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Reportagem na América

EUA. “A imigração clássica, hispânica e portuguesa, está cada vez mais a tornar-se republicana”

07 nov, 2024 - 08:49 • José Pedro Frazão

Luis Nunes Vicente lidera um departamento numa universidade da Pensilvânia e vive num dos condados politicamente mais oscilantes do Estado que geralmente decide as presidenciais. Em entrevista à Renascença, descarta grandes rupturas sociais na América, explica como a inflação elegeu Trump e como latinos e portugueses viraram-se para os republicanos.

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Entrevista a Luis Nunes Vicente, diretor do Departamento de Engenharia da Universidade de Lehigh

Que razões estiveram na origem da vitória de Donald Trump?

Conjugaram-se duas forças contraditórias, paradoxais, no sentido de causar o efeito e o seu contrário. A primeira foi a pandemia, que derrotou Trump há quatro anos e, na minha opinião, também o reelegeu. O efeito duradouro da inflação nota-se muito mais nos Estados Unidos do que em Portugal.

Vivo apenas quatro meses em Portugal e passo o Natal e o Verão a trabalhar remotamente para a Universidade de Lehigh. A subida dos preços no supermercado é menor do que nos Estados Unidos. Nos serviços e restauração, os preços subiram muito mais aqui do que na Europa. Como diretor do Departamento de Engenharia Industrial em Lehigh, contrato diversos serviços e noto também uma escalada de preços enorme nos serviços.

Apesar dos indicadores globais da economia estarem melhores, como o desemprego e o crescimento económico, há muito menos dinheiro no bolso dos norte-americanos.

O segundo fator que criou um efeito e o seu contrário foi a imigração. A política anti-imigração de Trump não teve eco na população latina e hispânica. Uma boa parte da vitória de Trump esteve no voto latino.

Nova Iorque é um bom exemplo. Tem cinco bairros administrativos - Bronx, Brooklyn, Manhattan, Queens e Staten Island – onde apenas este último é tipicamente republicano. Nos outros, condado a condado, é impressionante a quantidade de votos que Kamala Harris perdeu em relação a Joe Biden no voto latino. Isto tem também a ver com a comunidade portuguesa, que, como a latina e hispânica, talvez ao princípio fosse mais democrata e é agora essencialmente republicana.

Os portugueses que conheço aqui na Pensilvânia e em Nova Jérsia, de forma geral, são republicanos. São populações que olham para as novas vagas de imigração com desconfiança. Pensam que estes vêm retirar o ‘status quo’ e a riqueza adquirida.

O voto hispânico não tem grande qualificação académica. Os hispânicos e os latinos são considerados uma minoria sub-representada para efeitos de apoio nas universidades. São quase 20% da população americana, mas apenas representam 6% na comunidade académica. E se formos para as áreas STEM - para Ciências, Tecnologia e Engenharia - então ainda é muito menos. É um voto muito pouco qualificado, que votou essencialmente Trump.

Depois, talvez num efeito menor, houve mais uma vez um efeito em relação ao voto negro. Kamala Harris não conseguiu captar os votos negros das ‘cinturas’ americanas.

Donald Trump venceu por mais de 130 mil votos na Pensilvânia, onde se esperava uma corrida muito apertada. O que é que esta a acontecer, afinal, com o eleitorado deste estado?

Houve um efeito global, porque os 7 estados indefinidos – “swing” – tornaram-se todos republicanos e o voto popular tem uma diferença que se aproxima dos 5 milhões.

A Pensilvânia é um estado ‘swing’ e, curiosamente, o condado de Northampton, onde está a Universidade de Lehigh, foi novamente para o lado republicano. O outro grande condado desta região, o condado de Lehigh, em princípio pode ainda permanecer democrata. O Vale do Lehigh é, como todo o próprio estado da Pensilvânia, um vale ‘swing’, porque há uma grande concentração das pessoas nas cidades e outra grande percentagem no campo.

O estereótipo do campo americano não é o estereótipo do campo português. O campo em Portugal desapareceu nos últimos 20 a 30 anos. As pessoas foram todas para a região de Lisboa e para o Grande Porto. A vida no campo, que era muito difícil, desapareceu.

Aqui a vida no campo, ou seja, fora das cidades, é uma vida que tem riqueza, que tem cultura, que tem dinheiro. Associar aqui estas pessoas à agricultura e ao campo com o voto republicano e os cosmopolitas da cidade a votarem nos democratas é um estereotipo completamente errado.

Quer na cidade, quer no campo, nos Estados Unidos e na Pensilvânia, os americanos associam os democratas aos fazedores da economia. Se olharmos para todos os ciclos económicos dos Estados Unidos e dos Presidentes e fizermos uma análise rigorosa, isso não é bem assim. Sabe-se que as medidas económicas geralmente só têm impacto passados dez a vinte anos e que muitas vezes os ciclos económicos coincidem com os ciclos políticos por meras coincidências.

Mas esta associação existe e vemos como as bolsas das criptomoedas e todos os principais índices de Wall Street estão a reagir. Não vejo que haja um efeito particular na Pensilvânia. Os preços subiram imenso o que tornou os bolsos mais vazios e, portanto, as pessoas associam a isso à administração Biden.

A Pensilvânia tem ainda uma enorme concentração de 500 mil porto-riquenhos e pensava-se que isso poderia, talvez, ancorar a Pensilvânia do lado democrata. Não aconteceu. Acho que também aí havia uma certa ingenuidade. Esse voto porto-riquenho - como o voto hispânico que começou na Flórida e agora está em todo o país - cada vez mais está a migrar dos democratas para os republicanos.

A imigração clássica e estabelecida está cada vez mais a tornar-se republicana. Aconteceu isso nos espanhóis, acontece isso com os portugueses. Esses são os efeitos que na minha opinião se fizeram ver na Pensilvânia. É um estado que tem menos pessoas com ensino superior face a outros Estados e, portanto, aí nota-se mais uma participação no voto republicano.

Apesar dos números positivos do crescimento económico, o peso da inflação alta terá sido demasiado para as aspirações de Kamala Harris. Onde é que o Partido Democrata falhou?

Isto é um pesadelo para o Partido Democrata, porque já está a ver JD Vance como alguém que está a ser projetado para dois mandatos futuros.

Houve muito investimento no Partido Democrata e nas franjas libertárias e nas franjas no sentido de desenvolver as políticas identitárias, de as promover nas escolas e nas universidades. E as pessoas de uma forma geral não aderiram, não gostaram tanto e associam muito isso à franja mais de esquerda e libertária do Partido Democrata. Isso penalizou claramente os democratas.

Vi uma entrevista de um humorista americano que dizia, com toda a razão, que as políticas identitárias entraram pela casa das pessoas. As discussões da cultura identitária, da identidade de género, entraram pelos lares americanos adentro. Uma família que esteja no 'centrão' e que vote de vez em quando democrata ou republicano, tem filhos e estes assuntos são muito debatidos na escola. Isso foi claramente algo que na minha opinião também levou estas pessoas que votam desta forma racional a irem para o Partido Republicano.

Outra questão central é a da energia. Os Estados Unidos tornaram-se, de um momento para o outro, o principal produtor de energia do mundo. Isso tem a ver com o petróleo e com a exploração por ‘fracking’ e foi algo que aconteceu nos últimos 10 a 20 anos. É algo que tem de ser integrado em todas as políticas verdes. Há um legado, na minha opinião, importante de Biden que vai ficar.

Curiosamente, não houve nenhum legado Trump. A única coisa que fez nos últimos anos foi a reforma fiscal que vai expirar em 2025. Há muitas pessoas a ganhar muito dinheiro nos Estados Unidos, milhões de pessoas que são milionárias, que iam pagar mais impostos se o ‘Trump Act’ dos impostos não for renovado a partir de 2025. E, portanto, a questão da taxação, a questão dos impostos e a questão das políticas identitárias, são três questões que o Partido Democrata deve ver no futuro.

Trump deixou esse legado da reforma fiscal, mas que não é algo de duradouro, perene ou indelével. Obama, com o Obamacare, e Biden, com o plano da infraestrutura, manufatura e da energia verde, deixaram um legado. Daqui a 20 anos ainda vamos a falar do Obamacare e do plano da infraestrutura verde e da manufatura do Biden. Vamos ver se Trump desta vez consegue deixar qualquer coisa para as gerações futuras. É algo a ver.

E agora, com Trump na Casa Branca e maioria republicana no Senado, a tensão e a divisão sentidas nos últimos meses e anos vai desaparecer da América?

As pessoas falam menos de política aqui que na Europa. E já se falava muito menos de política quando vinha para cá nos anos 90, quando fiz o meu doutoramento no Texas. Os americanos acabam por discutir mais os assuntos prementes, que têm a ver com a gestão familiar. É o caso da questão do aborto, das políticas identitárias, da propriedade e dos impostos sobre o rendimento. Acabam por discutir menos as grandes questões políticas e ideológicas.

Há uma arquitetura legislativa e um contrato social muito profundos e enraizados e, portanto, muitas instituições vão continuar a funcionar. Em termos práticos, pode acontecer algo quase inédito, em que a Casa Branca, o Senado, a Câmara dos Representantes e o Supremo Tribunal, são da mesma área ao mesmo tempo. Mas a grande alteração, em termos de valores, já aconteceu com Trump, ao nomear mais três juízes para o Supremo e, ao fazer 6-3, reverteu as políticas federais do aborto.

Curiosamente, dos dez Estados que tinham aborto em referendo, sete foram no sentido de o permitir e não de o restringir. Portanto, o tecido social americano é muito mais forte do que as pessoas pensam e vai resistir, como é óbvio.

A História é muito mais cíclica. Olhando para o futuro, talvez se antevejam os republicanos com três mandatos, mas se observarmos os últimos 15 a 20 anos, houve uma maioria de mandatos democratas. Portanto, essas coisas são naturais.


A Renascença nos Estados Unidos com o apoio da TAP Air Portugal.

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