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Jogo

“Muitas pessoas vão à raspadinha procurar resolver problemas do dia-a-dia”

01 mar, 2021 - 16:52 • Susana Madureira Martins

Investigador alerta para o comportamento aditivo das lotarias instantâneas e para a dificuldade em impedir o acesso a esse tipo de jogo.

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A crise económica associada à pandemia tenderá a aumentar comportamento aditivos relacionados com o jogo e em especial com a raspadinha, alerta Pedro Morgado, psiquiatra e investigador da Universidade do Minho, que já publicou um estudo sobre este assunto revista “The Lancet Psychiatry”, com Daniela Vilaverde

Em entrevista à Renascença, Pedro Morgado salienta a necessidade de mais estudos, como o que o Conselho Económico e Social pretende promover.

Uma das conclusões do estudo é que em Portugal se gasta mais dinheiro em raspadinhas e na lotaria instante do que, por exemplo, os nossos vizinhos em Espanha. Numa resenha do estudo, li que gastamos à volta de 160 euros ao passo que em Espanha gastam-se em média 14 euros por ano. Como se explica?

As raspadinhas são em Portugal muito mais populares do que noutros países, em particular Espanha, que é um país muito parecido connosco do ponto de vista cultural, mas a diferença de magnitude convoca-nos para uma grande preocupação em torno deste assunto. Em Espanha, o gasto médio por ano é de 14 euros por pessoa, em Portugal é de 160 euros e isto significa que há um número de pessoas que, de facto, investe muito dinheiro por dia em raspadinhas.

E os números por vezes não traduzem estes pequeninos pormenores: quando dizemos 160 euros por pessoa, estamos a mascarar que há pessoas que gastam centenas de euros por dia e milhares de euros por mês na raspadinha e são essas pessoas que nos preocupam.

São as pessoas que fazem um consumo que é patológico, que têm na raspadinha um comportamento que é uma demonstração de que estão doentes e que, com a proliferação de pontos de venda, com a publicidade indireta que é feita a este jogo e agora com esta nova raspadinha estão mais vulneráveis a sofrer ainda mais com esta doença e acentuar os gastos que já têm e que já são muito elevados.

É um vicio que tem sido ignorado ou, pelo menos, negligenciado pelas autoridades?

É um vicio que tem um grande impacto e que em Portugal tem este potencial de impacto superior ao que se verifica noutros países e para o qual temos um défice muito grande, por um lado, de compreender a verdadeira extensão do fenómeno - não existem estudo epidemiológicos que nos digam quantas pessoas temos com este problema- , por outro lado também não há mecanismos de resposta apropriados, seja de prevenção, seja de tratamento que nos levem a diminuir o números de pessoas com este problema e a tratar adequadamente aquelas que já estão nas malhas deste vicio.


Há alguma ideia do universo de pessoas adictas a este tipo de jogo?

Tanto quanto sabemos não existe esse número, não existem dados fiáveis em Portugal e, por isso, é que é necessário haver mais estudos que incidam sobre este problema. Os números que foram divulgados em relação ao consumo de raspadinhas destacavam um pouco este problema, mas precisamos de dados que nos permitam compreender mais a fundo o que se passa efetivamente.

Em épocas de crise, como a que estamos a viver com a pandemia, este vício agrava-se ou não?

Aquilo que sabemos sobre os comportamentos aditivos em geral é que, nos momentos de crise financeira, há o risco de haver um aumento dos comportamentos desadaptativos. Neste caso, em particular, uma vez que a crise financeira parece que pode ser resolvida por via do jogo, esse jogo é ainda mais potenciado, porque muitas das pessoas vão à raspadinha procurar resolver muitos dos seus problemas do dia-a-dia e esta ilusão de que é fácil ganhar contribui significativamente para o estabelecimento de comportamentos patológicos.

Toda a evidência aponta no sentido de que situações de crise económica, porque também têm instabilidade do ponto de vista emocional, mais ansiedade, mais sintomas depressivos são contexto em que é de esperar um aumento do número de pessoas a sofrer deste problema.

Para além de investigador, é psiquiatra no Hospital de Braga. Em que estado é que lhe chegam os doentes por causa deste vicio no jogo?

As pessoas que chegam às consultas, normalmente, vêm por iniciativa de familiares e chegam numa fase em que já gastaram todas as suas poupanças, já fizeram empréstimos a amigos e familiares, muitas vezes já fizeram empréstimos a instituições bancários com juros elevadíssimos e, portanto, estão numa situação de completa ruina económica e estão também numa situação de enorme desespero e angústia e experienciam sintomas de ansiedade e sintomas depressivos muito significativos.

São histórias muito dramáticas que nos chegam e que esbarram na dificuldade que temos, no caso concreto da raspadinha, de impedir que estes comportamentos continuem a acontecer. Quando temos outro tipo de jogo patológico é possível as pessoas pedirem uma exclusão, por exemplo de entrar num casino ou apostar num site de jogo, mas com as raspadinhas nada disso é possível e, portanto, muitas vezes as familiais vêm desesperadas porque sentem-se impotentes para controlar esta situação.

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