Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Entrevista a Adalberto Campos Fernandes

Prioridade do Governo devem ser as pessoas, diz ex-ministro da Saúde

04 abr, 2022 - 08:12 • Anabela Góis

A pandemia agravou as dificuldades no SNS e criou um desalinhamento entre a procura e a resposta. Em entrevista à Renascença, Adalberto Campos Fernandes aponta duas prioridades, entre elas trabalhar, “com a máxima rapidez”, na atratividade de profissionais para o setor público.

A+ / A-

O antigo ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes defende que a prioridade do atual Governo tem de ser as pessoas. E as pessoas não estão a ter resposta por parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS), defende na Renascença.

Adalberto Campos Fernandes diz que há muitas necessidades na saúde que não estão a ser satisfeitas. As dificuldades que existiam no SNS foram agravadas pela pandemia e hoje há, claramente, “um desalinhamento entre a procura e a resposta”, bem visível, por exemplo, nos recentes picos nas urgências hospitalares.

Responder a estas pessoas tem mesmo de ser a prioridade deste Governo, defende por isso o antigo ministro, mesmo que isso implique recorrer ao serviço privado e social.

Como segunda prioridade, Adalberto Campos Fernandes elege o capital humano em falta na saúde: diz que a competição do privado é muito forte, pelo que é urgente criar incentivos para captar e reter profissionais. Mas isso não se faz com recurso ao regime de dedicação plena que consta no Programa do Governo, avisa.

O antigo ministro da Saúde mostra-se ainda muito critico da criação da Direção Executiva do SNS. Diz que é como “começar uma casa pelo telhado”: não faz sentido sem se fazer antes uma reforma da administração do Serviço Nacional de Saúde.


Quais são os grandes desafios deste Governo?

É ultrapassar as dificuldades que existiam antes da pandemia e que foram muitíssimo agravadas pela pandemia. Existe hoje claramente um problema de desalinhamento entre as respostas e a procura que está, aliás, a ser refletido nos picos das urgências hospitalares e, portanto, é reformar, é introduzir as medidas, é cumprir o Programa do Governo.

Eu entendo que em todos os ciclos políticos, mais importante do que aquilo que nós pomos nos Programas de Governo, é executar e cumprir e, portanto, neste momento, com um quadro político estável, com maioria absoluta, essa é a minha esperança e é a esperança de todos os portugueses: que o Programa seja executado.

O Programa do Governo defende uma melhor organização do SNS. É por aí que devemos ir?

Sim, os sistemas de saúde são muito complexos e, portanto, muitas vezes nós temos a tentação de olhar para um ponto deste ecossistema tão complexo que é a saúde e achar que intervir num dos pontos resolve o problema. Claro que a organização é um aspeto mas, antes disso, o primeiro de todos, é responder às necessidades de acesso que estão por ser satisfeitas.

Há muitas necessidades de saúde que não estão a ser satisfeitas. Essa é a prioridade, que são as pessoas. As pessoas que sofrem, que estão doentes e que têm dificuldades.

O segundo ponto é o capital humano. Não dá para esperar mais tempo, porque nós temos neste momento uma dinâmica do setor privado que é muito forte, por via até da deslocação da procura do setor público para o privado. Há uma grande capacidade do setor privado e, até do estrangeiro, de fazer a captação de médicos, enfermeiros e outros profissionais e, portanto, essa abordagem estratégica pensada com tempo – que tem a ver com os projetos profissionais, com aquilo que são os incentivos de adesão ao Serviço Nacional de Saúde – tem de ser trabalhado com a máxima rapidez.

Voltando à questão das pessoas que foi a que elegeu como prioridade. Como se satisfazem as necessidades? Com mais médicos de família, mais e melhores respostas nas urgências?

Mais uma vez, temos de nos deslocar da árvore e temos de olhar para o conjunto da floresta, e temos de ver qual é a lógica global do sistema. Infelizmente, tem havido – do meu ponto de vista erradamente – demasiada fixação no pensamento político que está fora do seu tempo. As condições sociais e demográficas mudaram, as necessidades das pessoas mudaram, o país está muito envelhecido, com muita carga de doença e, portanto, é preciso aceitar que temporariamente ou de uma forma mais estruturada que, se o SNS não puder no formato tradicional responder, é preciso estabelecer uma rede de respostas que assegure o direito à prestação do serviço às pessoas todas.

Depois, naturalmente com tempo, melhorar a organização, a prestação, o desempenho, o financiamento. Tudo isto tem a ver até com a avaliação das políticas públicas. Não temos em Portugal uma boa tradição de avaliação das políticas públicas. Celebramos às vezes reformas que foram feitas há 10 anos e que estão a ter consequências terríveis no SNS. Esse é um aspeto que obriga a uma grande abertura de espírito e que obriga também, no quadro parlamentar, a uma capacidade de dialogar com as forças políticas todas – sobretudo, com aquelas que alternadamente possam vir a ser Governo daqui por uns anos para que a descontinuidade das políticas não seja o mote e não seja prejudicial aquilo que queremos fazer.

Se aceitarmos que o SNS não tem capacidade, terão de ser celebrados acordos com os setores privado e social?

A Constituição da República diz muito claramente que os portugueses têm direito à proteção da saúde e não determina nem fecha nenhuma forma de o fazer. Naturalmente que se nós pudermos fazê-lo através da espinha dorsal estrutural e estruturante do Sistema de Saúde que é o SNS será esse um bom desígnio e é uma opção política; mas até lá ninguém tem culpa, sobretudo os cidadãos que precisam, de nós, políticos, nos diferentes ciclos, não termos conseguido resolver os problemas todos.

E quem tem uma doença grave ou menos grave tem o direito constitucionalmente protegido de ter respostas. Essas respostas têm de ser encontradas. As pessoas pagam impostos, pagam muitos impostos e por isso têm a legítima expectativa e o legítimo direito de ver as suas necessidades satisfeitas independentemente do local e da forma como elas são satisfeitas.

Ou seja, admite acordos com o setor privado e social

Mas eles existem. Não vale a pena nós fazermos disto uma discussão que não é séria. Desde a relação com as farmácias comunitárias, que tem dezenas de anos e que efetivamente são financiadas em grande parte pelo dinheiro público, desde o setor convencionado que há dezenas de anos é um suporte e é um pilar secundário de apoio ao SNS, desde a multiplicidade de acordos que são estabelecidos pelas ARS [Administrações Regionais de Saúde] e pelos hospitais diretamente, isso não representa qualquer problema, a não ser que nós temos de fazer a regulação efetiva dessas parcerias e, ao mesmo tempo, de ir trabalhando para que o SNS seja mais autónomo.

Agora, não podemos é sacrificar vidas e direitos de pessoas porque queremos um SNS autónomo – o que sabemos que demora tempo a ser consolidado e esse tempo custa naturalmente sofrimento e custa respostas que não são dadas e necessidades que não são satisfeitas

Indo agora à questão do capital humano, de que também falou, como é que se consegue atrair e reter médicos e outros profissionais que fazem falta no SNS?

Seguramente que não é com medidas administrativas de retenção arbitrária nem dedicações plenas na base do voluntariado, nem na base da coerção. É através de projetos profissionais que garantam progressão técnico-científica, que garantam uma esperança de evolução numa carreira profissional que é reconhecia, que tem prestígio, tem reputação que era essa, sempre foi essa, a boa marca do Serviço Nacional de Saúde e, portanto, esse caminho passará naturalmente também por rever as condições remuneratórias na medida da capacidade do próprio país – inexoravelmente, tem de ser feito porque muitos dos médicos e enfermeiros que saem do SNS não o fazem por razões estritamente financeiras, fazem-no por cansaço, por sobrecarga, porque nós estamos a correr o risco de ter um Sistema de Saúde a duas velocidades, um SNS para pobres, para mais velhos, para pessoas com muita doença e temos neste momento quatro milhões de pessoas que têm coberturas secundárias.

Portanto, há um risco aqui de acentuarmos as desigualdades nas condições de acesso, sobrecarregarmos o trabalho no sistema público e muitos profissionais não aguentarem e preferirem sair por ter condições de trabalho mais tranquilas e menos pesadas.

E acha que a criação de uma Direção Executiva do Serviço Nacional da Saúde, como está previsto no Programa do Governo, é importante?

Se nós quisermos começar uma casa pelo telhado é, de facto, um bom caminho. Agora, sem primeiro fazer uma reforma da administração do Serviço Nacional de Saúde e do Sistema de Saúde, sem reconsiderar aquilo que são as competências e atribuições das Administrações Regionais de Saúde, da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS), o que vamos fazer é criar mais uma camada, mais uma camada de decisores, mais gente, mais recursos, mais conflito de interesses, mais entropia e mais burocracia.

Não consigo compreender como é que antes de fazer uma revisão da estrutura administrativa e uma revisão das competências e da relação entre órgão se vai criar uma segunda camada, uma terceira camada que necessariamente vai retirar competências a alguém e vai conflituar com as competências de alguém. Às vezes, parece que é preciso fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma. Eu espero que não seja esse o caso. Talvez daqui por um, dois anos isso possa ser considerado, mas a pergunta que se coloca é: então e agora? O que vai fazer a ACSS, o que vão fazer os hospitais? Não será mais fácil prosseguir o caminho da autonomia dos hospitais que vinha a ser iniciado há algum tempo e os hospitais poderem ter planos, orçamentos, autonomia, em vez de estarmos a criar uma estrutura piramidal burocrática de poder e controlo? Esta é a pergunta que eu deixo.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+