviço tem 13 especialistas, dos quais apenas seis têm menos de 55 anos − idade até à qual são obrigados por lei a fazer urgências. O fecho dos restantes hospitais da zona, segundo a responsável, faz com que, muitas vezes, mesmo trabalhando no fio da navalha com os mínimos (dois obstetras e um interno), estejam a servir o dobro da população que era suposto.

Ana Ferrão, enfermeira do serviço, afirma receber um “feedback muito positivo” de quem por ali passa. “As mulheres ouvem falar do trabalho que é feito pela nossa equipa multidisciplinar, e temos várias mulheres que são de outras áreas de residência, que não são daqui do Barreiro, do Montijo ou da Moita − e que até não são desta região de Setúbal − e que vêm ter os bebés na nossa maternidade porque ouviram dizer bem daquilo que aqui é feito”.

A solução de concentrar meios que ficarão libertos caso o Barreiro/Montijo feche não convence a responsável pela Urgência Obstétrica e Ginecológica daquele serviço.

“Se eu acho que isso vai resolver o problema? De todo, porque isso implica uma transferência de todos os nossos doentes para outros dois hospitais [Setúbal e Garcia da Orta], que temos visto que também têm tido dificuldade na realização das suas escalas de urgência e têm encerrado”, explica.

“Com a sobrelotação desses hospitais, eu sinceramente acho que não vai haver capacidade de resposta”, perspetiva.

A responsável também duvida que os médicos com mais de 55 anos daquele serviço (sete no total) se disponibilizem a fazer urgências caso sejam obrigados a fazê-lo noutros hospitais.

Além disso, lamenta que a comissão não tenha tido em conta o esforço de toda aquela equipa para aumentar o número de partos, o número de consultas e o número de atendimentos a episódios de urgência obstétrica.

Um bloco de partos não é uma caixa multibanco

A cerca de 60 quilómetros dali, já no Ribatejo, mais precisamente no Hospital de Vila Franca de Xira, a diretora do serviço de Obstetrícia e Ginecologia, Paula Tapadinhas, alerta para o que uma decisão de encerramento pode acarretar.

“Do ponto de vista prático, significaria a destruição de um serviço. Isto não é propriamente um multibanco, em que se diz "está fechado, dirija-se ao mais próximo". Isto tem consequências a curtíssimo prazo. Há consequências muito grandes para o funcionamento do serviço e não só da parte da obstetrícia, também da parte ginecológica e na parte de formação global, sobretudo internos da especialidade.”

A necessidade de um serviço de proximidade também se explica, segundo Tapadinhas, com a falta de alternativas na rede primária daquela região. Em Vila Franca de Xira, era esperado que o número de partos chegasse aos 1.700 até ao final do ano passado.

“Mesmo que tivéssemos os cuidados primários a funcionar extraordinariamente bem, há sempre, e sobretudo no final da gravidez, uma série de situações que levam a que as grávidas procurem um serviço de urgência para serem rapidamente observadas e tranquilizadas. Isso deixaria de existir. Portanto, a única hipótese seria ir para Lisboa.”

Como aquele é um hospital mais pequeno do que outras unidades centrais, Paula Tapadinhas diz que ao final de poucas idas ao serviço essa familiaridade e conforto estão cimentados.

Diogo Ayres de Campos concorda que “o ideal era ter um hospital em cada freguesia, mas há aqui um equilíbrio entre a qualidade e o número de recursos humanos”, tudo coisas que têm “um preço e saem do bolso dos contribuintes”, acrescenta.

“Não queríamos concentrar recursos, mas estamos a resolver um problema premente”, ressalta, antes de salientar que os serviços de ginecologia e obstetrícia não são para fechar, aliás, devem manter-se os quadros existentes.

As consultas de pré-natal e as ecografias continuariam a ser feitos nos mesmos locais. “Os blocos operatórios, as cirurgias ginecológicas, tudo isso se manteria na mesma. Estamos apenas a sugerir que temporariamente se concentre o bloco de partos e a urgência.”

Contudo, a instabilidade que se criou nos hospitais levou o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a vir a terreiro dizer que o estudo era apenas um documento técnico e que as decisões políticas só seriam tomadas mais adiante.

Entretanto, o próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, sobre quem pende o ónus da decisão final, afirmou ao Público que Vila Franca de Xira e o Barreiro/Montijo “não deveriam fechar de forma definitiva”.

“A experiência que temos de serviços em que os blocos de parto fecharam indica que, a médio prazo, tendem a encerrar completamente”, lembra Fernando Araújo.

Em relação ao programa de encerramentos programados no primeiro trimestre deste ano é apontado como um balão de ensaio para o futuro. “É uma experiência que visa evitar fechos definitivos, encerramentos que acabariam por ser sem retrocesso, e dar-nos tempo até termos capacidade de voltar a ter recursos”, afirmou ao mesmo jornal.

“Começam a ganhar 1.700 euros e têm de pagar um apartamento que custa entre 600 e 700 euros”, quantifica. “Este médico vai continuar dependente da família, vai estar dependente dos amigos? É que estas coisas têm de se falar. Nós temos uma cidade que se chama Lisboa que na habitação é provavelmente a cidade mais cara da Europa neste momento. E ninguém pensa nisso.”

Mesmo antes destas afirmações, a diretora do serviço de Vila Franca de Xira Paula Tapadinhas já intuía que “a poeira está a assentar um bocadinho” e as pessoas “estão a perceber que realmente não é assim por decreto e, sem haver estudos e sem haver um conhecimento mais profundo da situação, que uma medida dessas irá para a frente”.

“Estão convencidas de que isso não irá para a frente”, sublinhou.

Debandada do SNS, metade dos obstetras nos privados

Ayres de Campos sabe que o que propôs provavelmente não será aplicado na íntegra. “As decisões políticas têm em consideração outros fatores além dos técnicos. O passado ensina-nos que isso aconteceu, e houve grande dificuldade em adotar medidas deste género.”

No entanto, a curto prazo não vê outra saída que não passe por fechos e reforço de equipas com os profissionais já existentes. “Mesmo que se acelerasse a formação de internos − este ano não houve um grande aumento, apenas mais cinco − é um processo que demora muito tempo”, salienta.

Independentemente do futuro, e das decisões de encerramentos definitivos ou encerramentos temporários, há a convicção de que o problema de fundo não está a ser resolvido: nomeadamente, como se inverte a debandada de médicos dos hospitais públicos e a falta de atratividade crónica do SNS.

“Mais de 50% dos especialistas em obstetrícia estão fora do SNS, saem todos os dias e, portanto, os serviços não têm o número de obstetras que deviam ter. A falta de obstetras vai continuar a existir”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que aponta a questão remuneratória como o principal fator de fuga de especialistas.

Guimarães fala do exemplo de Lisboa, uma das cidades mais caras da Europa, em que recentemente mais de 400 vagas de especialistas ficaram por preencher. “Algo de inédito, um case study”, destaca.

A situação explica-se pelo custo excessivo do imobiliário, adianta o bastonário. “Começam a ganhar 1.700 euros e têm de pagar um apartamento que custa entre 600 e 700 euros”, quantifica. “Este médico vai continuar dependente da família, vai estar dependente dos amigos? É que estas coisas têm de se falar. Nós temos uma cidade que se chama Lisboa que na habitação é provavelmente a cidade mais cara da Europa neste momento. E ninguém pensa nisso.”

Ayres de Campos anui e diz que em termos redondos, no início de carreira, para um obstetra a diferença entre trabalhar no público e trabalhar no privado pode ser de três vezes mais dinheiro. Com o passar dos anos, esse “gap” entre os dois sistemas aumenta.
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"Do ponto de vista prático, isso significaria a destruição de um serviço. Isto não é propriamente um multibanco que se diz está fechado, dirija-se ao mais próximo (...)", diz Paula Tapadinhas, diretora do serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Vila Franca de Xira.

A diretora do serviço de Obstetrícia e Ginecologia de Vila Franca de Xira, Paula Tapadinhas, salienta as diferenças relativamente ao peso dos horários de trabalho. “Muitas vezes existe maleabilidade nos privados. As pessoas têm as horas semanais que acordarem, e no SNS não é bem assim”.

Tudo isto faz com que, em Lisboa, quase um terço dos partos ocorram já em unidades privadas e que, no Norte, o número não seja muito distante. Ayres de Campos diz que a Covid-19 reforçou a tendência do aumento de peso dos privados, e que a insegurança no sistema público que se verificou no verão teve peso no crescimento do fenómeno.

É algo que o preocupa, não por um preconceito em relação aos privados mas com base em dados objetivos, diz. Um deles, bem concreto: o número de cesarianas. Em Lisboa, nos hospitais privados, assegura, anda à volta dos 60%, número que sobe no Norte e no Centro para quase 90%.

“Para as grávidas tem riscos acrescidos de infeção, e depois é o SNS que tem de lidar com as complicações mais graves dessa técnica”, ressalta.

Mas o que pode então fazer-se para evitar esta debandada de especialistas e inverter o ciclo? Miguel Guimarães apresenta o exemplo do Canadá, que cria uma rede de apoio estatal para os profissionais.

O bastonário dos médicos destaca os incentivos fiscais, que passam por pagar menos de 50% de impostos, e propõe o aumento de vencimentos para o dobro entre os que trabalham nas principais cidades, bem como a criação de incentivos na habitação, que podem passar por casas gratuitas, para além de uma aposta em condições sociais e laborais para a mudança da família do médico.

O presidente da Câmara do Barreiro, Frederico Rosa, diz estar disposto a criar um pacote de medidas para acabar com o estigma de mudar de residência para alguns pontos do país. “Criar bolsas de habitação, rendas acessíveis, as autarquias estão dispostas a fazê-lo”, assegura.

O autarca diz que o pior que se pode fazer é dizer que não há um problema, mas sublinha que o horizonte não pode ser o do encerramento de serviços: tem de haver um objetivo que passe pela manutenção do serviço, defende. “A pior coisa que pode ocorrer é quando se precisa do serviço não saber onde se deve dirigir”, argumenta.

Contudo, alerta que além das questões racionais há o lado emocional. Muitos dos habitantes daquela cidade do sul do Tejo, quando o abordavam na rua, exprimiam o mesmo receio: “Perguntavam se íamos deixar de ter crianças nascidas no Barreiro.”

Por isso, enquanto as questões estruturais não mudam, Frederico Rosa concorda com a alternativa criada pelo Governo até março. “Pode haver uma solução que passe por urgências rotativas, que dê alguma previsibilidade a quem necessita de urgências, mas também aos transportes urgentes.”

Um serviço que dá vontade de ter um filho após um parto

Com a pequena Margarida nos braços, uma menina com apenas 48 horas de vida, Marta Marques tem um brilho que não se vê só nos olhos. Transborda. Tanto que, assegura, já pensa numa segunda ida ao Hospital de Vila Franca para ter outro filho. Não é comum isso acontecer após um parto.

“Senti-me tão segura, mas tão segura, que eu estou prontíssima para vir cá ter outro filho agora. Se o hospital fechasse era complicado. Não se encontra segurança noutro lado.”

“Senti-me apoiada por toda a gente. Desde que entrei nas urgências, todas as pessoas, quando eu passava, diziam: ‘Embora pequenina, felicidades’. Vai-nos enchendo cá dentro. Aqueles medinhos vão começando a desaparecer, a desaparecer”, assegura.

Mas devem ou não as grávidas estar preocupadas com o que acontecerá no próximo verão? Miguel Guimarães faz uma distinção clara entre regiões do país.

No Grande Porto e na Grande Lisboa parece-lhe inevitável a concentração de serviços, como aliás já foi feita noutras especialidades. “Isso recolhe grande consenso médico, que a partir das 20h00 as urgências sejam em uma ou duas maternidades, é uma boa prática”, diz.

Tal, defendem libertaria mais recursos para fazer as escalas à noite e aos fins de semana. “A Ordem apoiaria esta solução”, garante.

A isto acresce a possibilidade de os hospitais manterem os serviços, mas funcionarem com maternidades de porta fechada, em que as equipas estão no local, as grávidas podem aceder ao serviço, mas sem que haja uma urgência aberta.

Situação diferente é se o mesmo acontecer no Interior, como a comissão propõe para Castelo Branco e Guarda. “Isso já não é boa prática”, defende Miguel Guimarães.

“A Guarda tem muitas aldeias, e devem experimentar ir da aldeia mais longe até à cidade. E depois pensam que é tudo autoestrada, mas não é. No Inverno então não se circula nada bem. Há riscos para as grávidas, por isso ali há que reforçar as maternidades. Não podem fechar.”

A Renascença quis visitar os blocos de partos das maternidades da Guarda e de Castelo Branco, também marcadas para encerramento no documento entregue ao Ministério de Saúde, mas os pedidos foram recusados por ambas as unidades.

Diogo Ayres de Campos pede que se olhe para as propostas da equipa que liderou, porque sem elas “teremos dificuldade em organizar os cuidados em obstetrícia”.

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"Senti-me tão segura, mas tão segura, que eu estou prontíssima para vir cá ter outro filho agora", afirma Marta Marques.

O especialista alerta para as dificuldades de muitos hospitais, não só os seis assinalados pelo documento, em conseguir construir equipas. E argumenta que a intervenção tem de ser estrutural, caso contrário “quer queiramos, quer não, vão fechar”.

Ayres de Campos está preocupado e já manifestou esse sentimento ao ministro da Saúde. E deixa o aviso: “A situação atual não é nada favorável.”

“Se as coisas ficarem como estão neste momento, seguramente que fica tudo igual ou será ligeiramente pior. Entretanto, algumas pessoas vão reformar-se e outras vão sair para a medicina privada”, antevê.

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