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Eleições em Itália. Sondagens, alianças e Giorgia Meloni, uma provável primeira-ministra inspirada em Mussolini

23 set, 2022 - 07:55 • Pedro Valente Lima

Numa "geringonça" entre o Irmãos de Itália de Giorgia Meloni, a Liga de Salvini e o Força Itália de Berlusconi, a direita radical é favorita à vitória das eleições antecipadas italianas. Este domingo promete ser histórico, num momento em que a primeira mulher a chefiar um executivo em Roma significará o regresso da extrema-direita à liderança do país, 77 anos depois.

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Na contagem decrescente para as eleições gerais em Itália, do próximo domingo, as previsões apontam para um desfecho inédito na história do país: pela primeira vez uma mulher pode liderar o Governo.

No entanto, uma eventual vitória de Giorgia Meloni poderá também significar o regresso da extrema-direita à liderança do executivo italiano desde a queda de Benito Mussolini, no final da II Guerra Mundial. "Il Duce" é uma inspiração e "um bom político" para a líder dos Irmãos de Itália.

Mas afinal, como é que a Itália chegou até aqui? Com uma pitada de traição política, alianças à direita e a ascensão meteórica da romana Giorgia Meloni.

Do 'renascimento' italiano à queda prematura de Draghi

A renúncia de Giuseppe Conte do cargo de primeiro-ministro, no início do ano passado, levou a que Sergio Mattarella, Presidente da República italiana, procurasse uma solução imediata, face à crise motivada pela pandemia da Covid-19.

Foi desse modo que, em fevereiro de 2021, Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu entre 2011 e 2019, foi convidado a formar um Governo de união nacional. O executivo formado por Draghi viria a contar com elementos de partidos de todo o espectro partidário, da direita à esquerda.

Perante os membros do Senado e do Parlamento italianos, a equipa montada por Mario Draghi viria a ser aprovada com uma grande maioria, à exceção dos votos contra do Irmãos de Itália (FdI), partido de extrema-direita liderado por Giorgia Meloni.

Durante ano e meio, o novo Governo viria a gozar de relativa estabilidade. Aliás, a sua resposta à crise da Covid-19 foi louvada internacionalmente, ao ponto de ser um dos fatores de peso para que a Itália fosse escolhida como o "País do Ano de 2021" pela publicação "The Economist".

Contudo, um pouco à semelhança do caso português, o executivo de Draghi viria a perder o apoio de três partidos de peso a julho deste ano.

Mais concretamente, os populistas de direita do Movimento 5 Estrelas (M5S) rejeitariam uma moção de confiança ao Governo italiano, numa tentativa de recuperar o apoio do eleitorado, que se sentiria "traído" pelo partido "anti-sistema" fazer parte da solução governativa do país.

No seguimento desta opção do M5S, a Liga (L), assim como o atual partido de Silvio Berlusconi, Força Itália (FI), também viriam a retirar o seu apoio a Mario Draghi.

O posicionamento pró-NATO e pró-Ucrânia convicto do então primeiro-ministro também poderá ter entrado em choque com os partidos de Salvini e de Giuseppe Conte, os quais tinham laços próximos com o regime de Putin.

Sem maioria parlamentar, o Governo de Mario Draghi viria a apresentar a sua demissão, que, depois de avanços e recuos, foi aceite pelo Presidente italiano, Sergio Mattarella. Desde então, o primeiro-ministro demissionário tem governado interinamente até às eleições antecipadas deste domingo.

Eleições gerais com novas regras

As eleições gerais antecipadas, a realizar este domingo, 25 de setembro, contemplam as escolhas de milhões de eleitores para o Parlamento e Senado italianos. O Governo que daqui sair será o 70.º desde a Segunda Guerra Mundial, um indicativo da habitual instabilidade dos executivos em Itália.

Fruto das alterações à lei, em 2018, as regras serão ligeiramente diferentes este ano. O número de deputados será mais reduzido, passando dos 630 para 400 lugares no Parlamento, enquanto que no Senado baixará dos 315 para os 200 representantes.

Um terço dos candidatos, para ambas as câmaras parlamentares, serão eleitos por um sistema maioritário de first-past-the-post. Isto é, o partido que obtiver mais votos do que todos os outros, independentemente de chegar aos 50%, garante a totalidade dos lugares em disputa num dado círculo eleitoral.

Os outros dois terços seguirão o método um método mais familiar aos portugueses: a representação proporcional, que elege os deputados em função da percentagem de voto conquistada pelos partidos.

No entanto, ao contrário do que é usual nos sistemas de representação proporcional, a conquista de 40% dos votos não garantirá uma maioria automática.

Quem são os principais candidatos?

Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni

À cabeça, surge logo um nome que, há um par de anos atrás, seria imprevisível. O Irmãos de Itália, partido de extrema-direita liderado e co-fundado por Giorgia Meloni, nasceu em 2012, fruto de dissidentes do partido de centro-direita O Povo da Liberdade, na altura presidido por Berlusconi.

O início de vida deste novo grupo político foi algo tímido, pelo que nem há quatro anos reunia apenas 4% das intenções de voto dos italianos.

Contudo, nos últimos tempos, o partido tem gozado de uma ascensão apoteótica, conquistando eleitorado aos partidos da direita, como o Movimento 5 Estrelas, o Liga e o Força Itália, aliciando os eleitores com propostas eurocéticas, anti-LGBT e anti-imigração.

Atualmente lidera as preferências dos italianos, com cerca de 25% nas últimas sondagens, realizadas a 9 de setembro (em Itália, é proibido realizar este tipo de inquéritos nas duas semanas semanas que antecedem as eleições).

A reforçar o favoritismo do Irmãos de Itália, surge a coligação montada com outros partidos de direita, a centrodestra ("centro-direita", em português).

Sendo assim, esta "geringonça de direita" é composta ainda pela Liga, o Força Itália e ainda o mais desconhecido Nós, Moderados. Em conjunto, a coligação poderá garantir 48% dos deputados, de acordo com as sondagens.

Liga, de Matteo Salvini

Esta união de esforços poderá ser uma 'boia de salvação' para a Liga, de Matteo Salvini. O partido de extrema-direita chegou a desfrutar de elevada popularidade em Itália, especialmente pelas suas posições nacionalistas, eurocéticas e anti-imigração.

No entanto, a proximidade ao regime de Vladimir Putin e a censura ao executivo de Draghi terão custado caro, tendo sido um dos partidos 'culpados' pela instabilidade governativa sentida em Itália.

A Liga terá perdido muito do seu eleitorado para o Irmãos de Itália, estacionando agora nos 13% das intenções de voto - uma queda de metade em relação ao final de 2019.

Força Itália, de Silvio Berlusconi

A completar a tríade de ataque está o Força Itália, do antigo primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O partido de direita liberal, refundado em 2013, será aquele que mais se afasta dos ideais populistas e de extrema-direita, defendendo um compromisso com os valores da União Europeia e da NATO

O Força Itália acaba por ser aquele que amealha menos intenções de voto, com apenas 7%. Aos 85 anos, o antigo primeiro-ministro Berlusconi 'acusa' o Irmãos de Itália de lhe ter roubado eleitorado.


E do outro lado da barricada?

Movimento 5 Estrelas, de Giuseppe Conte

De fora da centrodestra ficou o Movimento 5 Estrelas, encabeçado por Giuseppe Conte. O partido populista, apesar de oficialmente não admitir um posicionamento esquerda-direita, é muitas das vezes associado à direita nacionalista, dadas as suas posições eurocéticas e anti-imigração.

Tal como o Liga, o M5S foi também um dos penalizados pela opinião pública italiana, aquando da queda do Governo de Draghi. Contudo, e curiosamente, o partido tem reconquistado as preferências dos eleitores desde a dissolução do Parlamento, contando agora com 13% das intenções de voto.

Partido Democrático, de Enrico Letta

Por último, e talvez o único rival capaz de fazer frente a Giorgia Meloni, o Partido Democrático quer evitar que a Itália sucumba à extrema-direita.

Liderado por Enrico Letta, também ex-primeiro-ministro italiano, o partido social-democrata e de centro-esquerda receia que as relações do país mediterrânico com a Europa e os aliados do Ocidente seja afetada pelo aparente rumo de extrema-direita que está a tomar.

Ainda entre os meses de julho e agosto, o Partido Democrático tentou formar uma aliança com parceiros ao centro e à esquerda, mas esta viria a colapsar apenas uma semana depois, deixando as hipóteses de futuras coligações em dúvida.

Nas últimas sondagens, segue imediatamente atrás do Irmãos de Itália, com 22%.

"Deus, Pátria e Família", soa-lhe familiar?

Olhar para as propostas do Irmãos de Itália e dos aliados do centrodestra é uma tarefa difícil, dada a postura camaleónica de Giorgia Meloni. Sob o mote "Itália Primeiro", a líder do Fratelli d'Italia não consegue esconder o programa típico da extrema-direita europeia, com um ideário xenófobo e eurocético.

Aliás, as raízes do partido confundem-se com o passado de Giorgia Meloni no Movimento Social Italiano. A candidata chegou a integrar, aos 15 anos, a juventude deste movimento neofascista, fundado imediatamente após a Segunda Guerra Mundial por seguidores do ditador Benito Mussolini.

É também por força deste passado que o Irmãos de Itália é apelidado de partido "neofascista" ou "protofascista". Meloni diz que "já se livrou dos elementos fascistas", afirmando este verão que "há décadas que o fascismo já é história".

Para não espantar e assustar o eleitorado do centro, a líder de 45 anos terá dado indicações ao partido para que os membros evitassem declarações mais extremas, menções à ideologia fascista ou fazerem em público a “saudação romana”, gesto esse semelhante à saudação nazi.

No entanto, os valores promovidos acabam por não esconder a natureza do partido, como o combate à imigração, a rejeição do casamento homossexual. defesa dos "valores da famílias", assim como a defesa do enfraquecimento da autoridade europeia sobre a soberania nacional de Itália. "A Europa faz menos, mas faz melhor", defende o partido.

Remontando até a declarações da deputada num congresso em 2019, Giorgia Meloni chega mesmo a proferir um conhecido slogan da ditadura do Estado Novo, em Portugal, ao afirmar os pilares do partido: "Deus, Pátria e Família". Outro "mantra" da candidata é: "sou mulher, mãe, cristã e italiana".

Entre os seus principais apoiantes estão, por exemplo, negacionistas da Covid-19 e eurocéticos, especialmente motivados pela crise humanitária dos migrantes do Mediterrâneo. A opção de o Irmãos de Itália ter ficado de fora da solução governativa de Draghi deverá garantir mais votos "anti-sistema".

Um 'camaleão político'

O Irmãos de Itália pertence, inclusivamente, ao grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus, que, apesar do nome mais amigável, é formado por partidos de direita populista e radical do continente, como o polaco Paz e Justiça (PiS).

Além disso, também é público o apoio de Giorgia Meloni e do seu partido ao Governo de Viktor Órban, primeiro-ministro da "democracia iliberal" da Hungria, nas palavras do próprio chefe do executivo.

Meloni, assim como os aliados do Liga, criticam fortemente a União Europeia, acusando os burocratas de Bruxelas de serem "elites niilistas guiadas pelos interesses financeiros internacionais".

Ainda assim, a candidata aparenta ter adotado uma postura mais moderada e convergente nos últimos tempos.

A líder do Irmãos de Itália compromete-se em respeitar o rumo europeu e transatlântico reforçado por Mario Draghi, especialmente no posicionamento pró-Ucrânia e na defesa das sanções económicas à Rússia. Matéria na qual a Liga, um dos aliados, se mostra mais ambígua.

Em Bruxelas, quando foi presidente do partido Conservadores e Reformistas Europeus, Meloni tornou-se o rosto da extrema-direita europeia no exterior, ganhando legitimidade ao envolver-se com instituições da UE, em vez de rejeitar a integração europeia.

De acordo com Nathalie Tocci, em declarações ao jornal "Financial Times", Giorgia Meloni é uma "eurocética de alma e coração". "Mas o contexto não dá muita margem para experiências, a não ser que queria levar o país à falência", acrescenta a diretora do Instituto Italiano de Relações Internacionais.

Por outro lado, a candidata também promete respeitar as diretrizes fiscais deixadas pelo Governo de Draghi, tentando demonstrar uma liderança responsável da economia.

"Querem ser percecionados como um partido com o qual podes negociar e governar um país", aponta Lorenzo Codogno, antigo diretor-geral do Tesouro Italiano, em declarações ao "Financial Times".

Por estas razões, assim como pela liderança na corrida ao executivo, Meloni e o seu partido serão os expectáveis líderes da coligação centrodestra.

Que outras medidas defende a 'centrodestra'?

Face à crise social, económica e energética motivada pela Guerra na Ucrânia, a coligação encabeçada por Giorgia Meloni propõe a redução da carga fiscal nos bens essenciais e na energia.

Neste sentido, a coligação quer renegociar o plano de recuperação da Covid-19 da União Europeia, que foi fixado em quase 200 mil milhões de euros, tendo em conta o escalar do preço dos combustíveis.

A centrodestra também defende o corte de impostos nos salários e mostra o desejo de extinguir o "salário do cidadão", subsídio à pobreza implementado pelo governo italiano em 2019. Contudo, defende a canalização de verbas para subsídios e pensões.

Por outro lado, a proposta de Governo passa ainda pelas intenções de reforma do pacto de estabilidade europeu e pela introdução de um sistema de eleição direta do Presidente italiano.

"Será um desastre se a Itália escolher a segunda divisão"

Enrico Letta diz que os italianos enfrentam apenas duas alternativas nas eleições de domingo: "Ou ganha a Europa comunitária, do [programa] Next Generation EU, do Erasmus e da esperança, ou ganha a Europa [do Presidente húngaro, Viktor] Órban, do [partido espanhol] Vox e da [líder da extrema-direita francesa] Marine Le Pen".

"A primeira divisão significa Bruxelas, Alemanha, França, Espanha, os grandes países europeus, os fundadores, como nós. A segunda opção é sermos relegados para a segunda divisão, com a Polónia e a Hungria, opondo-nos a Bruxelas", salientou o candidato do Partido Democrático, num fórum económico este mês.

Apesar da coligação falhada inicialmente, o Partido Democrático irá mesmo concorrer em conjunto com múltiplos partidos de centro e de esquerda, de menor dimensão: o Mais Europa (ME), a Aliança Verde (AV), a Sinistra Italiana (SI) e o Compromisso Cívico (CC).

"A Europa sairá do centro da Europa", receia Enrico Letta.

As propostas do Partido Democrático passam pela aposta nas energias renováveis e no fornecimento de eletricidade gratuita - ou pelo menos a baixos custos - proveniente destas fontas às famílias com maiores dificuldades.

O partido também planeia um corte nos impostos sobre os salários das classes média e baixa e introduzir o salário mínimo de 9 euros à hora. Também promete facilitar a obtenção de cidadania italiana aos filhos de pais imigrantes.

Entre outras medidas, o Partido Democrático também deverá agravar as penas por violência ou discriminação anti-LGBT, legalizar a canábis e reduzir a idade de voto, dos 18 para os 16 anos.

Desta vez, o Movimento 5 Estrelas está a correr por fora

Sem grandes hipóteses de formar Governo, e intenções de se aliar à centrodestra, o partido liderado por Giuseppe Conte corre sozinho às eleições gerais de Itália.

A saída de muitos dos seus membros para o Compromisso Cívico também enfraqueceu a pujança de um partido que chegou a ser parte fulcral do executivo de Draghi.

Numa posição mais modesta desta vez, o M5S mantém-se firme nas suas convicções, propondo a criação de um fundo de recuperação energética europeu e a revisão do pacto de estabilidade da UE.

Por outro lado, também defende a redução dos impostos nos salários dos trabalhadores, apresentando medidas muito similares às do PD em questões sociais.

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