19 nov, 2024 - 06:00 • Miguel Marques Ribeiro
"Eu não quero voltar para um espaço onde existe guerra”, afirma, sem hesitação, Oleksandra. Esta ucraniana, de 19 anos, fugiu para Portugal logo nas primeiras semanas da invasão russa em larga escala. Esta terça-feira passam mil dias exatos desde que a guerra na Ucrânia começou, a 24 de fevereiro de 2022.
A “vida normal, feliz e com futuro”, que no seu país se tornou impossível, encontrou-a em Portugal, no centro de acolhimento para refugiados instalado no Seminário do Bom Pastor, em Ermesinde. Dois anos e meio depois, contribuir de forma direta para o esforço de guerra não está nos planos de Oleksandra.
“Há muitas pessoas que querem voltar e ajudar. Mas eu não”, clarifica a estudante de escultura na Faculdade de Belas da Universidade do Porto, que já se exprime fluentemente em português.
Mil dias de guerra na Ucrania
Pintada de amarelo e azul, na tarde deste domingo,(...)
Quando muito, Oleksandra admite aproveitar a sua presença nas redes sociais para fazer algum trabalho de influencer.
“Na Ucrânia, muitos bloggers, muitas pessoas dos media, conseguem ajudar porque têm muitos seguidores. Conseguem angariar dinheiro, conseguem produzir algum produto ucraniano, algum objeto de arte, e vendê-lo na Europa como forma de ajudar o exército. Esta é a única ação que me vejo a fazer, tendo em conta a minha profissão e a minha idade”, explica.
Danil, também com 19 anos e também a residir no seminário do Bom Pastor, também não vê o seu futuro a passar pela Ucrânia num horizonte próximo. “Eu sei o que me pode acontecer se vier a ser mobilizado. Posso morrer. Não quero fazer parte disso”, afirma.
"Há muitas pessoas que querem voltar e ajudar, mas eu não", afirma Oleksandra
Para já, o seu foco está em continuar os estudos de Engenharia Informática e Computação, que está a fazer na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Está focado, portanto, em levar a sua vida para a frente: em Portugal, “ganhei muita coisa nova e perdi muita coisa velha. Os tempos mudam”.
Se mesmo assim, contra as suas expectativas, vier a fazer parte das Forças Armadas da Ucrânia, Danil acha que seria possível “fazer algo que não seja perigoso, não relacionado com disparar uma arma para matar outras pessoas”.
“A guerra hoje é sobre ‘intel’, é sobre dados, é sobre conhecer o inimigo”, explica. “Como percebo de código, talvez possa ser uma espécie de ‘intel-guy’”.
Apesar de semelhantes, as posições destes dois ucranianos, a viver em Portugal ao abrigo do regime de proteção temporária, podem ter impactos assimétricos nas suas vidas.
Sendo mulher, Oleksandra pode viajar para a Ucrânia e voltar a Portugal sempre que quiser. Já para Danil, o regresso ao seu país de origem, agora que é maior de idade, é uma obrigação legal sem direito a retorno, sob pena de vir a ser considerado refratário.
Mil dias de guerra na Ucrania
Yevhen Stepanenko tem dois anos de idade, nasceu u(...)
Em maio, foi aprovada na Ucrânia uma nova lei da mobilização que determina que os homens com idade compreendida entre os 18 e os 60 anos a residir fora do país deixaram de ter acesso a serviços consulares.
Deste modo, Danil, que ficou sozinho em Portugal depois de a mãe e o irmão mais novo terem regressado à Ucrânia, arrisca-se a ficar sem passaporte. Uma forma de pressionar a diáspora masculina a regressar ao país, para depois poder ser mobilizada para a guerra —, o que, desde que a nova legislação foi aprovada, passou a ser possível a partir dos 25 anos, em vez dos anteriores 27.
O pacote legislativo, refere a Euronews , prevê ainda um recrutamento obrigatório básico para homens entre os 18 e os 25 anos e elimina a categoria de “apto com limitações para o serviço militar”, o que permitia a muitos soldados escaparem à linha da frente.
"A guerra é algo que nunca deveria acontecer e de que não tenho de fazer parte", justifica Danil
A estratégia defendida pelo presidente Volodymyr Zelenski, é considerada vital para aumentar o número de homens nas fileiras das forças armadas e fazer frente aos avanços russos dos últimos meses. A captação de novos recrutas tem ficado abaixo do esperado e uma nova meta de 160 mil foi definida recentemente.
“Eu não me preocupo com a mobilização”, contrapõe Danil. “Sofro de trombocitemia”, uma doença que altera a coagulação do sangue e que, no seu entender, pode ser razão suficiente para o afastar das trincheiras.
Ainda assim, admite: “Uma parte de mim ficaria contente com a mobilização. Gosto muito de armas, fui o primeiro da minha turma a montar uma AK-47. Mas a outra metade diz ‘De forma nenhuma’. É algo que nunca deveria acontecer e de que não tenho de fazer parte”. Este segundo argumento, conclui, acabará por prevalecer sobre o primeiro.
Milhões de ucranianos fugiram do seu país desde que as tropas de Vladimir Putin iniciaram a incursão, que causou uma das piores crises políticas e humanitárias deste século na Europa.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 6,7 milhões vivem neste momento fora da Ucrânia, em diversos países, com o estatuto de migrantes humanitários.
No caso de Portugal, eram cerca de 55 mil, a residir no país, no final de 2023, sob o regime de proteção temporária.
Entrevista a Ana Santos Pinto
A antiga secretária de Estado da Defesa Ana Santos(...)
Entre eles, há homens em idade de combate que deram o “salto” de forma ilegal para escapar à guerra e à crise social que se instalou no país.
É o caso de Konstantin, um dos 25 utentes de nacionalidade ucraniana a residir nas instalações do seminário do Bom Pastor. Falante de russo, nascido na Crimeia há 33 anos, exprime-se com dificuldade em inglês, recorrendo muitas vezes ao telemóvel para traduzir aquilo que quer dizer.
Konstantin conta que em maio percorreu 250 kms a pé durante três dias para atravessar a fronteira para a Moldova. “Desenhei uma rota e sabia onde havia uma falha para poder escapar.”
Depois de alcançar a capital, Chișinău, viajou de cidade em cidade pela Europa, cada vez mais para Ocidente, até chegar ao Porto. Viveu na rua até conseguir lugar num abrigo, em Vila do Conde.
A dois meses de abandonar a Casa Branca, Joe Biden(...)
À Renascença, assume que pagou para não ser integrado no exército. “Sim. Se tens dinheiro não tens problemas com o recrutamento. O exército ucraniano garante a segurança do país, mas agora também é um negócio”, critica.
"Desenhei uma rota e sabia onde havia uma falha para poder escapar", conta Konstantin
A Renascença não conseguiu verificar se Konstantin pagou ou não para escapar à mobilização, mas a existência de corrupção no exército ucraniano tem sido reportada por diversos orgãos de comunicação social internacionais.
A cidade onde residia, Dnipro, tem estado sob constantes ataques russos, mas para Konstantin o problema vai muito além da guerra. “Há pessoas que não têm trabalho, que não têm dinheiro ou produtos. Isso é um problema. É muito difícil, neste momento, viver na Ucrânia. Os preços sobem e não há dinheiro.”Este refugiado afirma ainda que “não há segurança, nem polícia”. “As leis e a constituição não existem”, sustenta, acrescentando que o recrutamento é outro problema. “Muitas pessoas estão revoltadas”, garante.
Konstantin não se arrepende de ter virado as costas ao apelo das autoridades do seu país para combater. “Não, não gosto e não percebo o ‘porquê’, não tenho ideia do ‘porquê’”, justifica.
A residir no Seminário do Bom Pastor há praticamente dois anos, Ludmila, de 36 anos, também descarta a hipótese de se envolver militarmente na defesa do seu país.
“Claro que gostaria de ajudar o povo ucraniano, mas preciso primeiro de me ajudar a mim própria, aos meus pais e à minha família. Se não for capaz de me ajudar a mim e aos meus pais, como poderei ser capaz de ajudar todas as outras pessoas?”, questiona.
A Diretiva Proteção Temporária foi ativada pela pr(...)
Apesar de ter nascido em Kharkiv, cidade do leste da Ucrânia, e ali ter residido até 2022, o início das hostilidades apanhou Ludmila desprevenida, em Kiev, na casa do namorado.
"Eu sei que tenho uma vida antes e outra depois [da invasão]. Tenho duas vidas", afirma Mila
Na manhã do dia 24 de fevereiro, leu, incrédula, as mensagens no telemóvel. “‘Guerra? Não, não acredito. Liguei à minha mãe e ela confirmou: ‘Sim, a guerra começou’”, recorda, ainda transtornada. “Não sei quanto tempo passou sem que eu conseguisse acreditar.”
A fuga que iniciou nesse dia só terminou a 31 de maio, quando chegou à Guarda numa carrinha de voluntários portugueses que a trouxeram desde o outro lado da Europa.
De Portugal, nada sabia, mas deixou-se convencer pelas palavras de um voluntário e pela vontade de escapar de um país onde o avanço das tropas de Putin parecia, então, imparável.
O silêncio e a calmaria raiana é que não a convenceram e três meses depois mudou-se para o Porto, onde encontrou guarida no Seminário do Bom Pastor.
Agora explica como é ter uma existência bipartida. “Eu sei que tenho uma vida antes e outra depois [da invasão]. Tenho duas vidas. Já não tenho vida na Ucrânia. Na Ucrânia, só existe guerra.”
No entanto, admite, a ruptura não é definitiva. “Não há um corte, porque tenho memórias, tenho os meus pais, tenho lá uma vida. Há uma interrupção. No dia 24 de fevereiro a minha vida foi interrompida e depois comecei uma nova vida.”
Um dos grandes objetivos de Ludmila é trazer os pais, que continuam em Kharkiv, para junto dela. “Quero tanto fazê-lo. É o meu sonho”, declara, entre lágrimas. “Eles não querem vir, não conseguem mudar a sua vida como eu mudei a minha”.
Guerra na Ucrânia
No Seminário do Bom Pastor, em Ermesinde, encontra(...)
Este objectivo continua, para já, adiado, mas outro passo importante está a poucos dias de ser concretizado. Na altura em que falou com a Renascença, Ludmila preparava-se para sair do Seminário do Bom Pastor e alugar um quarto, no Porto, num apartamento ocupado por ucranianos. Ao mesmo tempo, tenta transformar o hobby da fotografia num negócio por conta própria.
Apesar disso, sente-se “como um balão”, declara entre gargalhadas. “Eu não tenho nada. Tu tens um trabalho, uma casa, tu tens tudo. E sabes o que vais fazer agora, amanhã, daqui a um mês, um ano. Eu não sei o que vou fazer amanhã, daqui a um mês. Como a minha vida vai mudar. Eu vivo um dia de cada vez”, sublinha.
As dificuldades para conseguir habitação própria, no entanto, foram muitas. “Não é um problema meu. É um problema de muitos ucranianos.” E não só em Portugal. “Os meus amigos que vivem na Alemanha, na Áustria, em França, em diversos países, estão sempre a mudar de trabalho, de país, de emprego, de situação”, relata. “É difícil.”
Um relato confirmado pela diretora técnica do centro de acolhimento de refugiados do Seminário do Bom Pastor, Cristina Figueiredo. O “elevado custo das rendas” é um dos principais obstáculos à plena autonomização dos utentes, garante.
"Portugal tem uma longa tradição nesta área", lembra Cristina Figueiredo
Além disso, muitas vezes são exigidas outras condições, que cidadãos sob proteção temporária muito dificilmente conseguem cumprir, como rendas adiantadas, a indicação de um fiador ou um contrato de trabalho assinado.
Mesmo assim, Cristina Figueiredo considera que o trabalho de integração dos refugiados está a ser um “sucesso”. “Portugal tem uma longa tradição nesta área”, sublinha.
Seis meses de guerra na Ucrânia
Yulia está em Portugal há mais de seis meses, mas (...)
A estrutura situada em Ermesinde, que é dirigida pela Obra Diocesana de Promoção Social, uma IPSS da Diocese do Porto, já acolheu 188 deslocados desde março de 2022. Atualmente, tem a seu cargo 42 refugiados, dos quais sete são crianças. A maioria são ucranianos, mas muitos são originários de outros países e estavam a viver na Ucrânia quando o conflito estalou.
Apesar do esforço feito para começar uma nova vida, "os sentimentos da guerra estão sempre contigo”, garante Oleksandra.
“Nunca tens uma distância. Mesmo aqui, em que tens toda a Europa a separar-te da guerra, mesmo vivendo num país tão pacífico, com toda esta atmosfera de felicidade, de tranquilidade. Sabes sempre o que tiveste, fazes sempre uma comparação”, explica.
A estudante de Belas-Artes assegura que já não acompanha a par e passo a informação sobre o conflito. “No primeiro ano lia tudo o que era possível, mas agora já não tenho força para isso.”
"Os sentimentos da guerra estão sempre contigo", afirma Oleksandra
Os vídeos de Bucha que surgiram nas redes sociais foram particularmente marcantes para Oleksandra. “Foi tão estranho. As formas de matarem aquelas pessoas. Foi insano. Não foi apenas assustador. Depois de ver aqueles vídeos não consegui ficar calma durante uma semana. Chorei todos os dias. Não consegues sentir nada. Vais como um fantasma para todo o lado, só porque viste aquilo. É um sentimento que nunca tinha vivido”, relata.
O absurdo da guerra manifesta-se de várias formas. À conversa com amigos que ficaram na Ucrânia, através de um chat, Danil ouve,por vezes, o som dos projéteis a passar. “Um dia estava com estes dois amigos, separados por um quilómetro e ouvi metade do assobio do míssil no microfone de um e a outra metade através do microfone do outro. É uma história curiosa”
Explicador Renascença
Depois da Noruega e da Finlândia, milhões de sueco(...)
O futuro programador descreve uma sensação de adormecimento emocional que lhe aconteceu quando ainda estava na Ucrânia, em pleno conflito. “Não senti medo, mas uma espécie de vazio. Nem sei como descrever este sentimento. Acho que está próximo do esvaziamento. Não sentia nada.”
Face a tudo isto, como perspetivam um fim para o conflito? A experiência de Oleksandra diz-lhe que será difícil a iniciativa partir do lado ucraniano. “É o nosso país e a nossa terra e as pessoas morrem de formas tão estranhas, tão cruéis. Não tens quaisquer emoções. Só queres ter energia, poder para retribuir. Infelizmente não os podes perdoar. Só os queres matar, fazer-lhes o mesmo. É tão cruel, mas porque podem eles matar-nos e nós não podemos fazer-lhes o mesmo?”, observa.
"Ouvi metade do assobio do míssil no microfone de um e a outra metade através do microfone do outro", conta Danil
Danil tenta conferir algum pragmatismo ao cenário atual: “Temos de acabar com a guerra tão rapidamente quanto possível. Neste preciso momento, alguém pode estar prestes a morrer e, infelizmente, a responsabilidade vai cair sobre os ombros de todos nós. É assustador e temos de pôr um fim a isto”, remata.