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A última escrava portuguesa morreu em Lisboa nos anos 1930

25 mar, 2017 - 10:36 • Dina Soares

“Escravos de Portugal” reúne histórias de escravos. Portugal é pioneiro na abolição da escravatura, mas ela só acabaria, de facto, muito depois de 1761, diz o historiador Arlindo Manuel Caldeira.

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Já Portugal era há muito uma república quando morreu, em Lisboa, a última escrava do império. Foi nos anos 30 do século passado. Os jornais da época diziam que teria 120 anos. Era muito conhecida no Bairro Alto, onde vendia amendoins. Tinha sido escrava até 1869, data em que foi publicado o decreto que abolia a escravatura em todo o território português.

Portugal foi o primeiro estado do mundo a fazer comércio global de escravos vindos de África. Entre 1450 e 1900, terá traficado cerca de 11 milhões de pessoas. Apesar da mitologia histórica nacional gostar de exibir o galardão de primeiro país do mundo a abolir a escravatura, o decreto publicado em 1761 pelo Marquês de Pombal não acabou, de facto, com os escravos.

A história da escravatura no império português só começou a ser estudada a sério depois do 25 de Abril.

Segundo o historiador Arlindo Manuel Caldeira, autor de “Escravos em Portugal - Das Origens ao Século XIX”, editado este mês pela Esfera dos Livros, “o facto de termos vivido durante muito tempo sob um regime autoritário que se baseava num esforço de propaganda marginalizou estes aspectos e tornou-os muito difíceis de abordar. Não havia teses nas universidades e as que existiam tinham quase sempre efeitos laterais de propaganda – serviam mais para negar a realidade do que para a tentar compreender.”

Olhar para a realidade da escravatura do ponto das pessoas foi o objectivo do estudo agora publicado por este historiador. “Escravos em Portugal” reúne histórias de vítimas da escravatura. Entre elas estão as de Lourenço, marcado na testa pelo seu senhor com um ferro em brasa; a de João, que tinha ao pescoço uma argola de ferro com o nome do seu dono; e a de Florinda, chamada à Inquisição por recorrer a feitiços na esperança de abrandar as iras da sua ama.

“O escravo é normalmente apresentado como uma peça, um objecto. Eu quis apresentá-los como pessoas, seres vivos, o que não é fácil porque nem sempre as fontes que referem a escravatura têm este cuidado com as pessoas. Pelo contrário”.


GRÁCIA, CONDENADO PELO SEU PRÓPRIO ASSASSINATO

A história passa-se no século XVII, em Évora. Grácia, escrava pertencente a um despenseiro do Santo Ofício, era uma mulher fraca e, provavelmente, com problemas de saúde. Certo dia, o dono manda-a levar uns cestos de queijos a um almocreve que vinha para Lisboa. Grácia não aguenta o peso dos cestos, deixando-os cair. Como castigo, o despenseiro espanca-a com grande violência. A mulher regressa a casa, gritando "morro, morro". Acaba mesmo por morrer. A Inquisição decide, então, abrir um processo para justificar a morte, que acaba provando que a culpada era… a própria escrava. O padre encarregue do processo ainda lamenta não ter chegado mais cedo ao local do crime. "Conheço muito bem as manhas dos escravos” – diz ele nos autos – “eles fecham a boca para deixarem de respirar e morrerem. Se tivesse chegado mais cedo, chegava-lhe fogo à boca, ela era obrigada a respirar e não morria."


Para encontrar estas histórias de escravos, Arlindo Manuel Caldeira recorreu sobretudo aos processos judiciais. “ O que têm mais informação são os processos da Inquisição, onde as perguntas são muito detalhadas e muito dirigidas ao quotidiano, o que os torna particularmente ricos”.

A escravatura não foi proibida em 1761

“Escravos em Portugal” vai desde as origens da escravatura até ao século XIX.

“Na verdade, em 1761, a escravatura não foi proibida, o que foi proibido foi a entrada de novos escravos. Isso não se traduziu no fim da escravatura, uma vez que, além dos escravos já existentes, havia também os que nasciam de mãe escrava e por isso continuavam escravos. Em 1763, o Marquês de Pombal aprovou uma nova lei, a lei do ventre livre, que determinava que os filhos de escravos passavam a ser homens livres e que todos os escravos cuja bisavó já era escrava podiam ser libertados. Teoricamente, restava apenas uma geração de escravidão, mas isso não aconteceu por razões fraudulentas: a entrada ilegal de escravos vindos das colónias.”

Com a independência com o Brasil, em 1822, regressam a Portugal muitos portugueses que trouxeram os escravos como um dos seus aforros.

Perante a lei, à chegada a Portugal deviam tornar-se livres, mas o rei concedeu aos seus donos um privilégio especial para os poderem manter.

Para Arlindo Caldeira, “a precocidade da decisão do Marquês tem sido muitas vezes usada como propaganda porque se partia apenas da realidade europeia, quando o que estava em causa era a abolição nas colónias”.

Mesmo assim, o historiador reconhece méritos ao primeiro-ministro de D. José I. “O Marquês era um ser muito complexo. Era um mercantilista, mas também um iluminista. Foi ele, por exemplo, que acabou com o estatuto do cristão-novo. Ele via que o escravo era um ser marginalizado e procurou integrá-lo na sociedade. Na Europa, o Marquês é um precursor. Portugal é um dos primeiros a abolir a entrada de escravos na Europa, mas também não podemos esquecer que somos quase dos últimos a abolir a escravatura nos territórios coloniais.”

Indemnizações?

Curiosamente, esta realidade não dá origem a grandes movimentos abolicionistas – os que surgem, surgem bastante tarde.


JOÃO DE SÁ, DE ESCRAVO A CAVALEIRO

O caso mais conhecido de ascensão social de um escravo aconteceu com um homem chamado João de Sá, que viveu na corte de D. João III. João de Sá tinha trabalhado nas cavalariças de um nobre próximo do rei e foi o seu dono que o recomendou para a corte. Como era muito “gracioso”, isto é, tinha um grande sentido de humor, tornou-se muito apreciado pelo rei que não só lhe deu alforria como também o hábito da Ordem Militar de Santiago, uma distinção bastante rara. É o único escravo nesta situação, uma situação realmente excepcional.


“Quando se começa a discutir – sobretudo por pressão inglesa – a restrição ao tráfego nas colónias, isso provoca grande resistência em Portugal. Só muito tarde é que surge uma corrente favorável à abolição da escravatura, contra os interesses instalados nas classes dirigentes, e a primeira medida a proibir a escravatura em todos os territórios sob administração portuguesa só é aprovada em 1869. Em Portugal continental já quase não havia escravos, mas nas colónias havia muitos e essa realidade manteve-se de forma encapotada como trabalho forçado, que é quase a mesma coisa, pelo século XX fora.”

A constatação desta realidade tem alimentado uma corrente que defende que os países africanos de onde era oriunda a maioria dos escravos deviam ser indemnizados.

Arlindo Caldeira discorda. “Não vejo nem fundamento nem viabilidade. Vitorino Magalhães Godinho dizia que a culpa não é hereditária. Mesmo o pedido de desculpas só se compreende do ponto de vista político. No caso de indemnização, como se iria calcular o valor de uma vida humana e quem devia receber a indemnização? A nossa obrigação é fazer tudo para evitar que se repitam os erros do passado”, argumenta.

“Indiferença” a um crime

Actualmente, a escravatura é um crime e isso faz toda a diferença. O que preocupa o historiador é a “indiferença” com que as notícias sobre este crime são recebidas pela opinião pública.

“Mais do que o crime é si, o que é grave é a indiferença com que se encaram situações que estão muito próximas da escravidão”, critica.

Apesar de parecer uma realidade longínqua, a escravatura continua a existir. Em Portugal, entre 2014 e 2015, o Observatório do Tráfico de Seres Humanos, do Ministério da Administração Interna, sinalizou 193 presumíveis escravos e deu conta de 40 condenações de traficantes. A organização não-governamental Walk Free Foundation calculava que, em 2016, viviam em todo o mundo 46 milhões de pessoas em regime de escravidão.

Comentários
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  • Antonio Santos
    27 jan, 2023 mafra gare 09:35
    Alguém me poderá dizer o nome da ultima escrava em Portugal, referida aqui no texto? Obrigado
  • Tiago
    22 ago, 2021 Lisboa 14:12
    Neste livro o autor mostra de forma original e sem sombras de duvidas os documentos da Inquisição que ele diz provar estas histórias que conta ? É que cheira-me a mais um mito no meio de milhares deles sobre a Inquisição... Sim, porque sinceramente não a ver a Inquisição a abrir um processo apenas para "justificar" uma morte de uma "escrava" ... Isso soa-me a muito ridiculo e disparatado ... Até porque a Inquisiçao servia para julgar heresias, e nao ia abrir processos parvos destes à toa , para justificar uma morte. A Inquisição era um tribunal católico, e um tribunal não justifica mortes, apenas julga e condena se é culpado ou inocente , ponto. Cheira-me a um mito tal e qual aqueles que dizem que a Inquisição matou milhoes de pessoas ahahha
  • Ortigão São-Payo
    16 nov, 2020 Pera, Silves 12:14
    A história sobre a corte de Gogunhana e a vinda de alguns dos seus membros para Portugal continental é ignorada!
  • Jose Sa
    26 mar, 2018 Lisboa 11:42
    Além dos números incorrectos, também não é verdade que o tema só tenha começado a ser estudado depois do 25 de Abril. O que sempre houve foi poucos historiadores portugueses a investigarem o que quer que seja. Mas, antes do 25 de Abril, já havia em Portugal Valentim Alexandre, Jill Dias e ainda antes Isabel Henriques. E houve diversos estrangeiros, bastando citar Joseph C Miller, por exemplo. Mas a nível mundial o assunto só começou a interessar o ocidente a partir dos anos 60, e das independências africanas. O que há de especial no pós 25 de Abril é que se deixou de ensinar História da expansão portuguesa, e por isso a ignorância pública sobre este tema é geral, permitindo aliás que venha agora gente mistificar assuntos bem estudados como este.
  • Jose Sa
    26 mar, 2018 Lisboa 11:32
    11 milhões de escravos, ou mais exactamente 10 milhões, foi a totalidade dos escravos traficados no Atlântico de África para as Américas. Mas, desses, Portugal só foi responsável por 40%, ou seja, uns 4 milhões.
  • Joao paulo
    13 set, 2017 Lisboa 19:16
    Joao discordo na totalidade na parte do farao nao ter escravos para lhe construirem as piramides isso existiu na realidade nao foi mentira nenhuma existem documentos e livroq datados da epoca que comprovam isso mesmo e a propria biblia tb o refere. Aquelas pessoas nao estavam com um sorriso na cara ao carregar aquelas pedras com aquelas dimensoes so porque era um prazer trabalhar para o faraó aida por cima de borla.
  • João
    30 mar, 2017 Lisboa 13:47
    Marco Aurélio deveria estudar melhor a mentalidade da Época Moderna e o papel da Igreja na sociedade! Na altura, pensava-se convictamente que estavam a "salvar almas" dos perigos do inferno! Era preferível a essas almas serem escravos e viverem no paraíso do que ser selvagem, como então se entendia e entendeu-se até muito tarde, e vir a cair no fogo do inferno! Estes conceitos, parecem-nos estranhos mas eram muito sérios na época e na Europa, noutros lugares do mundo continua a ser. Carlos Coutinho os egípcios não construíram as pirâmides com escravos! Mas com homens livres! O Faraó era um deus vivo, era uma honra trabalhar no seu sepulcro, aliás os egípcios, fora prisioneiros e guerra não tinham mutos escravos, essa é una ideia absurda de Holywood, baseada nos historiadores do século XIX! O Horário foi quem fez no meu ver a avaliação mais próximo da verdade, nota-se que leu mais do o habitual sobre o assunto! Estou de acordo com Arlindo Caldeira, quanto à questão de indeminização não fazer sentido. Não faz mesmo nenhum, afinal quanto pagariam os africanos que beneficiaram con o negócio? Nem se compensaria,alguém vitima desse, visto hoje, flagelo! Pior estaria-se novamente a pagar por vidas humanas, fazendo delas, mesmo mortos novamente escravos! Ora o que nasce livre não tem preço. Houve erros na História, e este, foi um deles, contudo ainda hoje há quem não tenha aprendido a lição.
  • João
    29 mar, 2017 Lisboa 11:59
    Arlindo Caldeira, é daqueles historiadores cheios de vaidade que vê a história sob o prisma que mais lhe convém! Não relata o facto que até aos descobrimentos, os portugueses eram atacados nas suas costas para serem feitos escravos por norte-africanos, que chegaram inclusive a atacar a Ericeira com 15 ou 17 navios, apenas com o intuito de fazer escravos. Não, não fala disso, como também não fala que de facto, houve acções de castigo com o mesmo intuito, era normal na época. Como não refere ser a escravatura algo de normal até ao século XIX, quando os ingleses e holandeses deixaram de ver neste negócio, com negros, grande proveito e entenderem que esta deveria acabar. Quando os portugueses começaram a exploração de África, deparam-se com um negócio florescente há milénios detido pelos chefes africanos e árabes que terão per si realizado na costa oriental de África um número de escravos muito superior ao dos europeus juntos! Não fala das revoltas escravas nas Arábia, ninguém fala delas, como deveria competir a um Historiador, como as dos Zanj! Nem fala que Portugal foi também o primeiro país do mundo, que a par da escravatura, enobrecer negros e houve muitos, vejam no quadro o cavaleiro NEGRO em baixo! Nem refere a dor que os brancos portugueses sentiram ao ver famílias separadas em Lagos! Muitos tinham ido para ver gente preta e saíram com um nó na garganta, Zurara explica isso ao retratar o espectáculo "pungente" e triste a que tinham assistido. Temos dois lados na questão,
  • Samuel
    29 mar, 2017 Loures 01:24
    Mentira!!!! Actualmente somos 10 milhões de escravos ao serviço da dívida
  • Luisa Handem Piette
    28 mar, 2017 Estados Unidos 14:19
    Obrigada, Dina Soares, por este artigo sobre a obra elucidativa de Arlindo Manuel Caldeira "Escravos de Portugal"... as revelações nela contida ajudam-nos a dar mais contexto, ou seja por a situação da escravatura em Portugal numa perspectiva mais realista.

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