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Entrevista a David Simas

Presidente da Fundação Obama ouve a Constituição americana em "Grândola Vila Morena"

10 nov, 2022 - 18:57 • José Pedro Frazão

​David Simas, filho de imigrantes açorianos e alentejanos, trabalhou na Casa Branca na equipa de Barack Obama que lhe deu a presidência da sua Fundação. Em entrevista à Renascença, um dos mais poderosos lusodescendentes nos Estados Unidos disserta sobre o clima social e político nos Estados Unidos, sobre a democracia em Portugal e sobre as raízes culturais que guiam ainda hoje o atual Presidente da Fundação Obama. O seu papel é encontrar líderes que saibam conjugar a primeira pessoa do plural para assim se encaixarem numa nova rede global de lideranças.

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David Simas esteve em Lisboa nos últimos dias para intervir na Web Summit onde se afirmou como um “americano orgulhoso” criado numa cultura portuguesa. A marca de Obama está presente em todos os seus discursos e é na figura do antigo Presidente que se inspira a sua jornada em busca de novas lideranças guiadas por valores solidários e inovadores em todo o mundo. Acredita que a Constituição norte-americana contém as respostas para os diversos problemas dos Estados Unidos e defende a construção de pontes com os adversários políticos, recusando vê-los como inimigos. Em português muito razoável, esta entrevista foi registada junto ao Tejo, num país que David Simas classifica de democracia estável, uma constante fonte de respeito pelos outros que até se encontra em Zeca Afonso.

O que é que ainda há de português no filho de Deolinda e António que chegaram aos Estados Unidos no século passado?

Criei-me numa cultura portuguesa. 90% das pessoas da minha comunidade em Massachussets eram portugueses. Havia a comida, a música, a língua, a missa. Ir para a escola é era ir para os Estados Unidos (EUA), regressar a casa era voltar a Portugal. Criei-me geograficamente nos Estados Unidos mas numa cultura portuguesa que, como é natural numa criança até aos cinco ou sete anos, vai influenciar o resto da vida. Isso é parte do que sou agora.

Como é que isso se reflete no seu trabalho atual ?

A primeira palavra do meu pai era respeito. Respeito por mim próprio, porque se não o fizer quando falo ou faço uma ação, estou a desrespeitar também a minha mãe, o meu pai e a minha família. E é também uma falta de respeito pelo resto da comunidade emigrante portuguesa. Todos os que não são portugueses nos EUA estão a ver aquele jovem português e, se não agir de uma maneira que corresponde a esse respeito, é a comunidade inteira portuguesa que é vista sem respeito.

O meu trabalho com o Presidente Obama e agora com a sua Fundação implica entender que a liderança não é dizer o que outros devem fazer, mas começa na forma como eu próprio falo e atuo. Significa abordar um problema e concluir que ele contém aspetos negativos mas também uma oportunidade. Essa é uma maneira diferente de pensar.

O David era o líder português numa comunidade de vários grupos de imigrantes em Massachussets?

Eu era um deles. Estava a concorrer para um cargo político. Cada parte da cidade tinha representação de diferentes grupos. A nossa zona era portuguesa, ao lado havia a irlandesa, depois a francesa, a polaca ou italiana. Na comunidade onde me criei, o português votava no português e o irlandês votava no irlandês, independentemente da plataforma política da pessoa. "És português ? És da nossa gente, tens o meu voto". Um dos meus professores ensinou-me que quando fosse bater à porta das pessoas uma zona irlandesa da cidade, deveria levar um amigo irlandês.

A pessoa que abrisse a porta não reconheceria aquele rapaz português como gente deles. Levar um amigo irlandês fazia uma senhora, na porta, olhar de forma diferente para aquele rapaz português. É o que é, temos sempre preferência pela nossa família. Em qualquer lugar do mundo, se ouvir a língua portuguesa, dirijo-me a essa pessoa e digo "também sou", como se fosse parte da família. É a forma de ser dos humanos.

O David diz ser um americano orgulhoso. Tem dois países? Onde é que Portugal entra nesse aspeto?

Portugal é a família e a cultura. Os Estados Unidos são a minha pátria, que deu aos meus pais e a mim uma oportunidade rara no mundo. Um mês antes do 25 de Abril de 1974, o meu pai e a minha mãe tornaram-se cidadãos dos Estados Unidos da América. O meu pai disse sempre que a sua independência tinha chegado primeiro que a liberdade a Portugal.

Nunca me vou esquecer daquele dia em que, com 4 anos de idade, estava numa escola a ver os meus pais com uma bandeira americana, ao lado de outros portugueses, açorianos na sua maioria, a afirmarem-se americanos. A única coisa que um norte-americano diz defender é a Constituição, não é a terra, a bandeira ou o povo. A Constituição é uma ideia e defendê-la é uma proposta radical. É um país de uma ideia, composta pela liberdade de qualquer pessoa no mundo chegar lá com nada e, depois de uma geração, o filho poder trabalhar para o Presidente dos Estados Unidos.

Essa ideia de liberdade não foi colocada em causa nos últimos anos nos Estados Unidos?

Sim, mas essa é a história dos Estados Unidos e a história humana. Os Estados Unidos ainda são a 100 por cento aquela terra das oportunidades. Todos os anos há um milhão de pessoas a emigrar legalmente para os Estados Unidos. Há 20 milhões em lista de espera para lá chegar. Quando olhamos para o que acontece após uma geração a esse milhão de pessoas que chegam todos os anos, a história é sempre a mesma. O que aconteceu aos meus pais é a mesma coisa que se passa com os emigrantes africanos que, passada uma geração, têm instrução, salários e mobilidade. Agora, a vida é difícil e o governo não dá muito. Tudo depende muito de estado para estado, onde as condições vão variando. Os benefícios do estado de Massachussets são completamente diferentes dos de Texas ou Florida. De certa maneira, há 50 "países independentes".

As liberdades nunca estiveram ameaçadas ou estiveram em causa nos anos da administração Trump?

Estiveram em grande perigo, mas o sistema, por via da Constituição, aguentou. O número de votantes nos Estados Unidos está a aumentar. Isso é uma expressão de liberdade.

Barack Obama tem dito “ Não apupem, vão votar”. Há um risco de inação nos Estados Unidos?

Há um cinismo, um pessimismo, de quem diz que nada vai ficar melhor e de que o seu voto não faz sentido. Esse é o maior perigo para a democracia. Democracia não é apenas votar, pagar impostos, mas também envolver-se na vida da comunidade. Não deve haver uma dependência em que, quando há um problema, vamos chamar um político para o resolver. Isso não é Democracia. Democracia é o “nós governamos”, eu é que tenho o poder, o meu vizinho é que tem o poder. Os Estados Unidos avançam mais nos anos em que predomina um espírito de comunidade, de empreendedorismo, de inovação e de negócio, em vez do domínio do Governo. Está é uma diferença muito interessante entre os Estados Unidos e muitos países na Europa.

Não está a aumentar o contingente de pessoas que ficam para trás na América?

Nós não temos uma grande “rede de segurança” nos Estados Unidos. Essa situação depende das zonas do país e dos grupos de pessoas de que falamos. Certas partes da sociedade americana não estão a progredir em termos salariais como avançaram no passado. A globalização é uma das razões para isso, mas há também apenas 7% dos trabalhadores norte-americanos que estão em sindicatos. E isso está a reduzir todos os anos, o que é preocupante, porque os trabalhadores filiados nos sindicatos têm mais oportunidades de obter melhores ordenados e benefícios. No entanto, muitas vezes, quando existe muito governo, as regras dos sindicatos são tão rígidas que matam a inovação. Tem que se fazer aqui um equilíbrio. Uma das coisas boas dos Estados Unidos é a existência de 50 "laboratórios", que permite ver como há coisas interessantes a serem feitas em Nova Iorque ou em partes do Texas. O Governo federal tem a possibilidade de aprender com cada um destes "50 laboratórios "porque nada é perfeito.

"Unidos Venceremos, Divididos Cairemos", clamavam os fundadores dos Estados Unidos. Lincoln dizia que "uma casa dividida não subsiste". Há dificuldades em encontrar um corpo comum norte-americano sobretudo com a tensão dos anos Trump? Como classifica hoje os Estados Unidos?

A politica nos Estados Unidos agora está difícil. As pessoas geralmente não se afirmam democratas ou republicanos necessariamente com base no que diz o partido, mas sobretudo como oposição ao outro. As sondagens mostram que a maioria dos democratas afirmam como tal por oposição aos republicanos e não pelas posições dos democratas. Acontece a mesma coisa com os republicanos. Quando eu deixo de ser um oponente e passo a ser um inimigo, estamos perante um perigo e podemos ver isso entre democratas e republicanos.

O Presidente Obama dizia sempre que nenhum partido tem o monopólio das boas ideias. Se um republicano aparece com uma ideia para fazer avançar a educação, tenho que estar de mente aberta para ouvir aquela ideia. A ideologia, a lógica de partido e uma maneira muito rígida de ver um problema leva à perda de visão. Estamos a chegar a este ponto nos Estados Unidos, onde esses factores fecham os olhos às oportunidades de trabalhar com outros, apesar de acontecer noutros países.

Não está um pouco ligado ao fenómeno das redes sociais e de algum extremismo de opinião?

Isso é uma parte da questão. Vejo as redes sociais como um acelerador. A maioria do povo americano vê 5 horas de televisão por dia. A maior parte das pessoas que eu conheço não estão no Twitter ou no Facebook. Quando ligo a CNN ou a Fox e ouço dizer que as redes sociais são terríveis, eu entendo isso, mas peço que se olhem ao espelho e vejam como as audiências são baseadas na introdução das questões mais terríveis e que causam a divisão das pessoas. Isto não acontece apenas com as redes sociais e nem sequer é uma coisa nova. Cada jornal americano que existia no tempo da Independência era partidário e diziam coisas terríveis do George Washington a quem chamavam nomes que hoje nem sequer se dizem. É algo natural em Democracia, estamos esquecidos do que já aconteceu. Nunca sabemos demasiado de História, porque lembrar e lê-la dá uma visão do que está a acontecer agora mas também um caminho para a frente.

Qual é o posicionamento atual do Presidente Obama nos Estados Unidos ? A Fundação é a sua forma de agir?

A nossa ideia, através da Fundação, é encontrar líderes nos Estados Unidos e no mundo que tenham a capacidade de serem Barack Obamas. Líderes no governo, mas também em negócios, na sociedade civil, na fé, em qualquer aspeto da sociedade, porque todos eles têm importância. Em cada lugar, há líderes em potência e, quando os encontramos, apresentamos um programa onde eles aprendem os ensinamentos básicos para serem aquele tipo de líder. Depois do curso, fazemos uma ligação entre os “líderes Obama” de vários países e continentes. Temos uma fornada de 500 novos líderes por ano que vão constituir essa rede ao cabo de várias décadas. Em 10 anos, teremos 5 mil. Em 20 anos, teremos dez mil homens e mulheres que serão primeiros-ministros, presidentes de empresas, líderes de fundações, todos com ligações ao nível dos valores.

Mas há uma receita para ser líder?

Têm 3 anos de experiência de liderança, com idades entre 25 e 40 anos. Não são tão novos que não sabem o que querem fazer e não são tão velhos que já chegaram ao ponto onde querem. Vão receber o benefício desta rede de ligações para o resto da vida. O mais importante – que é aquilo que estou sempre a anotar - é se a pessoa diz "eu" ou "nós". Aquele que diz sempre "eu fiz isto e aquilo" não serve. Pode ser uma grande pessoa com um grande futuro mas já não precisa desta ligação. Se já faz tudo sozinho, já está pronto. Aqueles que têm a humildade de dizer "nós" ou "a minha equipa" já são pessoas que já pensam que ninguém pode fazer nada sozinho. Esse é o aspeto mais importante no tipo de liderança de que estamos sempre à procura.

E a liderança de Portugal? Tem tido contactos com as lideranças nacionais?

Tem sido muito bom. No ano passado tive a honra de visitar o Presidente da República e passei algum tempo com ele. Nos últimos dias, tive um jantar com o Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, para além de diferentes membros do Governo. É sempre interessante, porque estou interessado nesta república portuguesa com uma democracia nova que vai fazer 50 anos. É nova, mas ao mesmo tempo tem uma estabilidade que não vemos noutras democracias na Europa. Há algo que não sei o que é - mas pretendo estudar - em torno das razões pelas quais Portugal conseguiu uma democracia nova, com eleições, apresentando uma relativa estabilidade, depois de anos e anos de ditadura, crises financeiras, pandemia, etc. Qual é o segredo ? O que há na Constituição portuguesa que a faz resultar até este ponto?

Isso faz de si também um português orgulhoso?

Claro. Gostaria de em 2024 celebrar os 50 anos de democracia com o povo português. Eu era uma criança, tinha quatro anos em 1974. A maioria da minha família estava ainda aqui em Portugal no Alentejo, numa comunidade chamada Abela, no concelho de Santiago do Cacém. Lembro-me de ouvir uma estação de rádio portuguesa chamada WJFD, que trabalhava para a comunidade portuguesa na cidade de New Bedford. Ouvíamos a “Grândola Vila Morena” e o som daquelas botas, da liberdade e da expressão de que cada pessoa tem valor, dignidade, de que cada pessoa ordena. A ideia da Constituição americana é baseada nessa verdade. Não é o governo, a terra ou as instituições. Cada pessoa, na sua cidadania, é que ordena.

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