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E se um GPS ajudasse a remover tumores cerebrais? Inês Machado investigou e ganhou um prémio

06 nov, 2020 - 10:37 • Liliana Carona

O Fraunhofer Portugal Challenge que decorre há 10 anos, é um concurso de ideias que premeia as melhores propostas baseadas em teses de Mestrado e Doutoramento, realizadas em universidades portuguesas, com utilidade prática. A gouveense Inês Machado conquistou o primeiro lugar na categoria de doutoramento do Fraunhofer Portugal Challenge 2020.

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Sem residência fixa, porque o trabalho e a investigação levam Inês Prata Machado, 30 anos, natural de Gouveia, para fora de portas lusitanas. Doutorada em Engenharia Biomédica pelo programa MIT Portugal no Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, na área da inteligência artificial aplicada à medicina, desenvolveu parte do seu doutoramento no Técnico, na National University of Ireland, em Galway, na Irlanda, e no Massachusetts Institute of Technology (MIT) em Boston, nos Estados Unidos.

Estas foram caminhos que levaram Inês à conquista do primeiro lugar na categoria de doutoramento do Fraunhofer Portugal Challenge 2020, uma competição que premeia soluções tecnológicas com um impacto positivo na vida das pessoas e que promovem a missão de criar 'tecnologia notável/fácil de usar'. Atualmente, a investigadora é também professora assistente convidada de Programação de Computadores e de Computação em Imagem Médica no King's College London, em Londres.

Em 2015, Inês Machado conseguiu uma das dez bolsas de estudo disponíveis em Bioengenharia, o que lhe permitiu desenvolver dois anos do seu trabalho de doutoramento no Instituto Superior Técnico e dois anos em Boston, no MIT e na Harvard Medical School. Tudo começou com uma conversa informal com o médico neurocirurgião Herculano Carvalho, do Hospital de Santa Maria, e com o professor Jorge Martins, do Centro de Sistemas Inteligentes do Instituto Superior Técnico. “Nessa conversa, discutimos os atuais desafios da neurocirurgia em Portugal e definimos um projeto a 4 anos para dar resposta ao mais ambicioso desses desafios – a correção do efeito do brain shift durante a remoção de tumores cerebrais em tempo real”, desvenda.

Quando dois centímetros "são" quilómetros

Mas, na prática, como funciona o GPS do projeto de doutoramento de Inês Machado - “Sneaking into the brain with a new GPS-like technology” - e o que é o efeito "brain shift"?

“Tal como os sistemas GPS dos nossos carros, que utilizam um mapa pré-definido para nos guiar à localização pretendida, existe o conceito de neuronavegação em neurocirurgia - em que se usa um mapa do cérebro (a imagem de ressonância magnética adquirida antes da cirurgia) para guiar o neurocirurgião durante a remoção do tumor cerebral”, refere Inês Machado, contextualizando o projeto vencedor.

“Estes sistemas de posicionamento global do cérebro são atualmente usados em neurocirurgia em Portugal. Contudo, apresentam uma grande limitação: quando se abre o crânio do doente, para acedermos ao cérebro, há perda de líquido cefalorraquidiano (fluido que envolve o nosso cérebro) e o tumor move-se ligeiramente da sua posição inicial. Este deslocamento foi já quantificado e pode atingir o valor máximo de dois centímetros. Isto significa que estamos a usar um mapa que, a partir do momento em que abrimos o crânio do doente, deixa de ser válido. E dois centímetros de erro no cérebro é uma distância muito grande, porque significa que estamos a tocar em partes que queremos preservar. Este efeito tem o nome de' brain shift' e é um dos desafios mais ambiciosos da neurocirurgia dos nossos tempos. Há casos, em que o médico decide não operar porque o tumor está muito perto destas estruturas crucias para o funcionamento normal do cérebro”, destaca.

Durante o doutoramento, Inês Machado implementou uma solução tecnológica que permite corrigir este efeito de "brain shift" em tempo real durante a cirurgia. “Na sala de cirurgia do Brigham and Women’s Hospital da Harvard Medical School em Boston, adquirimos imagens de ultrassonografia tridimensional do cérebro do doente em tempo real e fazemos a fusão dessas imagens com a imagem adquirida no pré-operatório. Desta forma, sabemos sempre a localização exata do tumor no cérebro do paciente durante a cirurgia e atualizamos o mapa do sistema GPS”, esclarece, sublinhando que “uma das grandes conquistas desta solução tecnológica é a redução do erro do procedimento cirúrgico num fator de 10. Ao contrário dos 2 centímetros de erro inicial da cirurgia, lidamos agora com um erro de 2 milímetros, o que significa que muito mais cirurgias podem ser realizadas com maior confiança na tecnologia usada."

A eficácia do "software" foi validada por neurocirurgiões, radiologistas e engenheiros do MIT, Harvard Medical School e do Brigham and Women’s Hospital em Boston e levou à atribuição de três prémios científicos e publicação de vários artigos científicos em revistas de elevado fator de impacto.

Aplicar a engenharia à neurocirurgia

Ainda no mestrado na área da neuroengenharia, a jovem investigadora implementou um "software open-source" que usa algoritmos de inteligência artificial que permitem um diagnóstico mais objetivo de patologias como Alzheimer e Parkinson e, depois do mestrado, decidiu continuar a estudar o cérebro, neste caso, aplicar a engenharia à neurocirurgia.

“Quando um doente é diagnosticado com um tumor cerebral, é feito um exame de ressonância magnética que permite saber a localização exata e tipo de tumor a ser tratado. Sabemos que o cérebro é responsável por funções essenciais como o nosso movimento, linguagem e visão e áreas que nos definem como seres humanos, como os nossos pensamentos e emoções, e por isso cirurgias que envolvam o nosso cérebro apresentam riscos elevados – muitas das vezes, estes tumores estão localizados em zonas do cérebro que codificam a nossa fala ou a coordenação motora, e tocar nestas áreas pode comprometer o funcionamento normal do nosso cérebro”, revela Inês Machado, considerando que atualmente a evidência científica demonstra que “quanto maior a percentagem de tumor que se retira do cérebro do doente, melhor a sua qualidade de vida após a cirurgia”. Contudo, sublinha a investigadora científica que “há um grande desafio na extração de tumores cerebrais, pois a olho nu, o tecido saudável do cérebro e o tumor são praticamente idênticos, ou seja, é muito difícil para o médico definir a fronteira entre tecido saudável (parte do cérebro que queremos preservar) e tumoral."

Organizado desde 2010, o Fraunhofer Portugal Challenge visa incentivar a cooperação entre a indústria e a comunidade científica, motivando e premiando a investigação de utilidade prática, atribuindo um prémio aos alunos e investigadores que melhor contribuírem para a filosofia que está na base da visão do Fraunhofer AICOS: criar soluções tecnológicas com um impacto positivo na vida das pessoas. Para Inês Machado “a atribuição do primeiro lugar na categoria de doutoramento do Fraunhofer Portugal Challenge 2020 é o reconhecimento do meu trabalho de doutoramento dos últimos 4 anos. “Sneaking into the brain with a new GPS-like technology” é uma solução tecnológica de grande impacto e benefício para a sociedade e ser reconhecido como o melhor trabalho de investigação com utilidade prática desenvolvido em Portugal é muito gratificante para nós”, conclui.

De olhos postos no futuro, Inês Machado continua a trabalhar diariamente na área de imagem médica ,e neste momento, num novo projeto ligado à cardiologia - o SmartHeart project que reúne investigadores do Imperial College London, King's College London, Queen's Mary University of London e a Universidade de Oxford no sentido de desenvolver uma nova abordagem de diagnóstico de doenças cardiovasculares através de imagens de ressonância magnética. “O objetivo é desenvolver um scanner de ressonância magnética inteligente que permita um diagnóstico rápido, eficaz e eficiente através da combinação dos avanços na aquisição, reconstrução e análise destas imagens com os avanços da inteligência artificial e aprendizagem automática”, adianta.

Inês Prata Machado é Mestre em Engenharia Biomédica pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e pelo programa de neurociências da Fundação Champalimaud e Doutorada em Engenharia Biomédica pelo programa MIT Portugal no Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa na área da inteligência artificial aplicada à medicina.

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