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Reportagem na América

​"A proposta de Trump de aumentar as barreiras alfandegárias é uma solução má para a economia americana"

02 nov, 2024 - 10:00 • José Pedro Frazão

O economista Luís Cabral, da Universidade de Nova Iorque, chumbaria um aluno que defendesse, como Trump, que importar mais do que exportar para a China é mau para a América. Em entrevista à Renascença, este investigador português radicado nos Estados Unidos passa em revista as últimas estatísticas económicas americanas e as políticas de ambos os candidatos.

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Os dados foram publicados no final da última semana de campanha. O crescimento económico tocou nos 2,8% no terceiro trimestre do ano, depois de ter chegado aos 3% no trimestre anterior. Mas no plano do emprego, a manutenção de uma taxa de desemprego nos 4% foi ofuscada pela criação de apenas 12 mil empregos em Outubro. Como é que se compreende a preocupação com a inflação num contexto de um crescimento económico que está a ganhar solidez em números invejáveis por exemplo face à Europa?

Existem muitos indicadores económicos que normalmente utilizamos que talvez não sejam os melhores para transmitir o estado atual da economia e do bem-estar das pessoas. É verdade que a taxa de desemprego é baixa, mas corresponde à percentagem de pessoas que estão à procura de emprego e não o conseguem quase até na última década. Há muitas pessoas que estão um pouco desiludidas com a situação atual do trabalho e que ou se reformam ou desistem de procurar emprego. Por esse motivo, não aparecem nas estatísticas de desemprego. A taxa de desemprego talvez não tenha o mesmo valor de informação que teria há 20 ou 30 anos.

O mesmo se pode dizer em relação à taxa de inflação, que neste momento é baixa. Interessa mais o nível de preços que a taxa de inflação. Se compararmos com o que se observava há 5 ou 10 anos, os rendimentos, especialmente nas classes mais baixas, não cresceram tanto como cresceram os preços. E portanto, em termos de poder de compra, a classe média baixa e a classe baixa americana está provavelmente pior do que estava há alguns anos. Embora a taxa de inflação neste momento seja baixa, há aqui um certo desconforto, uma certa desilusão com a forma como a economia contribuiu especialmente para as classes mais baixas.

Nestes indicadores macroeconómicos, temos também uma média do crescimento de 3 % da economia americana, mas isso diz muito pouco ou praticamente nada sobre a forma como esses ganhos foram distribuídos pelas pessoas. E, de facto, o nível de desigualdade, não apenas nos Estados Unidos mas também noutros países, tem aumentado significativamente e isso é muito notório nos extremos baixos e altos de rendimento. Portanto, isto também gera um certo mal-estar que, mais uma vez, não é traduzido pelos indicadores sumários da economia.

A inflação é um processo que vem da pandemia. Os Estados Unidos tomaram opções económicas com ritmos diferentes face à Europa. A América ainda revela resquícios da crise pandémica no plano económico?

Nos últimos anos houve uma certa injeção de dinheiro na economia - que vem da pandemia - com uma política muito forte da administração Trump de injetar muito dinheiro na economia e nos consumidores. Isso vai tendo o seu efeito. Apesar de todas as ameaças de maiores tarifas sobre importações da China, a verdade é que o consumidor americano tem beneficiado muito de importações a preços mais baratos de outros países.

Do ponto de vista do poder de compra e muitos índices económicos, nós já estamos onde estávamos antes da pandemia. Era já esperado que em 2024 estivéssemos melhor que em 2020.. Houve aqui um processo de recuperação, mas ainda não atingimos os valores que seriam de esperar se não tivesse havido uma pandemia. Por outro lado, a pandemia teve alguns efeitos permanentes como no mercado imobiliário ou no trabalho à distância. No trabalho remoto, ainda não atingimos completamente a normalidade em relação à pré-pandemia. E nunca voltaremos à economia pré-pandémica, pois há claramente efeitos permanentes, como na forma de organizar o trabalho.

Como classifica as principais propostas dos dois candidatos à Presidência dos Estados Unidos?

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, no que respeita à política interna americana, o presidente não conta muito, não certamente tanto como as pessoas falam. Os presidentes não têm dinheiro. Tudo o que o presidente quer fazer que tenha implicações económicas significativas tem de ser aprovado pelo Congresso. O sistema americano tem uma clara divisão de poderes, ao contrário do sistema português, por exemplo, em que o partido do governo também normalmente domina no parlamento onde existe disciplina de votos, que não existe nos Estados Unidos. Existe, de facto, uma separação muito grande entre o executivo e o legislativo.

Na prática, a escolha do presidente americano tem muito mais importância, na minha opinião, do ponto de vista de política externa do que interna. Por isso, na terça-feira, estarei a prestar tanta atenção à eleição do Presidente como às eleições para o Senado e a Câmara dos Representantes. A composição do Congresso tem uma importância até mais importante do que o Presidente em relação às medidas legislativas no campo da política económica.

Algumas das principais diferenças nos planos económicos entre o Partido Republicano e o Partido Democrata têm a ver com o sistema fiscal. Donald Trump promete um alívio dos impostos sobre as empresas e os indivíduos, especialmente a níveis de rendimento mais altos. O Partido Democrata, de uma forma consistente com a sua política, tende a propor taxas mais elevadas para pessoas e empresas de rendimentos mais elevados. Essa é uma diferença importante.

A administração de Trump propõe impostos alfandegários significativos, mais do que a proposta de Harris. neste sentido a diferença entre Democratas e Republicanos já é uma grande confusão. Houve um tempo, há algumas décadas, em que claramente o Partido Republicano era mais a favor de comércio livre, de não haver sindicatos, ou de os sindicatos não terem poder muito grande. Hoje em dia tudo isso se inverteu um pouco e o Partido Republicano parecer um partido mais a favor da proteção alfandegária, do sindicato e do trabalho do que o Partido Democrata. Nesse campo, há aqui uma grande confusão e a distinção entre os dois partidos não é tão clara e evidente como era há 20 anos.

Outra questão relevante tem a ver com a política de concorrência e inovação, essencial para os Estados Unidos colherem frutos no plano interno e externo. Há grandes diferenças entre Kamala e Trump?

Não são tão grandes como parece. O Partido Democrata tem tido uma política muito mais agressiva do que tiveram as últimas administrações na política de concorrência - que é a minha area de interesse - nomeadamente as de Bush e de Trump, mas também do próprio Obama. Espero uma política de concorrência mais forte e agressiva de uma próxima administração democrata. Do ponto de vista de promessas ou ameaças de cada uma das partes, para além do que eu já referi, o mais importante é a imigração, mas é mais uma questão social muito importante com implicações económicas, e com uma diferença importante entre o candidato Harris e o candidato Trump.

Mas Donald Trump fala diariamente sobre a ameaça chinesa. Revela maior preocupação deste candidato?

Donald Trump está a utilizar isto mais como trunfo político. O facto de Harris não ter falado tanto sobre barreiras alfandegárias não significa que não tenha políticas semelhantes. Nesse campo a distinção, neste momento, entre os dois partidos não é assim tão grande. Ambos preconizam um certo grau de proteção, sem planos muito concretos, portanto é difícil fazer uma comparação clara entre os dois.

É muito maior a diferença no que diz respeito à imigração. A administração Trump tem uma posição muito mais forte e agressiva, concretamente pela repatriação de todos os imigrantes que não estejam nos Estados Unidos de forma legal e uma proposta política muito mais limitativa nos níveis de imigração do que a proposta da candidata Kamala Harris.

Mas os Estados Unidos têm armas para criar barreiras alfandegárias á China?

Penso que sim, até porque existe uma certa margem de manobra na Organização Mundial de Comércio que permite aos Estados Unidos criar barreiras alfandegárias sem necessariamente violar de uma forma clara e evidente as regras da OMC. Por outro lado, os Estados Unidos não terão condições para competir em muitos setores com a China sem barreiras alfandegárias. Nos últimos 20 anos vimos um aumento significativo de importações da China em setores em que os Estados Unidos não são competitivos.

Para uma pessoa como Trump, que pensa em tudo como preto ou branco, isso é mau. Já mais de uma vez ele disse que estamos a perder, porque estamos a importar mais do que exportamos para a China. Se um aluno de economia disser que estamos a perder porque as importações são superiores às exportações, teria provavelmente um chumbo imediato.

Esse não é um indicador relevante. Na realidade, houve muitos americanos, especialmente nas classes média e baixa, que beneficiaram de forma enorme das importações da China, porque lhes permitiu adquirir uma série de produtos que de outra forma não conseguiriam adquirir. Há setores americanos que não conseguem competir com a China, mas isso se calhar até é uma coisa boa, porque significa que vamos conseguir importar bens que de outra forma não conseguiríamos consumir. E vamos passar a especializar-nos em setores em que nós, americanos, somos mais produtivos face à China.

O comércio internacional não é um jogo de soma nula e é perfeitamente possível que ambas as partes beneficiem quando existam largos fluxos de importação e exportação dos dois países. A proposta da administração Trump de simplesmente aumentar as barreiras alfandegárias não é necessariamente a melhor solução e provavelmente é uma solução claramente má para toda a economia americana

É um católico convicto. Pensa que há instrumentalização da religião para fins políticos nos Estados Unidos?

O voto católico nos Estados Unidos é igual ao voto americano. Não existe praticamente nenhum viés no voto católico. Talvez os católicos mais conservadores o sejam mais também na política, mas não se pode dizer que o voto católico seja uma entidade autónoma e mensurável. Se perguntarem numa amostra de americanos católicos em quem é que votaram, mais ou menos vai replicar a distribuição de todo o país.

É um pouco difícil dizer o que é instrumentalização. O Papa Francisco escreveu já há alguns anos que os comunistas roubaram-nos a bandeira da solidariedade. Em certos ambientes há determinados valores sociais como a solidariedade, a inclusão ou a diversidade, que hoje em dia são muito conotados com a esquerda. Mas, se pensarmos bem, são valores muito cristãos e, não sendo exclusivo dos Estados Unidos, nesse sentido houve de facto alguma instrumentalização ou uma aquisição de valores para efeitos políticos. Isso não é tanto uma instrumentalização da Igreja Católica e de Catolicismo, mas de certos valores que poderiam e deveriam ser - e que são de facto - valores cristãos.

Os últimos anos e agora a campanha mostram dificuldades de diálogo entre democratas e republicanos. O consenso entre partidos vertido em leis bipartidárias pode desaparecer?

Por motivos de alguma forma acidentais, Kamala Harris está dentro de uma ala mais progressista dentro do Partido Democrático. E Donald Trump está numa ala relativamente mais de direita face ao resto do Partido Republicano. Isto em parte é um acidente histórico, numa situação normal isso não aconteceria. Teria esperado candidatos republicanos e democratas mais razoáveis e mais moderados. Isto é também o reflexo de um fator que está estudado, que é a crescente polarização do discurso político, não só nos Estados Unidos mas também no resto do mundo.

Uma grande parte dos americanos está mais à direita de Kamala Harris e menos à direita do que Donald Trump. É um problema muito grande, porque, de facto, há milhões e milhões de americanos que não sabem em quem votar na terça-feira. Kamala Harris tem feito um trabalho, na minha opinião, razoável, de se distanciar de algum valores mais extremos, mas é impossível desligar-se do passado e da reputação que tem como alguém mais radical dentro do Partido Democrata em vários aspectos.

Mas dessa forma parece mesmo difícil haver pontos intermédios e moderados entre estas forças.

Tenho esperança de que esse ‘meio termo’, em que há diálogo, possa subsistir. Donald Trump teve um efeito muito negativo nesse aspecto concreto. Foi um agente de polarização e espero que tenha sido um acidente de percurso e que não seja uma mudança de longo prazo.

O sistema americano tem uma grande desvantagem: é muito difícil mudar as coisas por causa do sistema. Mas também tem essa mesmo grande vantagem: é muito difícil mudar as coisas. Esta divisão de poderes, tanto entre o executivo e o legislativo, como dentro do legislativo ao ter duas câmaras, em certo sentido é uma grande ‘chatice’, porque implica muitos compromissos. Mas isto também tem os seus detalhes, obriga as pessoas a dialogarem mais e a estabelecer compromissos políticos.

A política é a arte do compromisso. Pessoalmente prefiro um sistema que seja mais lento e que obrigue a mais passos intermédios de diálogo e de compromisso do que um sistema muito centralizado em que o Presidente ou o Primeiro-ministro tenha um poder mais absoluto e que leva a grandes variações de políticas que não são boas para a democracia.

Uma certa estabilidade é boa. Claro que a arte do compromisso político tem as suas desvantagens e pode ser visto como uma coisa negativa - porque as pessoas não gostam de arredar pé da sua posição - mas é uma parte importante da vida em sociedade. Na minha opinião, um sistema político que encoraja esse compromisso tem as suas vantagens.


A Renascença nos Estados Unidos com o apoio da TAP Air Portugal.

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