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Obituário

José Eduardo dos Santos, o homem recatado que se tornou Presidente absoluto de Angola

08 jul, 2022 - 12:50 • Cristina Nascimento , Joana Azevedo Viana

Esteve exilado, estudou na União Soviética e assumiu o poder numa Angola já independente, mas em guerra. A sua presidência foi marcada pelo extremo enriquecimento da família num país ainda muito marcado pela pobreza. Morreu esta sexta-feira, aos 79 anos.

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Morreu ​José Eduardo dos Santos, antigo presidente de Angola
Morreu ​José Eduardo dos Santos, antigo presidente de Angola

José Eduardo dos Santos não foi o primeiro Presidente de Angola pós-independência, mas foi decerto o mais marcante, até porque ocupou o cargo durante 38 anos. Apenas um outro Presidente no mundo esteve mais tempo no poder – Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, da Guiné Equatorial.

Nascido a 28 de agosto de 1942, filho de um calceteiro, José Eduardo estudou em Luanda, capital da então província ultramarina portuguesa, cumprindo o ensino secundário no Liceu Salvador Correia. Ainda estudante, em 1958, aderiu ao Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), que tinha sido fundado dois anos antes.

Iniciada a luta armada pela independência de Angola, em 1961, exila-se na República do Congo, onde funda e passa a coordenar, na segurança do exílio, a juventude do MPLA.

Dois anos mais tarde, ganha uma bolsa de estudos e vai para Baku, atual capital do Azerbaijão, na altura território pertencente à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde se licencia em Engenharia de Petróleos – e onde acaba por conhecer a primeira mulher, mãe de Isabel dos Santos.

Tira um curso militar de Telecomunicações e regressa a Angola em 1970. Assume funções nos Serviços de Telecomunicações do MPLA, em Cabinda, e um papel relevante na luta pela independência do país em relação a Portugal.

“O bom déspota”

Uma vez alcançada a independência, em 1975, na sequência da guerra colonial e do 25 de Abril que derrubou a ditadura em Portugal, José Eduardo dos Santos ocupa o cargo de ministro das Relações Exteriores até à morte do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, em 1979. É então nomeado líder do MPLA e, por conseguinte, Presidente do país.

Fica no poder quase 40 anos, mas o seu nome figurou apenas uma vez num boletim de voto: nas eleições presidenciais de 1992, num interregno da guerra civil, depois dos acordos de Bicesse.

Diz-se nos círculos políticos que foi a sua personalidade recatada que lhe granjeou a presidência. “Era demasiado enigmático, pouco se lhe ouvia falar”, escreveu há alguns anos Justino Pinto de Andrade, atual dirigente do Bloco Democrático. “Todos pensaram que facilmente o poderiam influenciar. Os outros potenciais candidatos à sucessão de Agostinho Neto possuíam perfis polémicos, ou eram demasiado previsíveis.” Mas não José Eduardo.

Esses traços de personalidade serviram, aliás, de inspiração a outro José Eduardo: o Agualusa, escritor maior da modernidade angolana, que em 2014 publicou na revista portuguesa “Granta” o conto “O Bom Déspota”, explorando notas fortes do longo poderio do Presidente angolano – o nepotismo, o controlo do povo pela pobreza e pela ignorância e a perpetuação no poder.

“Durante os primeiros anos, fingi-me de morto. Deixei que me vissem como um fiel herdeiro do falecido Presidente e, ao mesmo tempo, fui libertando sem alarde os fraccionistas que haviam sobrevivido aos fuzilamentos e aos campos de concentração. Nomeei alguns para importantes cargos governamentais. Nunca mais criaram problemas.”

Presidência em tempo de guerra civil

Grande parte da presidência de José Eduardo dos Santos é marcada pela guerra civil em que o país esteve mergulhado durante 27 anos. A UNITA, União Nacional para a Independência Total de Angola, liderada por Jonas Savimbi, contesta a legitimidade do MPLA para governar o país e o conflito arrasta-se por quase três décadas. Cerca de 500 mil pessoas terão morrido.

Em 1992, um acordo para a realização de eleições entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi parece marcar o início do fim da guerra civil angolana. José Eduardo dos Santos recolhe quase 50% dos votos e Savimbi 40%. As regras ditavam que os candidatos deveriam ir a uma segunda volta, mas a UNITA não reconhece os resultados eleitorais e as duas partes voltam a entrar em conflito armado – um que só terminaria com a morte de Savimbi dez anos mais tarde, em 2002.

Os angolanos acabariam por só voltar às urnas em 2008, para umas legislativas às quais deveriam seguir-se eleições presidenciais. Mas em vez de realizá-las, José Eduardo dos Santos altera a Constituição, por ele próprio promulgada em 2010, que determina que o Presidente do país passa a ser o líder do partido mais votado. Em 2012, quando o MPLA conquista 71% dos votos em novas legislativas (muito contestadas pela oposição), o líder firma o seu poderio por mais cinco anos, com a possibilidade de prolongar a presidência findo esse período.

A pobreza de Angola, a riqueza da família Dos Santos

Em 2001, José Eduardo dos Santos começou a dizer que seria a última vez que se recandidataria, mas o fim da sua presidência só viria a acontecer em 2017.

Durante os 38 anos de presidência e depois de alcançado o acordo de paz com a UNITA, o seu mandato fica marcado pelo distanciamento do marxismo e pela aproximação do país a uma economia liberal, tornando Angola a terceira maior economia da África subsariana e o segundo maior produtor de petróleo africano.

De volta ao conto de José Eduardo Agualusa e ao relato do “bom déspota” na primeira pessoa: “A queda do Muro de Berlim [em 1989] aconteceu no momento certo. Por um lado, permitiu-me afastar um ou outro marxista fanático, trôpegas múmias ideológicas, perdidas no tempo, que não se deixavam comprar, nem com cargos nem com bens de consumo. Por outro, permitiu-me abrir o país às delícias do capitalismo, para benefício de toda a nossa grande família e do país em geral. A abertura ao capitalismo foi também a grande machadada na guerrilha, até essa altura apoiada pelos Estados Unidos e pela direita internacional. Se nós nos juntávamos ao capitalismo, porque haveria o capitalismo de nos combater?”

Quando José Eduardo dos Santos abandona a presidência, Angola é uma das maiores potências económicas do continente africano. Mas o crescimento económico do país é o calcanhar de Aquiles do Presidente, dado que só uma pequena parte da população angolana beneficia desse desenvolvimento, em particular a sua própria família.

O regime de Eduardo dos Santos é associado a elevada corrupção e a uma desigualdade estrondosa na distribuição da riqueza. Aos dias de hoje, segundo dados internacionais, entre 60 a 70% da população angolana sobrevive com apenas dois dólares, menos de dois euros, por dia. Já a família de José Eduardo dos Santos é detentora de uma vasta fortuna na ordem dos milhares de milhões de dólares, entre património imobiliário, participação em grandes empresas, "holdings" em paraísos fiscais e contas bancárias na Suíça.

“Luanda Leaks”

“Para cumprir os seus novos desígnios, José Eduardo dos Santos passou a conduzir o governo como se fosse a sua empresa de investimentos privados”, ressaltava a revista norte-americana “Forbes há dez anos sobre os “ovos podres que resistem” em África e que mancham os exemplos de boa governação no continente.

“Apesar dos recursos e da riqueza [do país], a vasta maioria dos angolanos ainda vive sob as mais horríveis condições socioeconómicas. […] Mas José Eduardo dos Santos segue sem ser afetado. Em vez de transformar o boom económico de Angola num alívio social para o seu povo, canalizou as suas energias para intimidar os media locais e desviar fundos estatais para as suas contas pessoais e da sua família.”

Aqui destaca-se a mais velha dos seus dez filhos, a empresária Isabel dos Santos, a quem José Eduardo entregou, em 2016, os destinos da petrolífera estatal Sonangol – um cargo do qual seria exonerada em 2017 pelo atual Presidente angolano, João Lourenço – e que se tornou numa das mais ricas e poderosas mulheres do país e na primeira bilionária africana.

“A sua história fornece uma rara janela para a mesma trágica narrativa cleptocrática que domina países ricos em recursos um pouco por todo o mundo”, referia a revista “Forbes” num outro artigo dedicado à “menina do papá”, no ano em que Isabel dos Santos ascendeu à categoria de bilionária. “Para o Presidente Dos Santos, [a transferência de poder e dinheiro para a filha] é uma forma infalível de extrair dinheiro do seu país, mantendo-se putativamente à distância. Se o Presidente for deposto, pode recuperar os bens através da filha. Se morrer no poder, é ela quem mantém o saque na família.”

“Não é possível justificar esta riqueza desavergonhadamente exposta”, denuncia no mesmo artigo Marcolino Moco, antigo primeiro-ministro de Angola. “Não há dúvida alguma de que foi o pai [de Isabel dos Santos] que gerou tamanha fortuna.”

Desde que João Lourenço assumiu o poder, em setembro de 2017, foram alvo da Justiça angolana alguns dos mais próximos colaboradores e familiares de José Eduardo dos Santos, incluindo os filhos Isabel e José Filomeno dos Santos – ou Zenu, que o pai pôs à frente do Fundo Soberano de Angola e dos seus 5 mil milhões de dólares (e que viria a ser condenado a cinco anos de prisão por burla e fraude).

Três anos depois, em 2020, estala o “Luanda Leaks”, que põe a descoberto a magnitude dos negócios ilícitos de Isabel dos Santos com a ajuda preciosa do pai. Ao todo, o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação identificou 400 empresas às quais a filha do antigo Presidente esteve ligada nos últimos 30 anos, entre elas 155 portuguesas e 99 angolanas, bem como esquemas de desvio de fundos, incluindo de 115 milhões de dólares desviados da Sonangol para uma conta sua no Dubai.

Numa entrevista ao "Wall Street Journal", em outubro desse ano, João Lourenço fez as contas (provisórias) à delapidação do erário público angolano nos últimos anos de José Eduardo dos Santos no poder: pelo menos 24 mil milhões de dólares (20,2 mil milhões de euros).

José Eduardo dos Santos deixa a presidência do MPLA e de Angola em 2017, anos depois de ter sido diagnosticado com um cancro na próstata. A doença motivou mais e mais deslocações a Barcelona, para ser acompanhado numa clínica médica privada. Durante dois anos, entre 2019 e 2021, terá vivido a tempo inteiro na cidade espanhola, numa casa avaliada em seis milhões de euros que anteriormente pertenceu a Jordi Puyol Ferrosola, filho mais velho do antigo presidente do governo regional da Catalunha, que foi detido em 2017 por suspeitas de ter desviado mais de 30 milhões de euros.

Foi nesta residência que José Eduardo dos Santos sofreu uma queda que obrigou ao seu internamento na unidade de cuidados intensivos da clínica espanhola onde era acompanhado. Morreu esta sexta-feira, naquela cidade espanhola, aos 79 anos, depois de alguns dias de debate familiar sobre se "Zedu" devia continuar ligado às máquinas.

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  • Bruno
    08 jul, 2022 Aqui 12:27
    De pouco lhe serviu roubar as riquezas de Angola para proveito próprio. No fim, morre como todas as pessoas que ele explorou.

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