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Luto parental. Psicólogos dizem que “cinco dias para pedir apoio é curto”

05 jan, 2022 - 19:53 • Ana Carrilho

A lei entrou ontem em vigor e aumenta a licença por morte de descendentes ou afins em linha reta, de cinco para 20 dias. Os pais também têm direito a pedir acompanhamento psicológico, mas apenas cinco dias para o fazerem.

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O aumento da licença por luto parental de cinco para 20 dias é uma conquista “de louvar”, considera Eduardo Carqueja, presidente da delegação regional do norte da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), em declarações à Renascença.

A lei permite que os pais que perdem um filho, também peçam apoio psicológico, embora tenham apenas cinco dias para o fazer. E isso, na opinião do também diretor do Serviço de Psicologia do Hospital de S. João, no Porto, “é muito curto”.

Eduardo Carqueja defende que esse apoio deveria poder ser pedido durante o período de licença porque em cinco dias é quase impossível que venham a ter uma consulta, alegando que há muitas barreiras burocráticas, além da falta de recursos humanos para esta área, nos centros de saúde.

Por isso, o especialista considera que, em breve, a lei terá de ser ajustada, sob pena de ser “fantástica”, mas não conseguir ser cumprida, acabando por ser “um logro” para quem já está em sofrimento.

A lei 1/2022, que entrou ontem em vigor aumenta a licença por morte de descendentes ou afins em linha reta (filhos biológicos ou adotados, enteados, afilhados reconhecidos), de cinco para vinte dias.

Os pais têm direito a pedir ao seu médico assistente, “acompanhamento psicológico em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o qual deve ter início no prazo de cinco dias após o falecimento”.

O presidente da delegação regional do norte da Ordem dos Psicólogos aplaude o aumento dos dias de licença, mas considera que, na prática, os pais não vão ter apoio. “Numa altura destas, é difícil que as pessoas tenham o discernimento para irem a correr ao médico de família pedir uma consulta de psicologia”, refere.

“Precisam de estar com elas, de começar a integrar essa noção de sofrimento decorrente da perda e parece que se não for nesses dias, já estão fora de prazo”, prossegue.

Além disso, colocam-se outras questões práticas, nomeadamente a dificuldade de obter, no imediato, uma consulta com o médico de família. Mas mesmo que seja conseguida, Eduardo Carqueja questiona quem é que, no SNS, tem capacidade para responder a um pedido de acompanhamento psicológico, uma vez que “há uma barreira que tem que ser urgentemente destruída, que é a acessibilidade às consultas de psicologia”.

Este responsável recorda que os ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde) têm poucos psicólogos e um grande número de doentes em lista de espera e “não há recursos de intervenção psicológica breve nos centros de saúde”.

A alternativa que o médico de família tem passa por pedir uma consulta de psiquiatria no centro hospitalar de referência e é daqui que, depois, o doente é encaminhado para a mesma. Um processo que leva meses, “com barreiras atrás de barreiras para que as pessoas possam ter acesso a uma primeira consulta”, acrescenta.

Urgência exigia “via verde” ao apoio psicológico

Face a todos estes obstáculos, Eduardo Carqueja defende uma espécie de “via verde”, em que as pessoas pudessem recorrer diretamente a uma consulta de psicologia. “De outra forma, teremos – mais uma vez – uma lei fantástica, mas que não consegue ser cumprida, sendo um logro para as pessoas que vivenciam este sofrimento de perda de um filho e há que repensar o que isto significa”.

Para o dirigente da Ordem dos Psicólogos torna-se evidente que sem resposta no SNS, as pessoas recorrem a psicólogos no setor privado porque é mais rápido. “Mas apenas quem tem recursos económicos para o fazer”, alerta, e “mais uma vez, aumentamos o quadro de sofrimento das pessoas mais vulneráveis e fragilizadas”.

Eduardo Carqueja considera que fazia todo o sentido que o apoio pudesse ser pedido (e iniciado) durante o período de luto parental de vinte dias. Explica que a primeira semana “é de grande confronto anestésico com o que está a acontecer, a morte do filho; depois começa-se a sentir o vazio, a ausência da pessoa e já estamos a falar de quinze dias”.

Portanto, conclui, “faria todo o sentido que se pudessem usar os vinte dias”, considerando que “este prazo colocado na lei, 5 dias, não foi bem pensado. Tem boas intenções, mas em breve terá que ser ajustado”.

Luto prolongado é problema de saúde pública

Eduardo Carqueja chama ainda a atenção para o facto do luto – não apenas parental – ser um problema de saúde pública. “Se falarmos em 10% da população enlutada que vem a sofrer do que é o luto prolongado (ou seja, adoecer por luto), estamos a falar de muitos milhares de portugueses que sofrem com este problema”.

“Sem recursos humanos suficientes e com preparação científica para intervir, o fármaco é sempre a primeira coisa a usar para tratar uma coisa que não é doença, mas sim, sofrimento e, este”, sublinha, “tem que ser trabalhado e não medicado”.

Eduardo Carqueja lembra que muitas pessoas em luto começam por tomar antidepressivos e acabam por ficar “presas nas emoções”.

O responsável exemplifica com as “emoções que ficam reprimidas porque os fármacos inibem a sua expressão natural”, nomeadamente o choro e a tristeza.

“As pessoas ficam quase anestesiadas e acabam por ter de fazer o processo de luto em alturas mais desadequadas, menos compreensíveis”, alude. Depois, “há aqui outro sofrimento que decorre do não acompanhamento dos processos de luto no momento devido”.

Ainda em relação ao prazo referido na lei, o psicólogo recorda que cada um que sofre uma perda, precisa do seu próprio tempo.

“Para uns serão cinco dias, outros dez, vinte ou mais. E o que a lei está a fazer é a padronizar um sofrimento que é individual. Cada pai ou mãe que perde um filho tem uma vivência única que não é comparável com nenhuma outra”, enfatiza.

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