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Entrevista

Uma crise como a de há 10 anos “seria dilacerante para a sociedade”

04 out, 2022 - 06:30 • Ana Catarina André

Luis de Almeida Sampaio, chefe da diplomacia portuguesa na Alemanha, durante o período da troika, explica que “do ponto de vista estritamente financeiro, temos hoje mecanismos que não existiam”, mas diz que “ninguém no seu perfeito juízo, olhando para as circunstâncias internacionais (…) pode estar otimista em relação ao presente e ao futuro”

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Luís de Almeida Sampaio foi embaixador de Portugal na Alemanha, entre 2012 e 2015, e acompanhou de perto a crise das dívidas soberanas, durante o governo de Pedro Passos Coelho. A experiência deu origem ao livro “Diplomacia em Tempo de Troika”, que será apresentado esta terça-feira, em Lisboa, por Durão Barroso.

Em entrevista à Renascença, o diplomata afasta a possibilidade de um regresso da troika a Portugal e diz que em 2015, o então primeiro-ministro, Passos Coelho, e o ministro das finanças, Vítor Gaspar, não souberam aproveitar mediaticamente os sinais de que a crise estava a passar. “Esse tempo que se perdeu acabou por ser fatal para a coligação no poder em Portugal, na altura”, afirma.

Acaba de lançar o livro "Diplomacia em tempos de Troika", sobre os anos em que esteve em Berlim como embaixador, durante o Governo de Passos Coelho. O que é que a diplomacia pode fazer por um país em crise, como acontecia na época?

Pode fazer muito. Não direi que pode fazer tudo, mas pode fazer quase tudo, como eu tento demonstrar no livro. Era um período crucial para a nossa vida coletiva, crítico, extremamente difícil e, portanto, também de muito difícil diplomacia. Julgo que o livro descreve bem o que um embaixador e a diplomacia podem fazer por Portugal em tempos de crise, em tempo de troika.

Como é que foi fazendo esse trabalho concretamente?

É indispensável ter os interlocutores adequados. O ministério alemão dos negócios estrangeiros não era, evidentemente, o meu principal interlocutor em tempos de crise, em tempos de troika. Era um interlocutor incontornável e indispensável e precisei muito dos meus contactos com o ministério alemão dos negócios estrangeiros, mas não era o principal interlocutor. Os meus principais interlocutores eram, sobretudo, a Chancelaria Federal, portanto, toda a equipa da chanceler Merkel, na altura; o ministério das finanças alemão, a equipa, na altura, do ministro Schäuble; e o parlamento alemão, o Bundestag, sobretudo as comissões que mais diretamente tratavam de economia e finanças. Foi preciso identificar os interlocutores, não correr o risco e o erro de bater às portas erradas e, sobretudo, alimentar esses contactos, mesmo de forma quase intrusiva. Também descrevo no livro que, por vezes, tive a sensação de que estava a ir vezes a mais, à Chancelaria Federal e que os meus interlocutores, que me receberam sempre impecavelmente e sempre tiveram a porta aberta, também tinham a noção de que nunca tinham visto tantas vezes um embaixador bater-lhes à porta.

Tinha receio que Portugal fosse mal-entendido, mal compreendido?

Portugal, no início do meu mandato, na Alemanha, era muito mal compreendido, muito mal percebido. Estávamos colocados no mesmo saco com outros [países]. Partia-se do princípio, na Alemanha, de que não iríamos cumprir, que aquele resgate não seria o último, que seria apenas o início de uma longa saga que acabaria por custar ainda mais aos contribuintes alemães. Era essa a batalha: a de recuperar a credibilidade de Portugal perante os meus interlocutores quotidianos. No fundo, sou não apenas a testemunha, mas o principal ator dessa batalha, de todos os dias, pela recuperação da nossa credibilidade, e pela instauração de um clima de confiança que era indispensável para levarmos a bom porto os nossos objetivos.

Tínhamos que ser a história de sucesso, perante tantas histórias más.

Estando a fazer esse trabalho diplomático em Berlim, como é que ia acompanhando as dificuldades dos portugueses, durante esse período de profunda crise?

Obviamente, qualquer embaixador de Portugal tem que estar em perfeita sintonia com aquilo que se passa no País. É absolutamente indispensável ver as notícias, ler os jornais, ouvir a rádio, mesmo quando se está fora. Para além disso, tinha naturalmente toda a informação do governo português. Recebia orientações sobre aquilo que, do ponto de vista governamental, se ia fazendo em Portugal.

O que era mais difícil para si, sabendo que era preciso recuperar a credibilidade de Portugal?

No fundo, tentar fazer passar a mensagem de que aquilo que estávamos a fazer em Portugal era absolutamente vital para a Europa e, portanto, para a Alemanha. A nossa batalha não era uma batalha individual. Era uma batalha de cuja vitória dependia também o futuro da zona Euro, o futuro da Europa, o futuro da Alemanha. Nós tínhamos que ser a história de sucesso, perante tantas histórias más, naquele momento. [Tínhamos de ser] a história de sucesso que permitiria continuar a ter confiança nos países do sul da Europa, na sua participação e presença no Euro, no aprofundamento do projeto europeu.

Refere muitas vezes, ao longo do livro, a importância de afastar Portugal do fantasma da Grécia. Acha que esse afastamento foi possível à custa de um país como Portugal, em que tradicionalmente a contestação é baixa por comparação a outros países da Europa?

Julgo que isso era relativamente irrelevante na Alemanha, naquele momento. É evidente que os alemães dos partidos políticos, junto do Bundestag e da Chancelaria Federal, acompanhavam com muito cuidado o que se passava em Portugal. Sem nunca diabolizar a Grécia, os diferentes governos gregos, o esforço e o sacrifício do povo grego, era para nós muito importante demonstrar que estávamos a cumprir com êxito e, sobretudo, que estávamos absolutamente determinados em sair da crise sem mais resgate, sem mais empréstimos, sem programas cautelares, sem prolongamento do nosso programa. Isso era uma diferença significativa em relação àquilo que eu via por parte, designadamente dos meus colegas gregos.

Os portugueses acabaram, de certa maneira, por aceitar as medidas que lhes iam sendo impostas, naquele contexto de crise.

Ninguém aceita de bom grado medidas drásticas. Todos temos a noção de que vivemos um momento especialmente difícil. Também temos a noção das causas, das raízes, desse momento difícil que atravessámos: causas internacionais, designadamente ligadas à crise financeira das dívidas soberanas, mas também [relacionadas] com aquilo que representava a nossa economia, as suas fragilidades e erros acumulados, nos anos anteriores. Ninguém ignora que todos teríamos preferido não ter troika, não ter resgate, não ter programa de ajustamento económico e financeiro, se a circunstância económica, financeira e política de Portugal nos tivesse permitido alcançar esse desiderato. Portanto, não há nenhuma dúvida de que foi um momento extremamente difícil. Aquilo que julgo também é que os portugueses, desde cedo, se aperceberam que era possível, naquele momento difícil, ir construindo as bases para um futuro melhor. E como digo no livro, na minha opinião os resultados das eleições de 2015 são exatamente a demonstração de que os portugueses perceberam que estávamos a sair da crise e que, ao virar da esquina, começaríamos a colher os proventos das dificuldades e dos sacrifícios que atravessámos.

Afirma no livro que Passos Coelho [primeiro-ministro à época] e Vítor Gaspar [ministro das finanças] não souberam aproveitar mediaticamente os sinais de que a crise estava a passar. Foi isso que determinou que depois António Costa chegasse a primeiro-ministro?

Julgo que essa é uma das passagens mais interessantes do livro e certamente uma das que vai atrair mais atenção e curiosidade por parte dos leitores. Também não tenho grandes dúvidas de que quer Pedro Passos Coelho, quer Vítor Gaspar, discordam da análise que faço. O que digo, de uma forma muito simples, sem querer dizer tudo para não fazer com que os leitores não precisem de ler o livro, é que Pedro Passos Coelho, por uma questão idiossincrática, por uma questão de caráter, de feitio, não quis ser otimista. [Não quis] falar daquilo que, na minha opinião, se começava a perfilar a partir de um determinado momento. Preferiu esperar pelo fim formal do programa de ajustamento económico e financeiro para adotar um tom mais voltado para a recuperação. Aquilo que digo e, é a minha opinião, é que esse tempo que se perdeu acabou por ser fatal para a coligação no poder em Portugal, na altura.

Conta, também, que em 2013, quando Vítor Gaspar, então ministro das finanças e Paulo Portas, ministro dos negócios estrangeiros, se demitiram, recebeu um telefonema da Chancelaria Federal com a pergunta "Vocês perderam a cabeça?". Como é que se responde a esta questão?

De uma forma patriótica e responsável. A minha resposta foi: "Não, não perdemos a cabeça. Amanhã o primeiro-ministro de Portugal vai estar em Berlim". Por coincidência, havia um conselho informal dedicado ao desemprego e o primeiro-ministro teria oportunidade de, em viva-voz, explicar que não, não tínhamos perdido a cabeça.

Fico perplexo como é que pessoas que não têm acesso à informação (...) dizem as coisas que dizem na televisão

Esteve na preparação da primeira visita de Angela Merkel a Portugal, em 2012. O que é que pode contar sobre os bastidores desse momento?

Foi uma preparação muito difícil, sobretudo por três razões. O clima social e político que se vivia em Portugal não era o mais propício, mais simpático para a chanceler alemã. A Alemanha era demonizada por muita da nossa opinião pública, também por muita da nossa comunicação social, como os algozes do nosso programa de ajustamento económico e financeiro, de uma forma, na minha opinião, muito injusta. Em segundo lugar, é evidente que era uma visita simultaneamente muito importante para o Governo português, porque se tratava de um dos principais atores internacionais em contexto de crise.

Na sequência também de várias visitas que Merkel estava a fazer a países do sul...

Exatamente. Por outro lado, o governo português também não queria, mais uma vez mediaticamente, e perante a opinião pública, ser visto como demasiado simpático e muito menos subserviente, coisa que o Governo nunca foi, como eu também digo abundantemente no livro em relação à visita da chanceler alemã. Em terceiro lugar, e porventura é esse o aspeto mais importante e mais difícil, é que na altura ainda não havia a certeza absoluta, designadamente por parte dos alemães, que nós iríamos cumprir o programa de ajustamento económico e financeiro. Portanto, essa visita, naquele momento muito importante, do ponto de vista político e diplomático, estava recheada das maiores dificuldades.

Este livro é uma forma também, de certa maneira, de repor a verdade sobre o que aconteceu naquele período, também em relação aos socialistas?

Ninguém se pode arrogar o direito de ter a verdade e repor a verdade. Não caio nesse erro. No entanto, julgo que o meu livro é absolutamente indispensável para oferecer uma perspetiva sóbria, isenta, de alguém que conhece aquilo de que está a falar. Vejo com perplexidade, quase todos os serões, os comentários de algumas pessoas sobre o que se está a passar na Ucrânia. Fico perplexo como é que pessoas que não têm acesso à informação, nem desempenham funções que lhes permitiriam ter um olhar lúcido sobre o que se está a passar, dizem as coisas que dizem na televisão – algumas deixam-me com os cabelos em pé. No fundo, sirvo-me deste exemplo para dizer que nos antípodas daqueles que falam sem nada saberem, este livro é escrito por alguém que sabe aquilo que se passou, na perspetiva do embaixador de Portugal em Berlim.

Ninguém no seu perfeito juízo, olhando para as circunstâncias internacionais (...), pode estar otimista em relação ao presente e ao futuro.

Diz logo, no início do livro, que “Portugal não aguentará passar por mais crises como a que vivei de 2009 a 2015 sem ainda mais profundas consequências políticas e sociais”. Perante o atual estado da Nação, faz sentido hoje estabelecer um paralelismo com o período da troika?

Espero que nunca venhamos a passar por uma circunstância equivalente àquela que vivemos durante o período do programa de ajustamento económico e financeiro, por causa da crise das dívidas soberanas, da crise financeira internacional, dos erros acumulados do passado. Obviamente ninguém no seu perfeito juízo, olhando para as circunstâncias internacionais, económicas, financeiras, políticas, de segurança energética, de segurança alimentar, pode estar otimista em relação ao presente e ao futuro. Agora há que tudo fazer para evitar que uma crise daquelas proporções se repita. Caso acontecesse, aquilo que digo no livro, é muito claro também. Julgo que seria dilacerante para a sociedade portuguesa e certamente teria consequências sérias do ponto de vista político, para além das evidentes consequências económicas e financeiras.

Mas admite esse possível regresso à troika?

Julgo que estamos numa circunstância muito diferente daquela em que estávamos na altura. Essa diferença é evidente, até porque mesmo do ponto de vista estritamente financeiro, temos hoje mecanismos que não existiam na altura, e dos quais o nosso país tem vindo a beneficiar de uma forma consistente, ao longo dos últimos anos. Aquilo que é evidente [e que devemos fazer é] aprender com os erros do passado, que é sempre uma coisa que é fundamental, e que permitirá que não venhamos a enfrentar uma situação como de há dez anos.

Acredita que Portugal será capaz de aplicar o PRR nos prazos estipulados, com vista também à necessária transformação de que o país precisa?

Sobre isso, não me vou pronunciar. A única coisa que posso dizer, e que julgo ser partilhada por todos os portugueses, é que o PRR e os seus mecanismos são uma oportunidade única a não desperdiçar.

Convidou Passos Coelho para escrever o prefácio do seu livro. Porquê?

Primeiro, porque é a escolha óbvia. Pedro Passos Coelho era o primeiro-ministro de Portugal durante aqueles anos. Escolher Pedro Passos Coelho, a mim parece-me elementar, como diria alguém muito conhecido. Fiquei muito contente por ele ter aceitado. Fiquei também agradavelmente surpreendido pelo facto de o prefácio não ser apenas um prefácio de cortesia. É um prefácio com 36 páginas. Não conheço muitos prefácios de livros desta natureza, com prefácios desta dimensão, tão substantivos.

É, de certa forma, uma antecipação do regresso de Passos Coelho a um cargo político?

Isso é uma ótima pergunta para fazer a Pedro Passos Coelho.

Qualquer solução, seja qual for, que não passe pelo respeito integral do direito internacional, será sempre má.

Voltando agora ao cargo que exerce atualmente como embaixador de Portugal em Praga. Como é que a partir deste país da Europa Central vai vendo aquilo que se passa na Ucrânia, nomeadamente a guerra?

A República Checa, embora não tendo fronteira direta com a Ucrânia, recebe um número muito significativo de refugiados ucranianos. A República Checa tem uma situação económica, financeira e social, mais apelativa do que a Eslováquia para a instalação dos refugiados ucranianos. O que é certo é que, não sendo um país formalmente da linha da frente, já recebeu 400.000 refugiados ucranianos em resultado da invasão da Ucrânia pela Rússia. Por aquilo que tenho observado diretamente, pelos contactos que tenho tido, essa absorção de um número tão significativo de refugiados ucranianos tem decorrido de forma exemplar.

E favorável à adesão da Ucrânia à União Europeia?

A perspetiva europeia sobre a Ucrânia ficou definida ao mais alto nível num Conselho Europeu recente. A Ucrânia fará parte da União Europeia. É essa a expectativa. Quanto tempo vai demorar esse processo? Depende de estarem cumpridos todos os requisitos. Repare que Portugal demorou dez anos para integrar as então Comunidades Europeias. Não sabemos quanto tempo demorará a integração da Ucrânia na União Europeia.

Do ponto de vista diplomático, o que é que falta fazer para pôr fim ao conflito na Ucrânia?

Qualquer solução, seja qual for, que não passe pelo respeito integral do direito internacional, será sempre má. Aquilo que está em causa na Ucrânia não é só uma invasão não provocada. Está em causa a absoluta necessidade de manutenção dos princípios da integridade territorial e da autodeterminação do povo ucraniano, para além, obviamente, do princípio da legítima defesa que está no artigo 51 da Carta das Nações Unidas. Qualquer solução que não passe pelo respeito integral destes princípios (legitima defesa, integridade territorial, autodeterminação) será sempre contrária ao direito internacional.

Acredita que o fim do conflito seja possível, nos próximos tempos?

Isso é a chamada pergunta para um milhão de euros, à qual não me atrevo a responder. Não sou tão especialista sobre questões ucranianas quanto a maioria dos comentadores que vejo nas televisões portuguesas.

Uma última questão. Em 2018, foi punido por má gestão num processo disciplinar do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como é que geriu esse processo na sua carreira?

Pronunciar-me-ei sobre esse tema com detalhe, no momento oportuno, que não é este.

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