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Luto

Depois de a Covid matar. As histórias dos que perderam os que mais amam

14 dez, 2020 - 07:02 • João Carlos Malta , Joana Bourgard

Passados quase nove meses, João, António e Maria falam das sequelas da morte da mulher, da mãe e do marido. A dor, a incompreensão e o cristalizar da sensação de uma perda sem reparo possível. Os psicólogos alertam que o luto na pandemia tem caraterísticas diferentes que intensificam o sofrimento. Os danos causados? Só daqui a uns anos saberemos.

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Covid-19. As histórias dos que perderam os que mais amam
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Nos dias anteriores, as chamadas dos médicos aconteciam de manhã e ao final da tarde. Desde que a mulher tinha entrado no Hospital S. João, no Porto, era sempre assim. Por isso, quando o telefone tocou naquela noite − já passava das 23h30 −, João sabia que do outro lado da linha não ouviria boas notícias. Mas quando a voz ao telefone lhe perguntou: “É o senhor José Silva, familiar da Áurea?”, aproveitou a troca de nomes para dizer: “Não, deve ser engano”.

João Silva admite agora que não quis ouvir o desenlace que temia ser fatal. Evitou-o como pôde. Mas aquilo começou a martelar-lhe na cabeça, e teve de ligar à irmã da companheira. Estava interrompido. Mais tarde soube que era o mesmo técnico hospitalar que lhe ligara minutos antes, a dar a notícia que ninguém queria ouvir. A muito amada Áurea não tinha conseguido resistir à luta de mais de oito dias contra a Covid-19.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, já morreram 5.559 pessoas em Portugal vítimas desta doença. A maioria tem mais de 80 anos, mas há mortos em todas as faixas etárias. A última semana foi aquela em que se registou mais óbitos desde março, e no último domingo o país bateu o recorde de vítimas diárias, com um total de 95.

Quando a cunhada finalmente atendeu a chamada, ouviu: “A minha irmã, coitada, já foi”. O mundo de João foi engolido num segundo, a 6 de abril deste ano. E o corpo foi sugado de forças. “Fiquei com os lábios todos brancos, secos, corri para a cozinha para beber água. Fui para a casa de banho e molhei a cara”, recorda.

O que aconteceu nas duas horas seguintes não se lembra. “Só às 2h00 é que entrei em mim”, diz. “Eu tremia por todo o lado, chorei toda a noite. Não queria acreditar... sempre pensei que ela aguentasse”, afiança. Ele também estava positivo à Covid-19, isolado em casa de mãos e pés amarrados e um corpo fragilizado pelo vírus. Sem nada que pudesse fazer.

Em cada canto, em cada recanto

Foi o fim de 12 anos maravilhosos. Um período em que tudo mudou na vida dele. Saiu do Seixal rumo ao Norte, no dia em que Áurea lhe perguntou se queria viver com ela. Bateu a porta do apartamento que comprara, e não olhou para trás. Sabia, como ele diz, “que tinha ali uma mulher boa”.

O que é isso? “Sabe, ela era uma mulher em condições, como aquela é difícil de arranjar. Gostávamos das mesmas coisas”, diz com a simplicidade de quem percebe como isso é tão complicado de encontrar.

Por isso, os poucos meses que namoraram quando ela, professora, esteve destacada na margem Sul do Tejo, não foram impedimento para mergulhar de cabeça na nova vida. Afinal de contas ela além de fazer das viagens ao estrangeiro o ponto alto do ano, tal como ele, era uma daquelas mulheres sempre com vontade conhecer mais e mais. Lia muito e ele gostava de ouvir as histórias dela. “Parecia que tinha de viver tudo num dia, que a vida dela ia ser muito curta”, lembra.

Em Valongo, numa zona de habitação moderna afastada da confusão do centro, entrar na casa de João é aceder à concretização material da devoção com que fala da mulher que era o centro da sua existência. Todos os cantos, todos os recantos, todos os objetos, têm Áurea dentro deles, ou uma história em que ela é a personagem principal e ajuda explicar a sua existência e forma.

Encaminhando-se para a sala, João, de 45 anos, garante que ainda agora consegue ver a mulher sentada a corrigir os testes da escola − ansiosa por fazer sempre um bom trabalho com os alunos que adorava − ou sentir o abraço dela no sofá enquanto viam uma qualquer série de televisão.

No móvel encostado a uma das paredes, construiu um altar a Áurea. Ali pontificam a fotografia dela que retrata uma das muitas viagens que fizeram. Há também flores, um terço, duas imagens de Nossa Senhora de Fátima e um livro que tem o título “Enfrentar a dor” − que assegura ter encontrado pousado num muro numa das caminhadas diárias em que tenta desfazer os nós de mágoa que lhe atam a garganta. Quando chega a casa acende uma vela, e é ali que há oito meses fala com ela.

É sempre cedo para ver partir quem mais se ama, mas Áurea só tinha 40 anos. Às vezes, nada do que está a acontecer parece real. Sabe que ela tinha uma doença autoimune, que pode ter potenciado os sintomas da Covid-19, mas não acredita que tenha sido isso que a levou tão cedo.

Voltar para casa cedo na esperança de ainda a ver

João é condutor de pesados, e, por isso, anda pelas estradas que o levam a muitos destinos, mas a cabeça dele só tem um rumo.

“Acabo o meu trabalho e dou por mim cheio de pressa de ir para casa. Às vezes, ainda penso que ela está aqui”, conta. João é um homem simbólico e, muitas vezes, místico. “Senti a presença dela quatro vezes. Falei com o psicólogo disso, sentia que ela me tocava, que me beijava, que me tapava. Não a consegui ver. Tentava virar o pescoço, mas não conseguia. Parece que estava paralisado. Parece que foi tudo real”, relata.

O psicólogo de que ele fala é o diretor do serviço de Psicologia do Hospital de S. João, no Porto, Eduardo Carqueja. O médico lembra o primeiro contacto com um homem “muito choroso”, “em muito sofrimento”, “incrédulo”, “com dificuldade de encontrar uma razão para a perda”. “Sentia-se perdido, mesmo estando dentro de casa”, sintetiza o psicólogo.

Nos primeiros contactos, por teleconsulta, João passava 50 minutos a chorar. As sessões podiam parecer um trabalho infrutífero, mas não. Começava ali o sedimentar de um apoio fundamental. “Ficava a saber que tinha alguém para o escutar de forma genuína”, sublinha Carqueja.

Recordando a forma como João reagiu ao telefonema do hospital em que seria feito o anúncio do falecimento, o clínico explica-o: “O processo de negação é um mecanismo de defesa muito antigo. É um amortecedor. O impacto é tão grande. Era algo que não queria ouvir, mas que já suspeitava. Era uma violência do ponto de vista emocional, porque tinha medo que fosse o que ele sabia que era. Teve esta sorte de não ser tratado por João, mas por José”.

A última vez que João viu Áurea, no dia 25 de março, ela ficou internada no hospital após os dois terem feito testes positivos. Foi tudo tão rápido e, poucos dias depois, nem sequer a podia ir reconhecer ou despedir-se. Ele fala dessa parte da história de forma desarmante. “Mesmo que tivesse possibilidade de ir ao funeral não sei se tinha coragem. Não queria imaginá-la dentro do caixão, não queria mesmo. Não queria ter essa imagem, é muito duro”.

Pedir uma impressão digital

Andando 300 quilómetros para sul, mesmo em frente do cemitério do Alto de São João, em Lisboa, o padre Carlos Azevedo conta como já assistiu a muitas destas histórias nos últimos meses de sacerdócio. A pandemia deu uma volta de 180 graus à forma como as famílias podem fazer o luto dos que amam.

Algo que até ali era parte do ritual pós-morte e da necessidade das famílias se despedirem, evaporou-se. “Falamos da missa de corpo presente como algo muito importante para que se dê início ao processo de luto, e hoje com esta pandemia há uma enormíssima incapacidade de nos despedirmos convenientemente, de as pessoas poderem tocar e chorar a partida dos seus junto deles”, relata.

As medidas sanitárias, assinala o sacerdote, tiveram muitas mudanças ao longo dos últimos meses neste tipo de celebrações, o que sempre provoca alguma confusão nas pessoas. Por isso, e porque as pessoas já estão revoltadas com o que lhes aconteceu, gerou algumas situações de tensão nos cemitérios por incompreensão das novas regras.

Todos os tradicionais hábitos de escolher a roupa e vestir o defunto, “praticamente, deixaram de existir”. “Ainda não percebemos porque ainda estamos muito em cima do acontecimento, mas acredito que isto traz consequências em lutos que se podem tornar patológicos”, defende.

O capelão do Hospital da Estefânia crê que as pessoas vão levar muito tempo para darem início a um processo que seja adequado, e encaixarem esta nova etapa com a partida daqueles que são mais queridos.

A morte é por si só, tradicionalmente, um momento de dor imensa − a que a Covid traz um acréscimo de sofrimento. Cancelou muitos dos passos que são muito importantes. Um deles é o reconhecimento dos mortos − o poder ver e tocar.

O padre Carlos Azevedo diz que essa tem sido “uma parte complicadíssima”. Isto mexe tanto com as convicções das pessoas que já assistiu a quem peça, pelo menos, “uma impressão digital, antes de fecharem a urna”.

Em pouco mais de quatro meses, entre o início de Agosto e a primeira semana de Dezembro, os óbitos por covid-19 quase duplicaram em Portugal (3228), em comparação com os cinco primeiros meses da pandemia (1735).

Só não queria morrer no hospital

Voltando de novo ao Norte, desta vez a Alfena, na Maia, António Alves está há nove meses às voltas com a incompletude que o padre Carlos descreve. A mãe, de 91 anos, tinha-lhe feito prometer uma e só uma coisa: que não a deixasse morrer sozinha num hospital. Martiriza-se porque não conseguiu cumprir, mesmo que a realidade demonstre que não poderia fazer mais. A Covid-19 tapou-lhe todos os caminhos e atirou-o para um pesadelo com que ainda hoje vive.

Mas puxemos a fita atrás, até março deste ano, para perceber o que deitou este homem de 63 anos, funcionário das águas da Maia, na marquesa de um psiquiatra. Quando a pandemia dava os primeiros passos em Portugal, o vírus entrou como um tornado na casa de António Alves. Na realidade são três casas: a que ele dividia com a mulher e a mãe, e a moradia ao lado que está dividida em duas casas uma para cada filha e as suas famílias. Todos ficaram infetados com o novo coronavírus, só as duas netas mais novas, ainda muito pequenas, não fizeram o teste.

No total 11 pessoas, e até hoje não se sabe quem foi o primeiro. Todos tiveram sintomas muito dispares, mas ninguém com a gravidade de Maria Emília, a anciã da família. António percebeu que algo não estava bem quando foi dar de comer à mãe e ela deixou o prato cair. Prontamente, foi medir o nível de oxigénio à idosa, estava muito abaixo dos valores normais. Chamaram os bombeiros, e a decisão só podia ser uma: levá-la para o hospital. Ao lá chegar, percebeu-se que era o novo coronavírus que lhe roubava o ar.

Passados três dias de internamento, os médicos começaram logo a prepará-lo para o pior cenário. Que chegou. Desde aí que há uma picareta que não o deixa dormir à noite e de dia torna tudo mais negro.

Se a minha mãe estivesse inconsciente no Hospital não se lembraria, o pior era se ela estava consciente”, teme. “O que pensaria ela? Não aparece o filho, não aparecem os netos, não aparece ninguém para visitá-la, isso é o que mais me dói na alma”, explica António. “Não sei se estava a sofrer, se não sofreu. Depois de uma vida inteira de tantos anos, ter um desfecho final tão terrível…”, lamenta.

Quando fala de uma vida inteira, António refere-se aos longos anos vividos debaixo do mesmo teto. São memórias que se multiplicam e que lhe enchem os pensamentos.

Caixão fechado e num saco plástico

A partir da morte de Maria Emília começou o martírio psicológico. Sempre que vai para o quarto, tem de passar pelo quarto da mãe. Nesse momento, chora.

“Isto é muito triste e não merecíamos isto. Posso durar 10, 20, 30 anos, posso durar os anos que durar que isto não me esquece mais. Não me poder despedir dela”, repete o homem que viveu muitos anos emigrado na Venezuela.

Como se já não bastasse não poder ver a mãe no hospital, onde a mulher também estava internada − mas com sintomas mais leves − foi a falta de todo o ritual pós-morte que o afetou de forma profunda. “O armador [elemento da funerária] foi buscá-la, mas não abriu o caixão. Não se podia abrir, ela vinha embrulhada num plástico. Nem a roupa tinha. Isto não tem nome”, revolta-se.

António tem uma família grande e bonita, cheia de meninas pequeninas que lhe enchem a vida, mas desde aquele dia que não consegue dormir. As noites são quase que passadas em claro. “Estou sempre a chamar por ela, estou sempre a chamar pela minha mãe”, repete.

Não conseguiu estar presente nos últimos dias de vida da mãe, nem dizer o último adeus, mas desde que recuperou da infeção passa três dias por semana pelo cemitério para visitar a campa de Maria Emília. Acender a vela e mudar a água às flores, faz parte da rotina.

Neste período, uma companhia sempre presente na vida de António é a de Joana Soares, psicóloga no pólo de Valongo do Hospital de S. João. A médica recorda um doente que “estava a perder o controlo da situação”.

A especialista explica que a dor espoletada pela morte da mãe foi um “clique” que fez disparar os episódios traumáticos do passado, e que teve como consequência acentuar o drama que António estava a viver.

“Este senhor viveu toda a vida como bombeiro. Todas as situações que ele tinha vivenciado nessa atividade, e as memórias de outras pessoas que estiveram envolvidas em acidentes vieram ao de cima, nesses dias. Estava a passar uma experiência de luto bem complicada”, afiança.

O peso da promessa quebrada

António, segundo a psicóloga, sente o peso de não ter concedido o maior desejo que a mãe lhe pediu: não a deixar falecer sozinha no hospital. “Ele fala muito desta situação e está a ter impacto ao nível do sono. É um sintoma de que o processo de luto não está a decorrer como seria esperado”, define.

Para a psicóloga, nestes casos, há em primeiro lugar que “validar os sentimentos que surgem”, a pessoa tem de ter “espaço para chorar e falar do que está a sentir”. “É importante fazer isso de uma forma facilitadora, porque, muitas vezes, os contextos familiares não permitem falar do acontecimento. É como se houvesse uma conspiração do silêncio”, descreve.

No caso deste paciente, “senti que estava a viver isto de uma forma mais angustiante e ansiogénica”. A António, diz Joana Soares, “tiraram-lhe o tapete”. A família estava toda infetada e encontrava-se sem poder dar e receber apoio, que são “trocas muito importantes em termos de perda.”

Enquadrando o caso deste homem, com o de muitos outros nestes meses, a especialista diz que só agora estamos a perceber se as primeiras mortes pela Covid-19, ocorridas em março e abril, vão evoluir para um luto normal ou para um luto complicado.

O que é um luto complicado?

“Uma vivência de luto traz comportamentos normativos: a pessoa sente-se mais triste, tem mais dificuldade em dormir, perde o apetite, tem tendência para se isolar das pessoas de quem gosta. A atenção está tão centrada na pessoa que se perdeu, que não se consegue investir em novas relações. Se estes sintomas se mantêm em quantidade e qualidade de importância nas pessoas que o vivenciam, podemos estar perante um luto complicado e com outras repercussões”, explica.

Eduardo Carqueja, que lidera o serviço em que Joana trabalha, explica que em muitos casos que seguem, e de que João e António são exemplos, os familiares das vítimas mortais da Covid estavam também infetados, “o que impendia que saíssem do espaço de isolamento se um dos elementos viesse a falecer” e não pudessem estar “o mais próximo possível do acompanhamento do final dessa pessoa”.

"O armador [elemento da funerária] foi buscá-la, mas não abriu o caixão. Não se podia abrir, ela vinha embrulhada num plástico. Nem a roupa tinha. Isto não tem nome"

Recuando ao período inicial em que estes dois homens perderam a mulher e a mãe, Carqueja lembra que estamos a falar de um momento em que tudo era ainda pouco claro.

“Tinha-se um olhar muito desconhecido e de grande incerteza, que fez com que as pessoas que viessem a morrer fossem cremadas. Associadamente, havia normas de que as pessoas tinham de ir nuas. Para muitas pessoas teve impacto. Além de não puderem ver, havia esta nudez que é quase uma violência”, descreve.

Há quem tenha descrito esta altura, em que a norma era não reconhecer os familiares mortos, como um processo semelhante ao das vítimas da guerra colonial. Eduardo Carqueja entende a analogia, mas não a subscreve. Diz que o hospital é um sítio credível e seguro: “Sabemos que há uma identificação, que há um processo, e há um número de cama. Há uma identificação da pessoa”.

O mesmo garante que sempre houve a preocupação de ter “uma comunicação com a famílias”. Os doentes que podiam falar, iam-no fazendo, “os que não conseguiam havia alguém da equipa assistencial que comunicava com os familiares”. “Houve sempre a preocupação de fazer chegar a informação à família que estava em casa. Nós, psicólogos, fizemos uma ponte muito grande. Muitas vezes, os clínicos e os enfermeiros não tinham tempo para essas informações”, revela.

Quando o desfecho era o pior, a comunicação era feita por alguém do serviço em que o doente estava internado e “era muito objetivada”, “com sinais muito identificáveis: era referida a cor dos olhos, para dar a essas pessoas a ideia de que quem tinha morrido era o familiar, seja o pai, a mãe, e assim criar esta ideia de que era a real e que quem estava no caixão era mesmo aquela pessoa”.

Desfazer crenças irracionais

Em relação à nudez e à cremação, Carqueja diz que foi preciso desconstruir estes temas, muito duros e difíceis de ultrapassar. “Foi nu? Mas porque é que foi nu?”, eram as perguntas.

"Se ela pudesse decidir, neste contexto, sabendo que se fosse vestida podia causar dano, o que acha que ela ia fazer?"

O médico recorda que eram os próprios familiares que introduziam o tema e repetiam os argumentos que lhes tinham sido dados: o de “não contaminar”, por exemplo. “E nós pegando nessas histórias que as pessoas nos contavam, trazíamos isto para a decisão da pessoa que morreu, e perguntávamos: ‘Se ela pudesse decidir, neste contexto, sabendo que se fosse vestida podia causar dano, o que acha que ela ia fazer?’”

Nessa altura, Carqueja afirma que “as pessoas normalmente diziam que o ente querido não se queria vestir, porque não queria causar dano a mais ninguém”. O mesmo processo era utilizado para explicar a cremação. E mais uma vez não era fácil, porque era um tema discutido em algumas destas famílias com pedidos expressos dos entes queridos para nãos serem cremados.

Para tentar contrapor a estas decisões impossíveis de concretizar, mais uma vez, o argumento que usou foi o de um bem maior para a sociedade − e que qualquer pessoa de bem deve subscrever. “Isto atenua muito as angústias das pessoas, pensar que o modo como tudo aconteceu foi por um bem maior. Isto é que é importante nos processos e luto, dar um significado para o acontecimento”, identifica.

Os processos psicológicos que mais prevalecem na morte é o da culpa e da raiva. “A raiva contida, e culpa revelada como impotência, como justificação para o acontecimento”, desenvolve Eduardo Carqueja. Para este psicólogo, “quem trabalha o luto sabe que trabalhar a culpa é algo de muito importante”.

“O que fazemos, muitas vezes, é desconstruir crenças irracionais − que levam a agir e a pensar de determinada maneira, não permitindo entender o verdadeiro fundamento para a situação. A pessoa precisa de acolhimento para isto. Não se pode dizer, você não tem culpa nenhuma, isso acontece. Isso é muito vago. Temos de ter outra tradução, que é o mesmo que dizer que faz sentido sentir culpabilidade, mas que isso não significa que a tenha”, revela.

42 anos que terminam num ápice

Sofrimento é o sentimento que prevalece na vida de Maria Trindade desde que a Covid-19 lhe roubou Guilherme. Foram 42 anos a partilhar tudo, que de um momento para o outro acabaram. Num dia, viu-o sair com sintomas que ele dizia serem de uma gripe, e pouco tempo depois recebia a notícia em forma de “bomba atómica” ao telefone. Não poderia mais voltar a vê-lo.

Maria não quis falar presencialmente. Não pretende expor-se, mas não rejeita recordar o homem da sua vida. Desfia a história de amor com suavidade e ternura. Ela saia com um casal amigo, e a amiga disse-lhe a gracejar que ela estava a fazer de “pau de cabeleira”, e que, por isso, lhe ia arranjar um namorado. Apareceu Guilherme. Não foi amor à primeira vista, mas a lábia do, à época, estudante de Economia deram em mais de 40 de casamento. Não demoraram muito tempo a dar o nó, menos de um ano depois de o namoro começar, e a primeira das duas filhas nasceu dois anos depois do matrimónio.

Foi um casamento muito bom”, conta Maria. Ele encaixava nela de uma forma que não poderia sequer ter sonhado. O amor fez crescer aquilo que de mais precioso tinham: uma família unida e feliz. Ele adorava as filhas e sempre fez tudo por elas, e nos últimos anos repetia a mesma história com os netos.

Parecia ter sido só um resfriado

São tantos os momentos de carinho, amizade, companheirismo, que lhe saem em catadupa da vida a dois, primeiro, depois a quatro, todas elas capítulos da história maior, que encheu a vida desta mulher. Nada que fizesse antever um final tão abrupto. É verdade que ele era diabético e tinha apneia do sono, patologia que trazia acoplada os problemas respiratórios. Mas a verdade também é que isso eram situações que se julgavam controladas e que lhe permitiam ter uma vida normal. Em março isso mudou.

Tudo começou numa reunião no jardim do condomínio em que moravam, em Gondomar. Ao ar livre, num dia de frio, Guilherme, de 71 anos, encontrou-se com mais dois companheiros da administração do complexo habitacional.

"Nunca mais o vou ver, nunca mais vou fazer férias com ele, nunca mais faço compras com ele. Está-me a martelar nestes últimos tempos"

Quando regressou sinalizou o frio e a vontade de não se constipar a Maria. À noite começou a sentir-se mais “murcho”. A mulher ainda lembra as palavras dele: “Estás a ver que me constipei mesmo. Parece que me sinto febril, estou muito mole”. Passou um dia, e a febre subiu para 38 graus. Ainda tomou um Ben-u-ron, mas de nada serviu. No dia a seguinte, fez o teste da Covid, e estava positivo. O próximo passo, uma viagem até ao hospital de S. João. Foi a última vez que Maria o viu com vida.

Quando a situação piorou foi transferido para o Hospital de Santo António, onde falou com a mulher a confessar que se sentia “muito cansado”, e que o iam levar para outro lado. A aflição começou a apoderar-se dela.

Passado pouco tempo, ligaram a dizer que ele estava nos UCI [cuidados intensivos] e para contar com o pior. Eu disse que não podia ser, porque ele não estava assim tão mal. Ainda ontem falei com ele e estava tão bem”, revive. “Não se convença disso”, repetiram do hospital.

O que se passou, nessa altura, é simples de descrever e muito difícil de sentir. “Fiquei sem terra debaixo dos pés”, diz. Nos quatro dias seguintes, ligavam-lhe às 18h30 a fazer o ponto de situação. O relato era sempre o mesmo: “Era muito grave, para contar com o pior”. Nesta altura, ela já tinha um teste positivo, e apesar de todos os sinais contrários, em casa continuava a preparar o regresso de Guilherme. Limpou e desinfetou tudo, para o poder receber e isolar convenientemente.

Ao quinto dia, ouviu que todos os órgãos tinham entrado em falência: os pulmões, os rins, o coração. “Estava a lutar, mas que era quase impossível”, recorda. Durou mais um dia, até soçobrar. “Ao outro dia de manhã ligaram a dizer que ele tinha falecido, que não tinha resistido. O pior que pode acontecer”, lembra.

Revolta

Em retrospetiva, vê tudo em “slow motion”. “Ele saiu e disse: ‘Até já, até logo’, e nunca mais o vi, não pude ver, não o pude visitar, não houve funeral, não pudemos fazer o velório. O funeral teve de ser no outro dia de amanhã”, enumera.

“Foi horrível, uma revolta muito grande”, relembra. Entrou num processo de negação.

Foi difícil habituar-se a ver o lugar dele desocupado na mesa às refeições, ou quando passava no escritório, onde antes o via a trabalhar, agora só se vislumbrava o vazio.

Neste momento, confessa, está a passar pelo que chama de fase “do nunca mais”. “Nunca mais o vou ver, nunca mais vou fazer férias com ele, nunca mais faço compras com ele. Está-me a martelar nestes últimos tempos. Estou a ser seguida por um psiquiatra”, revela, depois de em 2017 já ter passado por uma grande depressão.

"Nunca mais o vi, não pude ver, não o pude visitar, não houve funeral, não pudemos fazer o velório. "

Também as netas sofreram imenso com o desaparecimento de Guilherme. A mais velha passou a falar com as estrelas imaginando nelas o avô. A mais nova revoltou-se. Foram muitas perdas seguidas na família − o avô paterno, a bisavó, e agora o avô materno. Tudo muito rápido. Os hospitais começaram a soar-lhe como sinónimo de morte. Ela é descrita por Maria como muito meiguinha, mas começou a ter comportamentos agressivos para com as amiguinhas.

A professora chamou-a à atenção na sala, e a pequena Maria Inês desatou num pranto, quando uma colega − que tinha perdido há poucos meses o pai com um cancro − disse: “Eu sei o que ela tem, também fiquei assim quando o meu pai morreu”. A relação com o avô Guilherme era fortíssima.

Nos últimos anos, o homem de 71 anos vivia para as duas pequenas. Era ele que, com a mulher, as ia buscar ao colégio e, nas últimas férias de verão, fez a promessa de voltarem a Espanha para repetirem “aqueles dias maravilhosos”. Já não vai acontecer.

Olhar para o futuro

O padre Azevedo olha para estas mortes e sentencia: “Fica algo incompleto no processo relacional entre nós e a pessoa que amamos”.

A psicóloga Joana Soares descreve os últimos meses como “uma fase muito complicada em relação a esta vivência em particular. As pessoas trazem sentimentos de angústia, de solidão, sentem-se ansiosas”.

O também psicólogo Eduardo Carqueja está convencido de que ainda é cedo para perceber se o luto Covid tem diferenças com o luto dito tradicional. E o universo conhecido, referente à pandemia, também não é vasto. “Temos alguns doentes enlutados que seguimos, apesar de haver muitas mortes, há poucas pessoas a serem seguidas até por causa da acessibilidade a este tipo de apoio”, revela.

O especialista avança que o primeiro ano é determinante para o processo de luto. “É a primeira vez que vou passar por marcos importantes na minha vida sem aquela pessoa. É o primeiro Natal, é o meu primeiro aniversário, a primeira Páscoa, as primeiras férias”, enumera.

Quando olha para o futuro, Maria não acredita que vai superar a perda ou que esta se venha a atenuar. Guilherme era o companheiro para tudo, desde um concerto da Cuca Roseta, ou assistir a um ballet russo, até à simples ida ao café. “É um vazio grande. Isso acabou na minha vida”, sentencia. As filhas continuam a dar-lhe força, a tentar substituir o desalento, mas ela resiste e tem sempre uma pergunta na cabeça: “Penso para comigo: o que é que vai ser o meu futuro daqui para a frente?”.

Esta dificuldade em esquecer quem partiu é partilhada por João Silva. Áurea está presente. Ele diz que gostava de sonhar mais vezes com ela. Pensa nos projetos que faziam, nas viagens que planeavam e lhes enchiam os sonhos.

Ela queria chegar a velhinha e viajar muito. Fez um PPR para quando se reformasse viver a vida. Olhava para as senhoras bem-postas na rua e dizia, um dia quero ser como aquela senhora e só passear”, recorda.

A nostalgia envolve-lhe a voz: “Tinha-lhe um amor muito grande. Vai custar a passar, parece-me a mim. Ela era uma pessoa muito boa e quando as pessoas são boas a gente não se esquece”.

Olhando para este ano devastador, resume-o em três frases. “Pedi a Deus para me arranjar uma mulher em condições, ele deu-me, mas foi por pouco tempo, 12 anos. Às vezes olho para trás e parece um sonho, que começou e acabou. Teve uma data de início e uma data de fim”.

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