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Qatar. Ninguém sabe quantos trabalhadores morreram no Mundial mais caro de sempre

18 nov, 2022 - 07:20 • Ana Carrilho

O Campeonato do Mundo de Futebol está a começar, mas a que preço? Mais de 200 mil milhões de euros em estádios e outras infraestruturas e entre 6.500 a 15 mil trabalhadores mortos, indicam diferentes fontes. A OIT fala em números exagerados e destaca as reformas implementadas no país árabe mais pequeno do que o Alentejo.

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Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters
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A Amnistia Internacional (AI) diz que morreram mais de 15 mil trabalhadores migrantes na construção dos estádios e infraestruturas para o Mundial de Futebol 2022, que começa domingo, no Qatar. Outras organizações falam em cerca de 6.500 mortos e dezenas de milhares de feridos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que são números enganadores.

Apesar de subsistirem situações irregulares, a realização do evento obrigou o emirado a fazer mudanças profundas na legislação laboral, que garantem mais direitos e segurança aos trabalhadores migrantes no Qatar, que constituem 85% da mão de obra deste pequeno país da região do Golfo Pérsico. O delegado da OIT no Qatar admitiu, em entrevista à Renascença, que há muitos desafios para superar. O Mundial não é o fim da linha para as reformas.

Quinze mil trabalhadores mortos em dez anos, diz Amnistia

Paulo Fontes, diretor de campanhas da Amnistia Internacional Portugal, frisa, em entrevista à Renascença, que há números muito díspares: não há dados concretos e os que existem não são totalmente confiáveis. Essa é uma das razões que leva a organização a defender a realização de uma investigação rigorosa sobre o número de mortes associadas à construção dos estádios e infraestruturas (hotéis de luxo, estradas, parques, serviços) para o Mundial de Futebol 2022, que arranca no próximo domingo.

Cruzando as diversas fontes, de organizações da sociedade civil a organismos oficiais dos países de origem dos trabalhadores, a Amnistia Internacional conclui que, entre 2010 e 2019, morreram pelo menos 15 mil trabalhadores não-cataris, de todas as idades e ocupações. Sem contar com as dezenas de milhares de feridos.

A contabilização ainda se torna mais difícil porque em boa parte das certidões de óbito aparece “causa natural”. Mas quais foram as condições que determinaram aquela morte, questiona, Paulo Fontes.

“Quando fazemos alguma investigação, falamos com a família ou com outros trabalhadores, por vezes, dizem-nos que aquela pessoa esteve a trabalhar muitas horas e/ou em condições extremas, no exterior e com temperaturas muito elevadas. A morte acontece e depois, na certidão, é declarada como sendo natural. Mas é preciso perceber o que aconteceu antes.”

Seis problemas a ensombrar o Mundial do Qatar
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Esses números são enganadores, responde OIT

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que os números a que chegou a Amnistia Internacional pecam por excesso, mas admite “lacunas” no que diz respeito aos trabalhadores que morreram na construção de infraestruturas para o Mundial de Futebol mais caro da história.

“É preciso olhar com detalhe para os diversos números de mortes que são avançados pelas diversas organizações. Há quem fale em 6.500 (como o jornal britânico The Guardian) e esses 15 mil, referidos pela Amnistia, incluem todas as pessoas que morreram no país e não apenas os trabalhadores envolvidos na construção dos estádios”, diz Max Tunon, chefe do escritório de projetos da OIT para o Qatar.

“Esse é um número global, inclui pessoas que estavam a trabalhar ou não; inclui crianças e pessoas com mais de 60 anos. Não apenas o dos trabalhadores que morreram por causa das obras do Mundial. São números exagerados.”

Max Tunon frisa, por outro lado, o rigor dos números apurados pela OIT, publicados no relatório do ano passado. “Concluímos que num ano – em 2020 – morreram 50 trabalhadores de vários setores relacionados com a construção dos estádios. Registámos ainda 506 feridos graves e 37 mil feridos ligeiros. Temos esses dados com a indicação da causa do acidente, nacionalidade e género”.

O representante da OIT no Qatar justifica a necessidade de dados rigorosos, que a organização usa para fomentar os esforços de prevenção dos acidentes, para adoção de políticas e para formar e informar os inspetores de trabalho.

“Mas também reconhecemos que há lacunas. Nalguns casos é necessário fazer mais investigação para perceber se essas mortes provocadas pelas altas temperaturas estavam ou não relacionadas com o trabalho. Não podemos sugerir que todas as mortes que acontecem no Qatar têm a ver com o trabalho ou as altas temperaturas. Não é o caso”, argumenta.

FIFA e Qatar têm de indemnizar as famílias

Desde maio, a Amnistia Internacional e outras organizações não-governamentais (ONG) têm em curso a campanha #PayUpFIFA, em que pedem à Federação Internacional de Futebol que reserve 433 milhões de dólares (415 milhões de euros) para o fundo destinado a indemnizar não apenas as famílias dos trabalhadores que morreram na construção dos estádios, mas também os que ficaram feridos, os que regressaram aos seus países de origem com salários em atraso ou foram vítimas de abuso dos empregadores. “Todos tornaram este Mundial de Futebol possível e merecem essa compensação”, sublinha Paulo Fontes, da AI.

Questionado sobre a forma como os trabalhadores que já abandonaram o país – muitos deles, deportados, ao abrigo do Sistema Kafala, entretanto desmantelado – podem ter acesso aos seus direitos, Paulo Fontes admite que não é fácil. Ainda assim, diz que a Amnistia Internacional defende a criação de um mecanismo que seja acessível a estes trabalhadores ou às famílias das vítimas, provando que estiveram a trabalhar no Qatar.


Algumas federações nacionais de futebol, a começar pela francesa, já manifestaram intenção de mobilizar receitas para compensar as vítimas dos acidentes de trabalho nas construções para o Mundial. O que também já levou a FIFA a assumir uma posição de maior abertura, garantindo que há um diálogo contínuo (com o governo do Qatar) e admitindo a criação de um fundo.

As muitas pressões internacionais levaram o Governo catari a implementar um sistema de compensação aos trabalhadores lesados e a Amnistia Internacional considera que o dinheiro que já foi pago é um marco importante. No entanto, sublinha que a justiça não chega a todos, nomeadamente àqueles que já deixaram o país e às famílias das vítimas.

Além dos direitos dos direitos dos trabalhadores, o Qatar tem um problema sério de violação dos direitos humanos. E para a Amnistia Internacional, o Mundial de Futebol, que dá uma visibilidade enorme a este pequeno país do Médio Oriente, é uma oportunidade que tem de ser aproveitada, porque, quando o evento terminar, tudo voltará a ser mais difícil.

Paulo Fontes refere um inquérito recente da organização junto de 17 mil pessoas de 15 países. “67% responderam que este Mundial tem de ser uma marca na necessidade de mudança em relação aos direitos humanos. Não pode resumir-se a um evento desportivo de grande dimensão”.

Mundial obrigou a mudanças, mas ainda há muito para fazer

Não sem grande polémica, em dezembro de 2010, o comité executivo da FIFA atribuiu a realização do Mundial de Futebol 2022 ao Qatar. É o mais caro de toda a história: deverá custar 225 mil milhões de dólares, o equivalente a 216 milhões de euros. As obras começaram e tornaram ainda mais visíveis as situações de violação de direitos dos trabalhadores.

Foi assim que, em 2014, as organizações sindicais internacionais fizeram chegar à OIT uma queixa contra o Qatar relativamente a práticas não conformes com as principais normas internacionais do trabalho. Nomeadamente, o sistema Kafala, que potenciava a exploração e trabalho forçado.

A queixa originou uma intervenção da Organização Internacional do Trabalho, que enviou uma missão tripartida para o país. Após longas negociações, OIT e Governo local acordaram na criação de um programa de profundas reformas laborais, iniciadas em 2016. Desde 2018, a OIT tem um escritório permanente em Doha.

“Nos últimos quatro anos e meio assistimos a um progresso significativo, com nova legislação adotada, novos sistemas de proteção dos direitos e interesses dos trabalhadores, fomento do diálogo social entre empresas e trabalhadores. Há uma melhoria significativa das condições de vida e de trabalho para muitos milhares de trabalhadores”, diz à Renascença Max Tunon, responsável pelo escritório da OIT no Qatar.

Max Tunon remete para os resultados de um inquérito realizado este verão com mais de mil trabalhadores. “Concluímos que, para 86% dos inquiridos, as reformas laborais tiveram um impacto muito positivo nas suas vidas”.

Max Tunon diz que as novas regras de funcionamento do mercado de trabalho estão a fazer a diferença. “O que não quer dizer que esteja tudo feito. Apesar da cooperação com o Governo catari e em especial com o Ministério do Trabalho, vai levar tempo para vermos a implementação total destas mudanças. As coisas foram feitas de certa maneira durante 30-40 anos. Mudar as mentalidades e as práticas empresariais, vai levar algum tempo”, admite.

Se foi o Mundial de Futebol a obrigar e a acelerar as mudanças no Qatar, o Governo do emirado faz questão de sublinhar que o evento não é o fim da linha. As reformas na área laboral fazem parte do Programa Visão Nacional 2030, que inclui objetivos relacionados com o desenvolvimento de uma economia baseada no conhecimento, competitividade e diversidade.

Desmantelamento da Kafala no centro das reformas

“Esta é a mudança mais importante, está no centro de todas as reformas laborais realizadas nos últimos quatros anos”, diz Max Tunon, sem qualquer dúvida, sobre o desmantelamento do sistema Kafala, de patrocínio da mão de obra estrangeira. Um sistema que tornava os trabalhadores totalmente dependentes dos seus empregadores, que não lhes permitia a mudança de emprego e potenciava o trabalho forçado e os abusos. Ou que dava ao empregador o poder de deportar o trabalhador migrante quando queria.

Para o responsável da OIT em Doha, como os trabalhadores já podem mudar de emprego, também podem negociar melhores condições de trabalho e salários. Por outro lado, os empregadores – a bem ou a mal, com punições quando violam a lei – também são incentivados a melhorar as condições de trabalho.

“350 mil trabalhadores já mudaram de emprego nos últimos dois anos, desde que a lei foi aprovada. Mas há desafios na implementação. Ainda há empregadores que querem impedir os migrantes de mudar de emprego e ameaçam-nos com a deportação, por exemplo.”

A Amnistia Internacional aplaude as reformas que estão a ser feitas, nomeadamente o fim do sistema Kafala. Mas também alerta para algumas dificuldades que persistem no terreno.

Foi estabelecido um salário mínimo para todos os setores, incluindo o trabalho doméstico, e a obrigação das empresas pagarem através de bancos do Qatar, sob controlo do Ministério do Trabalho. Além disso, as empresas têm de providenciar alojamento e alimentação aos trabalhadores migrantes ou pagar as verbas correspondentes, definidas pelo Governo.

O acesso à justiça é outra das conquistas para os trabalhadores, que agora se podem queixar ao Ministério do Trabalho sobre abusos das empresas.

Em resposta às organizações não-governamentais, que reivindicam do Governo do Qatar o pagamento de compensações aos trabalhadores feridos ou famílias das vítimas, o ministro do Trabalho respondeu que não iria dar essa compensação. Mas, para Max Tunon, há alguma confusão na interpretação das palavras do ministro, “porque ele disse que o ministério pagaria compensações a todos os casos que lhe chegassem e que estivessem relacionados com acidentes de trabalho ou falta de pagamento de salários. É, em primeiro lugar, responsabilidade dos empregadores, mas o Governo está aberto a pagar a compensação. Há inclusive um fundo criado em 2018 que já pagou 320 milhões de dólares em salários”.

Mais difícil de compensar, admite o representante da Organização Internacional do Trabalho, são os casos em que os trabalhadores já regressaram aos países de origem. “É difícil, mas tem de se ver o que pode ser feito”, sublinha.

Mudanças vão continuar depois do Mundial

A Organização Internacional do Trabalho vai continuar no Qatar após o Campeonato do Mundo, tem aliás um escritório permanente em Doha. À Renascença, Max Tunon apontou três grandes prioridades para os próximos anos.

“Queremos que todos os trabalhadores beneficiem da reforma do sistema Kafala porque ainda há muitos empregadores que pressionam quem quer mudar de emprego. Também queremos garantir o pagamento de salários em atraso a quem não está a receber e facilitar o acesso a canais onde podem apresentar as reclamações porque podem levar muito tempo a recuperar o seu dinheiro.”

E finalmente, os trabalhadores domésticos. “É um grupo mais vulnerável em qualquer parte do mundo. A legislação garante-lhes direitos iguais, nomeadamente no salário, mas quando chegamos à duração do tempo de trabalho, constatamos que há quem não tenha uma folga semanal. Isso tem de mudar”, defende a OIT.

Apesar de as mudanças ainda estarem em curso, Max Tunon considera que o Qatar é uma referência e pode ser um exemplo para outros países da região do Golfo Pérsico.


As reformas laborais no Qatar. O que mudou?

O programa de reformas laborais foi desenhado pela OIT, em cooperação com o movimento sindical internacional (Confederação Sindical Internacional e federações setoriais globais da construção, transportes, hotelaria, segurança, trabalho doméstico), Associação Internacional de Empregadores e Ministério do Trabalho. Anualmente, realizam-se duas reuniões com todas as partes para discutir o desenvolvimento do programa.

Algumas das reformas realizadas até agora:

- Desmantelamento do sistema Kafala: a lei foi adotada em 2018 e, nesse mesmo ano, nove mil trabalhadores migrantes mudaram de emprego. No ano seguinte, esse número duplicou. De novembro de 2020 a setembro deste ano, a mobilidade laboral abrangeu quase 350 mil trabalhadores.

- Em março de 2021 foi estabelecido o salário mínimo de 1.000 riais (cerca de 275 dólares). Além disso, o empregador tem de providenciar alojamento e alimentação. Ou, em alternativa, pagar 137 dólares e 82 dólares, respetivamente. A lei fez com que 13% da mão-de-obra (280 mil pessoas) tivessem aumento de ordenado. Além disso, o salário mínimo aplica-se a todas as nacionalidades e setores, incluindo o trabalho doméstico. Segundo a OIT, os trabalhadores com salários mais baixos enviam cerca de 80% do seu vencimento para o país de origem, para sustentar o agregado familiar.

- Para evitar abusos, todos os empregadores têm de pagar os salários através de transferências em bancos do Qatar, monitorizadas pelo Ministério do Trabalho. Em 2020, 96% dos trabalhadores elegíveis e 94% das empresas estavam registadas no Wage Protection System (Sistema de Proteção de salários). Abrangia mais de 1,6 milhões de trabalhadores.

- Em 2021 foi criada uma plataforma no Ministério do Trabalho em que os trabalhadores podem apresentar queixas sobre salários em atraso ou recusas de pagamento. Queixas que podem ser anónimas. Em três anos a OIT ajudou cerca de 11 mil trabalhadores a resolver os seus problemas. Em 2020 a plataforma recebeu 11.700 queixas e em 2021, 24.600. Até setembro deste ano, o Ministério do Trabalho pagou cerca de 320 milhões de dólares através do Fundo de Apoio e Segurança dos Trabalhadores.

- Apesar de não existirem sindicatos independentes no Qatar, a OIT, em parceria com a Confederação Sindical Internacional (CSI), as federações setoriais globais, a Associação Internacional de Empregadores e o Governo, tem fomentado o desenvolvimento do diálogo social. Têm vindo a ser criados Comités Mistos, a nível empresarial, que permitem a eleição de migrantes como representantes dos trabalhadores. Até ao momento, há cerca de 70 empresas com Comités Mistos, onde mais de 600 eleitos representam cerca de 50 mil trabalhadores.

- Em 2019 foi criada a Inspeção de Trabalho e, um ano depois, aprovadas as políticas de saúde e segurança nos locais de trabalho. Só no primeiro ano de funcionamento, os inspetores detetaram cerca de 10 mil violações das leis de trabalho, mais de dois terços, relacionadas com a saúde e segurança.

- O ano passado o Governo catari alargou o período em que é proibido o trabalho no exterior durante o verão. Passou a contemplar o período entre as 10h00 e as 15h30, de 1 de junho a 15 de setembro. Ou seja, aumentou quatro semanas e duas horas por dia em relação ao que estava em vigor anteriormente. Além disso, quando a temperatura subir acima dos 32ºC no indicador Wet Bulb Globe Temperature, que tem em conta a temperatura, humidade, vento e radiação solar, o trabalho também tem de parar. Com as novas regras, o número de trabalhadores a recorrer aos hospitais caiu consideravelmente. Mesmo assim, segundo a OIT, este verão, 626 trabalhadores precisaram de assistência. Em 2021, 338 empresas foram multadas por violarem a lei; este ano, o número subiu para 463.

- Boa parte dos trabalhadores migrantes que chegam ao Qatar pagam taxas de recrutamento e, frequentemente, são enganados. Para evitar esta prática, que está bastante enraizada, o Qatar instalou 14 centros de recrutamento legal de mão-de-obra em seis países (Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão, Filipinas e Sri Lanka. Ou seja, os países de origem da larga maioria dos migrantes). O projeto-piloto decorreu no Bangladesh e, segundo a OIT, mostrou que o pagamento das taxas de recrutamento caiu 92%. Só este ano, as autoridades já fecharam 45 agências por não cumprirem a lei.

- Em 2017 foi aprovada uma lei que regula os direitos e deveres dos empregadores e trabalhadores do serviço doméstico. Passaram a estar alinhados com os outros setores, nomeadamente, no que toca a salários, pagamento de horas extraordinárias, fim de contrato e baixas por doença.

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