05 set, 2024 - 18:35 • Marta Pedreira Mixão
A mulher francesa, vítima do marido que a drogava e que convidou mais de 70 homens para a violarem em sua casa durante quase uma década, testemunhou esta quinta-feira perante o tribunal, relatando como o seu mundo se desmoronou quando a polícia a informou dos abusos que tinha sofrido.
"A polícia salvou a minha vida", disse Gisèle Pélicot, em declarações citadas pelo "Guardian".
A vítima tomou conhecimento dos abusos depois de as autoridades terem investigado o computador do seu marido, Dominique Pélicot, em novembro de 2020, quando este foi apanhado a filmar por baixo de saias de mulheres num supermercado perto da sua casa.
No decorrer da investigação, as autoridades depararam-se com uma pasta com o título “abusos” numa pen, que continha 20.000 imagens e filmes da mulher, drogada e inconsciente, a ser violada. Os crimes registados ocorreram ao longo de dez anos.
"O meu mundo desmoronou-se. Para mim, tudo estava a desmoronar-se. Tudo o que eu tinha construído ao longo de 50 anos", afirmou Gisèle Pélicot, desabafando que teve vontade de morrer, depois de os investigadores a terem informado do conteúdo dos vídeos.
A vítima confessou ainda aos juízes que apenas em maio deste ano teve coragem de ver as imagens: "São cenas de horror para mim."
França
Para além do homem de 71 anos, mais 50 vão a julga(...)
Gisèle Pélicot renunciou ao seu direito ao anonimato para que o julgamento fosse público, justificando que era isso que os seus agressores teriam desejado - o anonimato.
A vítima relatou no tribunal que ela e o marido se tinham casado aos 21 anos, tinham três filhos e sete netos e que eram próximos. "Não éramos ricos, mas éramos felizes. Até os nossos amigos diziam que éramos o casal ideal", afirmou, relatando como o casal se apoiou mutuamente perante dificuldades financeiras, laborais e de saúde.
"Olharam para mim como uma boneca de trapos, como um saco do lixo"
Gisèle relatou ainda que começou a ter dificuldades em lembrar-se de certas coisas e em concentrar-se, bem como dificuldades em controlar o braço, desconhecendo que estava a ser drogada regularmente à noite.
Questionada pelo juiz sobre possíveis problemas ginecológicos, Gisèle afirmou que exames médicos realizados durante a investigação policial revelaram que tinha sido infetada com várias doenças sexualmente transmissíveis (DST).
"Fui sacrificada no altar do vício", desabafou, acrescentando que quase não se reconheceu quando viu os vídeos, nos quais surgia imóvel. "Olharam para mim como uma boneca de trapos, como um saco do lixo."
"Quando se vê aquela mulher drogada, maltratada, uma pessoa morta numa cama - claro que o corpo não está frio, está quente, mas é como se eu estivesse morta. A violação não é uma palavra forte o suficiente, mas sim tortura", descreveu, explicando ainda como teve de explicar o sucedido aos filhos adultos e que o grito da filha "ficou gravado" na sua memória.
Com apenas duas malas, saiu de casa e deixou tudo para trás: "Deixei de ter uma identidade... Não sei se alguma vez me vou reconstruir."
Gisèle Pélicot tem sido apoiada no tribunal pelos filhos e foi elogiada pelos advogados pela sua força e calma no decorrer do julgamento, que pode durar quatro meses.
Dominique Pélicot, de 71 anos, assumiu em tribunal ser culpado de ter drogado a mulher e planeado os ataques: "Eu coloquei-a a dormir, ofereci-a e filmei."
Segundo a polícia, o marido da vítima, entre 2011 e 2020, esmagou comprimidos para dormir e ansiolíticos e misturou-os no jantar de Gisèle ou no vinho que esta bebia em casa. Dominique Pélicot recrutou, depois, vários homens para a violarem, contactando-os através de "chats online". De acordo com as autoridades, Pélicot chegou a encomendar 450 comprimidos em apenas um ano.
O marido da vítima e os outros 50 arguidos podem ser condenados a 20 anos de prisão por violação agravada.
Entre os 50 homens que estão a ser julgados juntamente com o marido, consta um conselheiro local, enfermeiros, um jornalista, um ex-agente da polícia, um guarda prisional, um soldado, um bombeiro e um funcionário público. Os homens tinham idades compreendidas entre os 26 e os 73 anos.
As autoridades não conseguiram identificar e localizar mais de 30 homens que também surgiam nas gravações.