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Quatro faces de Marvila

Das barracas de Marvila ao bairro social sem sair da pobreza

Quatro faces de Marvila

Das barracas de Marvila ao bairro social sem sair da pobreza

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01 mar, 2016 - 11:09 • João Carlos Malta , Joana Bourgard

Vieram para Lisboa à procura de uma vida melhor. A indústria precisava de braços para dar músculo ao crescimento. Mas os salários, superiores aos da província, não chegavam para pagar a renda da casa. Nasceram gigantes bairros de lata e, passadas décadas, bairros sociais. Uma viagem ao passado e ao presente, desde o Bairro Chinês até ao Bairro do PRODAC.

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Durante esta semana, a Renascença olha para Marvila, na zona oriental de Lisboa. Veja também:


Chamavam “chinês” ao bairro. Os casebres de madeira e as chapas de zinco que se encavalitavam uns nos outros lembravam as imagens de outro Oriente que os filmes começavam a trazer a Portugal. Para Maria e Jorge aquilo não era ficção, mas a sua realidade. Na memória ficou-lhes gravado o dia em que o choro do filho mais novo os acordou de madrugada. Não era um choro normal. À volta do colchão, ali aos pés da cama em que dormiam, o menino estava rodeado de todo o tipo de bichos, entre eles um rato enorme que morrera no telhado e tinha entrado em decomposição.

Naquele dia, Maria Rosa tomou uma decisão. Sair dali, custasse o que custasse, o mais rápido possível. Não foi a primeira vez que sentiu isso, nem seria a última. Tinha 21 anos na altura. Tal como a maioria dos que chegaram aos seis hectares da Quinta do Marquês de Abrantes (o nome oficial do Bairro Chinês), na década de 1960, vinha de Cinfães, distrito de Viseu. O marido veio para Lisboa primeiro.

A história é igual a tantas outras: promessa de emprego, mais dinheiro (prometiam-se salários até quatro vezes mais do que os da província), uma vida melhor.

A realidade foi bem diferente. Todos estes anos depois, as palavras tremem e os olhos ficam aquosos quando recorda os primeiros tempos na capital.

“Até me custa dizer, quando aqui cheguei, saí em Braço de Prata [estação ferroviária]. Ao ver a barraquita que ele tinha, encostei-me às tábuas e pensei: ‘Para onde eu vim. Deixei uma casa tão boa, em pedra, para vir para aqui.’ Então, chorei, chorei, chorei...”, relembra.

A meio da década de 1960, na Grande Lisboa, chegaram a ser 115 mil famílias e meio milhão de pessoas a estarem alojadas em barracas, sendo que sete em cada dez não tinham completado sequer os quatro anos de escolaridade obrigatória. No Bairro Chinês, os números variam, porém, calcula-se que fossem cerca de duas mil barracas para dez mil pessoas.

A mesa eram os joelhos

Dentro de cada uma, tudo era em pequena escala, excepto o engenho para ultrapassar as dificuldades. Os casebres tinham no máximo 30 metros quadrados, em muitos residiam cinco pessoas, ou mais, e não dispunham de casa de banho, nem de luz. Como era, então, viver num espaço assim? “A nossa cama estava encostada à parede, a nossa mesa era os joelhos, os bancos eram a cama e para fazer a comida usávamos uma máquina de petróleo”, explica Maria Rosa, agora com 71 anos.

A casa de banho era um foco de problemas. Sessenta pessoas para o mesmo espaço, sendo que, como é frequente em locais comunitários, “uns lavavam e outros não”. Porém, este não foi o maior problema de Maria e Jorge. “Aquilo era só ratas. Só ratas”, enfatizam, com nojo.

Das barracas de Marvila ao bairro social sem sair da pobreza
O Bairro Chinês tornou-se a morada de Maria e Jorge, que procuravam uma vida melhor em Lisboa

Até que chega a notícia há tanto tempo esperada: a promessa de uma casa feita em tijolo, com cimentos, telhas e todas essas coisas que antes eram só uma miragem. Contudo, o sonho veio só pela metade. A mesma metade que a Associação de Produtividade na Auto Construção (PRODAC) deixou de pé. A cooperativa construiu o esqueleto, todavia, o resto não foi concluído devido à falência da mesma.

“Fizemos isto tudo. Só havia as paredes e o telhado. Nós até fomos dos primeiros que para aqui viemos. Tínhamos os filhos pequeninos”, recorda Maria. Jorge seguia do trabalho nas obras para outra obra. A da sua casa. “De noite, vínhamos trabalhar as coisitas para vir para cá mais depressa. Lá adiante [no Bairro Chinês] não se podia estar naquelas barracas”, repete como quem fala do inferno na terra.

A vida não volta para trás

Quando a casa estava finalmente pronta, os braços ergueram-se em direcção ao céu. “Pensei: ‘Graças a Deus estou numa casinha’”. Ali nasceu, primeiramente, o quarto em que todos dormiam. Finalmente a casa de banho, a tão esperada sanita própria e um sítio para tomar banho. Mais tarde, um segundo quarto para os filhos. Já havia um fogão e até a sala foi crescendo. Tudo perfeito, então?

Nada disso. O ditado diz que o que nasce torto tarde ou nunca se endireita, e ali assim foi. A tacanhez e a falta de qualidade dos materiais (o tijolo não chegou a vir) não ajudaram ao final feliz. “Estas casas, comparando com o que há agora, são barracas. Faz muito frio no Inverno e de Verão não se consegue aqui estar com o calor”, pormenoriza Jorge, de 73 anos, que procura nas recordações uma justificação para tantas dificuldades. “Viemos à procura de dinheiro e de trabalho. Estou aqui há 50 anos”.

Maria atropela-o. É ela que lidera sempre a conversa. “Se soubesse... se soubesse... se fosse como agora, nunca aqui tinha posto os pés. Vive-se melhor na nossa terra do que cá. O Governo dá-lhes o dinheirinho para eles lá estarem na boa vida. Se formos daqui para lá e fizermos uma hortinha, sabe o que é que eles diziam? Vêm estes esfomeados de Lisboa para aqui. Vêm cheios de fome, vêm cavar. Ainda gozam”, comenta enfurecida.

E a revolta segue com mais uma olhadela para “os que estão bem”. “Lá em Cinfães vivem da Segurança Social e têm uma reforma boa. Nós estamos com a mínima. Descontei pouco, uns dez anos, mas já estou há muito tempo reformada. Ele [aponta para o marido] descontou 25 anos e está praticamente com a minha reforma”.

Juntos têm pouco mais de 500 euros. Passados 40 anos ainda andam às voltas com a burocracia para legalizar a casa onde que vivem.

“Eu não tenho vergonha… até tenho saudades”

Na outra ponta do bairro, Lurdes está no caminho para casa. É hora de ir fazer o almoço. Quase com 80 anos, percebe-se-lhe uma vida que sai de cada poro. Senta-se num dos bancos colados a uma das mercearias ali existentes. É um dos sítios mais surpreendentes de todo aquele aglomerado. Uma porta onde não cabem duas pessoas abre-se para um espaço que não é mais do que corredor.

Mais de perto, percebe-se que a área não terá mais de 1,5 metros de largura por sete de comprimento. Ali vende-se de tudo, desde umas calças “tigresse” até um pacote de gomas. Não tem nome. Respeitemos o segredo.

Lurdes não quer ocultar que viveu naquelas condições, num sítio em que só as cortinas separavam o que não se conseguia esconder. “Há pessoas que têm vergonha, eu não. Os meus filhos nasceram lá”, relembra. “Houve muita gente a sair de lá e a armar-se em importante”.

Não vê o passado a preto e branco. Encontra-lhe nuances. “Nas barracas a vida era mais familiar, era melhor”, refere, para logo a seguir emendar: “Melhor num sentido, ali havia um ambiente mais familiar.”

O que mudou? “Ao princípio gostei porque a limpeza era outra coisa, era outro asseio. Dantes tínhamos de ir a outra barraca fazer as necessidades, o que é muito diferente”, concretiza. Depois, resume: “Mudou tudo para melhor, menos a convivência”.

Muitos vieram de Viseu, contudo, nem todos ficaram nas barracas

Tal como Jorge e Maria, Esperança veio de Cinfães. Também ela chegou depois do marido. Não gostava do trabalho do campo, a cidade abriu-lhe as portas. Tinha já familiares em Lisboa e conseguiu arranjar um primeiro andar pequenino.

É faladora. Gosta de recuperar memórias e de contar histórias. Lembra-se de nos inícios ter sentido dificuldade em se adaptar à troca da aldeia pela grande cidade; todavia, depressa gostou da agitação. Actualmente, que está tudo mais parado em Marvila, sente falta desses tempos.

Começou a trabalhar numa fábrica têxtil, ali mesmo ao pé de casa. Naquela altura, a saída dos turnos era uma imensidão de cabeças na rua. Uma imensidão de perder de vista. Conhecia imensas pessoas, muitas das quais já se foram embora. Hoje, sente falta de não ter “uma lista de contactos” como outrora.

Como tal, não consegue olhar para trás sem que lhe venha um lamento, não é de tristeza, é de nostalgia: “Tenho muitas, muitas saudades. Tenho saudades desta rua cheia de gente.”

Corrige-se de pronto. “Bom, agora vê-se muita gente, eu é que não conheço as pessoas”. Sai-lhe um longo suspiro, até que chega a resignação: “É tudo diferente, mas é a vida.”

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  • filipa
    15 mar, 2017 santos 21:36
    Boa tarde! "Marvila: O Bairro Misterioso de Lisboa" é um projecto desenvolvido no âmbito da Pós-Graduação da Comunicação e Tendencias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Gostávamos muito que visitassem a pagina! Obrigada
  • mario ferreira
    13 set, 2016 vale fundao 23:33
    vim com treze anos para o bairro chines trabalhar no talho do Abel era como um escravo pois ganhava trezentos escudos por mês e o patrão batia-me o único consolo que tinha era a dona celeste patroa que também sofria as mãos do marido que era muito mau para ela eu era obrigado a roubar aus clientes e os primeiros anos de trabalho nem ferias tinha tantos anos a roubar para ele que quando me fui embora para outro talho esse sacana ainda me roubou vinte e dois contos que tanta falta me fez hoje seriam duzentos e dez euros hoje vivo no vale fundão feliz com a minha família o melhor que tive do bairro chines foi conhecer a minha mulher que me deu duas filhas lindas amo muito a minha família
  • Teresa Miguel
    13 set, 2016 Cheltenham, U.K. 08:55
    Eu nasci no bairro chines, vivi la is primeiros 10 anos da minha Vida, nao recordo com saudade as condicoes de Vida mas o semi o quanto me influenciou a deixar Portugal a 5 anos areas!
  • leonor
    24 mai, 2016 monte muro 18:54
    Eu também vivi neste bairro.Quando eu fui para lá morar já muitas pessoas tinham saído para o Vale Fundão e outros bairros.Murei lá quatro anos ,tinha como vizinha uma sra muito conhecida A Tia Maria da lexivia e um casal muito carismático a Sra Deolinda e o Sr Rafael.Eu vivia num Chalé Rchão e primeiro andar com escadas de madeira por dentro.Tinha Elétrecidade mas não tinha televisão eu ía ver a telenovela a casa da minha vizinha a sra Florinda beijos para ela.Vivia num bairro sim mas sem medo,a minha casa tinha um postigo a moda antiga a porta estava todo o dia aberta, dá para ver como se vivia no bairro.Estava sempre gente a passar ,porque tinhamos que ir ao chafariz .Termino com beijos para a Sra Maria que foi ama da minha filha a quem ela chamava de Carlita
  • Anabela Fernandes
    04 mar, 2016 Póvoa Santa Iria 16:14
    Marvila foi em tempos um bom lugar para viver. Tinha o autocarro 39 que tinha horário certinho que ligava Marvila a Santa Apolónia, Rossio, Rato, São Bento.....tinha comboio com duas direções ( uma para areeiro, Campolide e outra para toda a linha do norte), Eu vivia ai e ia a pé para as três opções (autocarro e comboio), Em termos de trabalho havia muito trabalho, eu nunca tinha estado desempregada senão agora com tanta mudança de politicas. Havia estabilidade coisa que não acontece hoje.....Tiravas um curso superior e sabias onde podias trabalhar e, hoje o teu curso é valido para determinada área e amanhã ja não serve tens de tirar mais uma qualificação ou ficas a trabalhar naquilo que fazias quando chegas-te ao bairro chinês, com a agravante de que quase tens de pagar para poder trabalhar. Quanto a morar na província (Cinfães) só quem nunca lá viveu é que diz ser bom:: Cai neve não circulas, professor e outros que trabalham fora tem de faltar aos seus emprego. Queres ir ou levar os filhos ao ginásio tens de de percorrer cerca de 20km por estradas sinuosas ( vivo na Póvoa de santa Iria neste momento onde comprei casa a já 20 anos e tenho todos os serviços próximos), Isto sem falar das telecomunicações móveis que lá na serra de Montemuro de onde sou natural quase não tem....) , E por Ultimo falar das barracas de madeira onde não se pagava renda nem água, nem luz (tudo a conta da câmara (clandestinos estes serviços),havia a casas para arrendar em lisboa mas, optavam ....
  • Pedro Machado
    02 mar, 2016 Lisboa 15:17
    Tudo o que está escrito na reportagem é verdade, excepto a ultima foto da produção, pois pertence ao Vale Fundão e não ao Bairro Chinês! Tenho saudades desse tempo, onde se sentia o verdadeiro espírito de bairro e de porta aberta. Eu posso adiantar também, que nunca tive problemas com ratos ou ratazanas (embora houvessem na mesma), as condições das "Barracas/Chalés de Madeira" eram um pouco diferentes de bairro para bairro, pessoa para pessoa. Bela reportagem.
  • rosinda
    02 mar, 2016 palmela 00:45
    eu nao sei onde fica o bairro chines !Antonio costa e fernando medina tambem nao devem conhecer.
  • José Moreira
    01 mar, 2016 Lisboa 22:56
    Boa noite, pelo que vejo, a Radio Renascença, veio Freguesia de Marvila-lisboa, desde já o nosso obrigado. O titulo, pode até adequares, mas pobreza ela existe em todo o lado. Eu vivi aqui e aqui nasceu uma filha, a mais de trinta 36 anos. O nome Bairro Chinês vêm de uma família ali residente. Os terrenos uns eram particulares, outros camarários; o terrenos eram pertencia Palácio Marques de Abrantes. Outros Palácio dos Alfinetes. Era bom que fosse feito um Historial a esse, respeito. Para no futuro Marvila não fosse interpretada como Chelas, como tem vindo a acontecer com alguns Orgãos, da comunicação Social. Um abraço JM Ao vosso dispor, Marvila merece respeito. A políticos e politicas não insistem em Marvila.
  • José Moreira
    01 mar, 2016 Lisboa 22:55
    Boa noite, pelo que vejo, a Radio Renascença, veio Freguesia de Marvila-lisboa, desde já o nosso obrigado. O titulo, pode até adequares, mas pobreza ela existe em todo o lado. Eu vivi aqui e aqui nasceu uma filha, a mais de trinta 36 anos. O nome Bairro Chinês vêm de uma família ali residente. Os terrenos uns eram particulares, outros camarários; o terrenos eram pertencia Palácio Marques de Abrantes. Outros Palácio dos Alfinetes. Era bom que fosse feito um Historial a esse, respeito. Para no futuro Marvila não fosse interpretada como Chelas, como tem vindo a acontecer com alguns Orgãos, da comunicação Social. Um abraço JM Ao vosso dispor, Marvila merece respeito. A políticos e politicas não insistem em Marvila.
  • paula silva
    01 mar, 2016 marvila-lisboa 19:27
    Pior ainda.pois nas barracas as rendas não eram altas e o custo de vida estava mais baixo. Mas agora estamos piores porke as rendas a água a luz.tudo isso se encontra muito mais caro e os ordenados dos pobres uma miséria. Sim porke nós pobres não somos politicos nem donos de grandes empresas nem diretores de bancos nem reformados com kuantias exorbitantes. Bairros sociais?mais miséria isso sim.

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