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Victor Pereira, historiador franco-português

"Negociar não é a principal qualidade de Macron"

20 jun, 2022 - 17:44 • Stefanie Palma, em Paris

O futuro político de França é incerto. "Criou-se uma certa desconfiança à volta de Macron", lembra, em entrevista à Renascença, o historiador franco-português Victor Pereira.

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"Incógnita" é o termo mais utilizado pelo historiador franco-português Victor Pereira quando questionado sobre o futuro imediao de França, após a perda de maioria parlamentar do partido do Presidente Emmanuele Macron.

Este doutorado em História Contemporânea pelo Institut d’Études Politiques de Paris e investigador do Instituto de História Contemporânea da FSCH da Universidade Nova lembra, em entrevista à Renascença, que Macron exerceu sempre uma "presidência jupteriana" por ter maioria, sendo agora o quadro parlamentar muito diferente e repleto de aspetos novos, como é o caso da dimensão da extrema-direira.

As eleições legislativas deste domingo foram pautadas por muitas surpresas, Macron perdeu a maioria absoluta, a coligação NUPES tornou-se a principal força da oposição e a extrema direita atingiu um resultado histórico. Qual é a leitura que faz destes resultados?

De facto, esse resultado não era esperado. Esperava-se que Emmanuel Macron não conseguisse uma maioria absoluta, mas nunca que estivesse tão longe dessa maioria absoluta. Também ninguém estava à espera do resultado da extrema direita, que nunca na história da V República tinha conseguido um tão grande número de deputados.

Tudo isto gera uma grande incógnita sobre vai ser possível governar sem maioria absoluta e com uma extrema direita tão importante do Parlamento.

Apesar de a NUPES se constituir como principal força da oposição, considera que foi uma aposta falhada por parte de Jean-Luc Mélenchon, que já se via, de certa forma, como o primeiro-ministro francês?

Por um lado, é uma aposta falhada porque, como diz, a campanha decorreu à volta da ideia que iria ser primeiro-ministro e não conseguiu. No entanto, um dos lemas da campanha era que Macron não pudesse governar nem pôr em prática algumas propostas que tinha feito, nomeadamente a reforma aos 65 anos, e, nesse sentido, ele conseguiu. Etambém conseguiu que fazer a campanha sair da apatia na qual o Macron a tinha colocado. Parece que uma maioria dos franceses não quer algumas das reformas propostas pelo Ensemble!

Agora que falou nessa questão, a NUPES poderá ser, de alguma forma, um entrave real? Que tipo de oposição se pode esperar da coligação de esquerda NUPES, liderada por Mélenchon, e também por parte da União Nacional de Marine Le Pen?

É uma incógnita. Na última legislatura, a maioria tinha uma maioria muito importante e não precisava de negociar com qualquer partido. Qualquer proposta de lei tinha a maioria sem nenhum problema, era tudo feito de cima para baixo e os próprios deputados da oposição queixavam-se de que a maioria não queria ouvir as suas propostas ou as suas emendas.

Agora, o governo vai ter muitos mais limites e terá de ser menos arrogante, que era uma queixa frequente. Terá de tentar arranjar maioria caso a caso. É preciso ver como se vai comportar a coligação de esquerda porque, por exemplo, os Verdes, o Partido Socialista ou o Partido Comunista podem aceitar votar algumas leis, enquanto que o partido de Mélenchon pode não o fazer.

Também é um incógnita o comportamento que a extrema direita vai assumir. A extrema direita não tem quase nenhuma tradição parlamentar. Nos últimos anos, teve muito poucos deputados, não podiam ter muita influência. Agora, têm muitos candidatos que são deputados totalmente inexperientes. E é uma área política que não gosta muito do Parlamento, gosta mais do executivo forte. Vamos ver se eles vão sempre recusar votar a qualquer lei.

Vão fazer uma oposição bastante veemente, olhando o Parlamento com uma voz de "ressonância do povo", como eles dizem, achando que são o povo. Parece-me improvável que estejam dispostos a negociar.

A União Nacional conseguiu um resultado histórico, com 89 lugares, número que contrasta com os oito assentos que tinham. Le Pen já assumiu que vai deixar a liderança do partido para se dedicar a este grupo parlamentar que nos próximos cinco anos vai passar a ter ainda mais tempo de antena. Há um claro ganhar no terreno da extrema direita? Há uma normalização da extrema direita e que em França?

É uma vitória para eles, com um número de deputados que ninguém imaginava até ontem à noite. Claro que a União Nacional vai tentar fazer valer este peso, desde logo para se financiar. É um partido com dívidas, pediu empréstimos à banca, recursos para se financiar, o que gerou polémica.

E com este grupo de 89 deputados vai também tentar impor mais ainda as suas ideias e soluções e tentar fazer uma alavanca para, em 2027, Marine Le Pen poder ganhar, tanto mais que Emmanuel Macron não se poderá candidatar e não se vê assim um "delfim" natural.

Macron é o primeiro presidente da V República a não conseguir uma maioria absoluta para governar. Para poder fazê-lo com tranquilidade e poder levar a cabo o seu programa, precisa de alianças. Os Republicanos, de direita, que alcançaram 61 deputados, afiguravam-se como uma hipótese plausível de coligação, mas o presidente do partido, Christian Jacob, promete continuar a ser uma força da oposição. Quem é que pode vir a aliar se a Emmanuel Macron?

De facto, não é a primeira vez que um Presidente na V República não tem a maioria. Já aconteceu em 88, quando a François Mitterrand faltava uma dezena de deputados para poder ter uma maioria.

Obviamente, o centro do campo político francês vai virar mais à direita. Emmanuel Macron vai tentar compor com alguns deputados do Partido Republicano. Apesar de estes não quererem um acordo, poderão votar algumas coisas. Há deputados que defendem isso.

O que será muito complicado para Macron é fazer aquilo que fez nos últimos anos, indo buscar pessoas à esquerda e à direita para o seu governo ou para a bancada parlamentar. O que Macron poderá vi a dizer é que a oposição não aceita negociar e, daqui a alguns meses, dissolver a Assembleia e pedir ao país de votar outra vez.

Porque há mesmo uma cisão dentro do Partido Republicano, já que há quem apoie Emmanuel Macron e gostasse de se aliar...

Sim. Vários ministros de Macron vieram dos Republicanos, alguns dos ministros mais políticos, mais populares, até, em certa medida. Muitos acham que a política a fazer é a mesma dos últimos anos.

Como acha que se sairá Macron no papel de negociador, uma vez que é a primeira vez que está neste papel?

Digamos que negociar não é a principal qualidade de Macron. Viu-se durante a crise do covid: o Presidente assumiu-se como a pessoa que, em última instância, decide, mesmo quando opiniões científicas o desaconselhavam.

A sua imagem no primeiro mandato foi a de um Presidente pouco dado ao compromisso, ao compromisso com a oposição, mas também com os sindicatos ou outros agentes. Ele não tem a pretensão de ser uma pessoa que gosta e vai negociar, e não é provável que mude. Podemos também pensar que muitas pessoas da oposição vão lembrar-se disso e talvez não queiram negociar com ele.

Se Macron se passar a focar nas questões muito internas - certamente o fará nos próximos meses -, como ficará a liderança da União Europeia?

É provável que a sua posição no conjunto da União Europeia possa ter-se enfraquecido. Ele pensava que depois da saída de Angela Merkel e depois do Brexit, a França pudesse ter um papel mais importante na União Europeia e o facto de ter não ter vencido no seu próprio país não o ajuda.

Mas uma das suas possibilidades para tentar ganhar peso interno poderá ser desenvolver uma política externa ainda mais dinâmica e isso viu-se no que tentou pôr em prática na questão da Ucrânia ou na reforma da União Europeia. E como vai ter que sair daqui cinco anos, talvez invista ainda mais na sua posição internacional, aspeto em que está, agora, bastante enfraquecido.

Porque acha que os franceses fizeram "marcha atrás" no voto de confiança que deram a Macron nas presidenciais?

Não se pode dizer que o Macron foi eleito com o apoio entusiasta da população.

Em parte, não houve campanha, por causa da guerra na Ucrânia e da presidência da União Europeia. Ele investiu pouco na campanha e não quis fazer um debate antes da primeira volta. Pensou que o facto de ser Presidente lhe dava um certo estatuto e ganharia. Depois, defrontou Marine Le Pen e ainda há uma maioria de franceses que não quer Le Pen na Presidência e alguém as eleições.

Ele pensava que isso era suficiente, por isso não fez campanha eleitoral, e os franceses, alguns deles consideraram isso uma certa forma de arrogância. Por outro lado, o programa dele era pouco claro, não se sabe muito bem o que quer fazer e essa foi uma tecla que Mélenchon e muitos à esquerda usaram: a de que Macron tem uma agenda escondida, secreta, para fazer mais reformas impopulares, sobre as quais não falava por temer os resultados.

Criou-se uma certa desconfiança à volta de Macron, um homem que fez uma Presidência "jupiteriana" como se diz aqui, com muito pouco compromisso, com pouco respeito por agentes políticos e sociais.

A imprensa francesa utiliza palavras duras para classificar os resultados desta eleição. O jornal "Libération" fala mesmo numa "chapada" dada pelos eleitores franceses a Macron. O "Le Parisien" fala numa situação ingovernável. França passa a estar numa situação ingovernável?

Os próximos dias vão mostrar como será. Uma das perguntas que se coloca já é se a primeira-ministra continua. É uma pessoa com pouco carisma, no sentido de que não empolga, é um elo fraco.

Ela foi apresentada como uma pessoa de esquerda, mas agora está à direita. Será que é uma boa primeira-minsitra? Será que é uma boa primeira-ministra para liderar o governo numa assembleia em que vai ouvir vozes críticas e talvez muito mordazes, tanto da extrema direita como a esquerda?

Não é impossível que Macron mude de primeiro-ministro, talvez para um primeiro-ministro com mais experiência política, que possa dar-se melhor à direita. Mas se essa solução falha, a França será ingovernável. E também temos de colocar a hipótese de Macron deixar a França ser ingovernável para justificar, dentro de alguns meses, uma dissolução da Assembleia para pedir, então, uma maioria. Se assim for, os eleitores vão dar-lhe uma maioria? É uma incógnita.

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