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Dia Mundial da Doença de Alzheimer. A realidade portuguesa

21 set, 2021 - 10:30 • Bruna Sousa

Dos sinais da doença às ajudas disponíveis, dos mitos à problemática dos cuidadores informais, saiba o que dizem os especialistas. A demência não define a pessoa e não se resume à perda de memória. No tratamento, quanto mais precoce o diagnóstico, melhor.

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“A doença de Alzheimer é um tipo de demência que provoca uma deterioração global, progressiva e irreversível de diversas funções cognitivas. Esta deterioração tem como consequências alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional da pessoa, dificultando a realização das suas atividades de vida diária”. É esta a definição da doença de Alzheimer apresentada pela Associação Alzheimer Portugal.

Da teoria à prática, Belina Nunes, médica especialista de neurologia, diretora da Clínica de Memória e autora de livros como “Alzheimer em 50 Questões Essenciais” e “Ética na Doença de Alzheimer”, explica a que sinais devemos estar atentos: “na sua apresentação típica, a doença começa com esquecimentos frequentes, repetidos e que implicam cada vez mais com a autonomia e a funcionalidade da pessoa”.

Das dificuldades “em nomear objetos, recordar nomes, caras, lugares conhecidos”, o doente acaba por se tornar repetitivo. Da mesma forma, “pode surgir desorientação no espaço, progressiva dificuldade em executar tarefas rotineiras, com insegurança, irritabilidade e até desconfiança de que a família os engana – em termos de esconder as coisas ou não lhes dizer as informações de que não se recordam – pois deixam progressivamente de conseguir reter e evocar a informação recente”.

À conversa com a Renascença, a diretora técnica da delegação Norte da Associação Alzheimer Portugal, Marta Melo, revelou que, em Portugal, não há qualquer estudo que tenha sido feito quanto à prevalência de diagnóstico de doença de Alzheimer. “Por isso, o que se faz é, atendendo a estudos feitos sobre a demência, por exemplo pela Alzheimer Europe, transpomos para a realidade portuguesa”.

O estudo “Dementia in Europe Yearbook 2019 – Estimating the prevalence of dementia in Europe”, da Alzheimer Europe, aponta que, em 2018, Portugal tinha mais de 193 mil pessoas com demência. Tendo em conta que a doença de Alzheimer é considerada a forma mais comum de demência, constituindo cerca de 50% a 70% dos casos, estima-se que, nesse ano, houve entre 95 e 135 mil pessoas com a doença em Portugal.

Sem cura e com múltiplas causas

Até hoje, não existe cura para o Alzheimer. “A doença de Alzheimer é considerada multifatorial. Conhece-se o processo fisiopatológico que vai resultar na degenerescência neuronal, progressiva e irreversível, a qual se inicia com a deposição da substância amilóide em áreas específicas do cérebro, por vezes duas décadas antes dos sintomas cognitivos iniciais”, explica Belina Nunes.

Segundo a neurologista, “falta discriminar a importância relativa de cada fator envolvido e de que modo cada um atua na cascata fisiopatológica que leva à morte neuronal”. De qualquer maneira, garante que “o envelhecimento, a baixa escolaridade, o género feminino, a diabetes, hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, sedentarismo e o tabagismo são alguns dos fatores que se sabe que aumentam o risco de desenvolver a doença”.

Há que tentar “outras abordagens”

Em Braga, encontra-se o Centro CEREBRO, uma clínica de neurociências e neurorreabilitação. O diretor e neuropsicólogo do centro, Jorge Alves, explica à Renascença que o espaço foi fundado em 2015 para tentar responder à falta de respostas clínicas para pessoas com perturbações neurológicas, nomeadamente a doença de Alzheimer.

“No nosso entender, existia uma lacuna em Portugal de respostas que fossem objetivas, humanistas, que fossem baseadas em ciência e em tecnologia, ou seja, que combinassem todas estas vertentes, de forma a dar a melhor reabilitação, com a intervenção possível às pessoas”, explicou.

Hoje, o Centro CEREBRO oferece um conjunto de terapias não farmacológicas. Jorge Alves diz que não se pode “comparar se a farmacologia é mais ou menos eficaz do que as terapias não farmacológicas”. Na verdade, habitualmente, “são vistas como complementares na reabilitação neurológica”.

“Infelizmente, não existe propriamente uma resposta farmacológica que permita voltar atrás no tempo, parar a doença de avançar, ou seja, não modifica a doença, por isso é que tem de se tentar criar outras abordagens”, defende.

Jorge Mendes sublinha que, apesar de não podermos afirmar neste momento que existem tratamentos, sejam farmacológicos ou não farmacológicos, que podem mudar o curso da doença, “é interessante, com expectativas realistas, termos em atenção que há estudos preliminares que nos mostram que a realização de determinados exercícios permite melhorar o estado do doente e, de certa forma, desacelerar as consequências da doença”.

“Por exemplo, o treino cognitivo, realizado de forma regular e sistemática na fase inicial do Alzheimer pode gerar o declínio do metabolismo cerebral, ou seja, que o funcionamento do cérebro ocorra de uma forma mais lenta. Não há aqui uma paragem de progressão, mas levanta a esperança de que podemos ter um impacto benéfico”, referiu.

Mas nem sempre a demência está relacionada com problemas de memória, destaca o diretor do centro. “No caso da demência de Alzheimer, existem variâncias em que são afetadas, desde logo, as funções visuais”, exemplifica.

“A pessoa pode descrever que começa a ver turvo, pode começar a ter acidentes de carro ou pequenos embates. O olho está bem, mas é um problema cerebral”, adianta.

“Ninguém é o super-homem”

Se, de início, os familiares e cuidadores informais apensa aparecem nas consultas a acompanhar os doentes de Alzheimer, muitos acabam por ter de recorrer a cuidados psicológicos, afirma Jorge Alves. E há “excelentes exemplos de força”.

“Habitualmente – estaremos a falar de cerca de 80% das pessoas – iniciam o processo de forma individual. Mais tarde, os cuidadores vão somando a fadiga, que acaba por já não poder ser levada no dia-a-dia... Infelizmente, ainda há no nosso país aquela ideia de aguentar até não poder mais”.

“O cuidador tem, de facto, vários papéis: cuidar da pessoa fisicamente, apoiar na gestão financeira, cultivar as suas relações interpessoais e, depois, tem de, idealmente, tomar conta de si” – uma acumulação de papéis “que pode colocar a pessoa em sobrecarga e, mesmo que a pessoa esteja a tentar levar tudo a bom porto, ninguém é multitarefa, ninguém é o super-homem”, sublinha.

“Basta dizer que há estimativas que nos dizem que, entre 15% e 55% dos cuidadores sofrem de depressão ou de ansiedade relacionada também com a situação gerada pela fadiga”, acrescenta.


A doença da Covid-19 leva, muitas vezes, a diminuições de funções cognitivas. Há estudos que nos dizem que podemos chegar a 30% de pessoas, que, mesmo tendo doença de ligeira a moderada, ficam com diminuição da sua memória e atenção.


Além de se tentar “dar o litro” até não se poder mais, o neuropsicólogo aponta a perceção de falta de respostas e de apoio social como fator dissuasor para procurar ajuda. Isto, apesar de esta perceção nem sempre ser real. Jorge Alves aponta os médicos de família como uma porta de recurso e a existência do Estatuto do Cuidador Informal.

No que ao Estatuto diz respeito, a diretora técnica da delegação Norte da Associação Alzheimer Portugal, Marta Melo, destaca a importância do seu reconhecimento, “uma vez que, em determinadas situações, as pessoas ficam completamente desprotegidas, não só financeiramente, mas também ao nível de apoios na comunidade”.

Segundo o Estatuto do Cuidador Informal, uma pessoa reconhecida como tal passa a ter alguns direitos, como “usufruir de apoio psicológico nos serviços de saúde sempre que necessário”, “beneficiar de períodos de descanso que visem o seu bem-estar e equilíbrio emocional” e acesso “ao subsídio de apoio”, caso seja o cuidador informal principal.

“Quem é cuidador sabe que é cuidador, mas o Estado não”

Marta Melo acredita que o reconhecimento do Estatuto de Cuidador Informal foi um grande passo. Vê o copo meio cheio e diz: “quem é cuidador sabe que é cuidador, mas o Estado não sabia da existência dessas pessoas. Agora, quem requer o estatuto passa a ser um número para o Estado”.

Ainda assim, enfatiza, é necessário continuar a dar pequenos passos, uma vez que os direitos do estatuto ainda não se reveem na totalidade.

“Há apoios que estão definidos através do Estatuto do Cuidador Informal que, na prática, nós percebemos que ainda não estão disponíveis para os cuidadores, nomeadamente o facto de se dizer que os cuidadores têm à disposição a participação em grupos de suporte ou terem apoio psicológico. Em vários concelhos-piloto isso não existe. Esta articulação que o Estado tentou fazer entre Segurança Social e centro de saúde ainda está a começar a acontecer e implica a contratação de novos profissionais e criação de grupos de apoio”, esclareceu.

De momento, a Associação Alzheimer Portugal procura colmatar algumas dessas lacunas. Através da Linha de Apoio na Demência, um conjunto de psicólogos percebe as necessidades do cuidador e, consoante a avaliação, dá uma resposta emocional, encaminha para respostas da comunidade ou para respostas da Alzheimer Portugal.

Além da promoção da formação para cuidadores profissionais e familiares, proporcionam as sessões do Café Memória, onde os cuidadores podem “partilhar experiências, emoções e dificuldades”.

No ano passado, a associação apoiou cerca de 6.700 beneficiários diretos e cerca de 7.260 pessoas participaram nas suas ações e eventos. Quanto à Linha de Apoio na Demência, com o início do contexto pandémico, sentiu-se uma diminuição do número de contactos, mas, nos meses seguintes, houve um aumento significativo de cerca de 23% face ao ano de 2019.

Covid-19. “A exigência física e mental tornou a doença mais difícil”

Com a chegada da pandemia, o diretor do Centro CEREBRO também sentiu uma maior procura. O neuropsicólogo Jorge Alves consegue apontar diversos motivos: o adiamento da procura de uma resposta e a rutura de um ambiente, aliados ao isolamento social e à privação de estimulação social. “A doença já estava lá, mas a exigência física e mental tornou-a mais difícil”, diz.

O mesmo aponta a médica Belina Nunes: “o prolongado isolamento social, em especial nas pessoas institucionalizadas, teve graves implicações ao nível cognitivo e funcional, com aceleração rápida do declínio cognitivo e da mobilidade. Ocorreu uma perda mais acelerada do que o usual da linguagem, das capacidades motoras e, em geral, da autonomia dos doentes”.

A diretora técnica da delegação norte da Associação Alzheimer Portugal, Marta Melo, realça também a dificuldade de atendimento médico com a chegada da pandemia.

“Antes, a norma era que quem fosse acompanhado pelo Sistema Nacional de Saúde tinha consultas de neurologia ou de psicologia de meio em meio ano. Com a pandemia, houve pessoas que estiveram mais de um ano sem ter qualquer tipo de consulta ou tinham uma consulta telefónica, quando isso era claramente insuficiente”, explica.

Com o aumento da procura, Jorge Alves garante a importância de esclarecer uma outra questão: a capacidade de distinção entre a diminuição de funções cognitivas e a doença Alzheimer ou similares.

“A doença da Covid-19 leva, muitas vezes, a diminuições de funções cognitivas. Há estudos em torno da temática que nos dizem que podemos chegar a 30% de pessoas, que, mesmo tendo doença de ligeira a moderada, ficam com diminuição da sua memória e atenção”.

Apesar de não ser “um processo típico de neurodegeneração”, há dados que apontam para esse estado clínico. Segundo o diretor do Centro CEREBRO, ainda não se sabe se as pessoas recuperaram totalmente, mas que, por pelo menos seis meses, poderão sentir esses sintomas. Sintomas que, apesar de similares aos do Alzheimer, estão muito longe de o ser”.

“A pessoa é muito mais do que a demência”

Marta Melo acredita que o tema Alzheimer é agora mais discutido no espaço público do que há uns anos. No entanto, crê que era importante falar-se ainda mais sobre a doença. “Não há ninguém que nunca tenha ouvido a palavra Alzheimer, mas, muitas das vezes, assume-se que tudo é Alzheimer, mas nós não nos podemos esquecer que há outros tipos de demência”.

Desta forma, recorda a iniciativa “Amigos na Demência”, que resume os pontos chave a reter sobre o Alzheimer: a demência não faz parte do envelhecimento normal, a demência é causada por doenças do cérebro, a demência não se resume à perda de memória, é possível viver melhor com demência e a pessoa é muito mais do que a demência.

Da parte de Belina Nunes, o conselho que fica é “procurar apoio médico rapidamente, de modo a ser efetuado um diagnóstico abalizado”. E, “no caso de ser doença de Alzheimer, o diagnóstico precoce é muito importante, quer para o tratamento médico imediato e acompanhamento futuro do doente, quer em termos de orientação do doente – ou da família consoante a situação – em termos dos cuidados necessários na organização da vida pessoal e da família”.

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