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A Renascença na Ucrânia

"Esta guerra vai durar mais um ano. É preciso limpar a nossa terra de russos"

23 abr, 2022 - 09:06 • José Pedro Frazão

Em entrevista à Renascença, o presidente da Câmara de Nikolaev utiliza palavras duras para definir a forma como os ucranianos devem conduzir a guerra. Primeiro, combate-se e depois conversa-se, defende Oleksandr Syenkevych, que lidera uma cidade que voltou a ser alvo diário de artilharia russa. O autarca de uma cidade sem água nas torneiras explica porque há tantas barricadas e trincheiras cavadas nas avenidas, acusando os russos de usarem bombas proibidas contra alvos civis na cidade.

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Está à espera da intensificação da ofensiva sobre a cidade?

Desde quinta-feira que esperamos que as coisas fiquem cada vez piores. Estamos a preparar-nos para diferentes cenários. Como pode ver, aqui na cidade já temos vários tipos de fortificações como trincheiras, posições onde as pessoas se podem esconder, por exemplo atrás de blocos de cimento. Portanto, esperamos que os russos venham e até para lutas rua-a-rua. Esperamo-los amanhã, hoje mesmo. Todos os dias estamos cada vez mais preparados para os vários cenários

Quem vai realmente defender a cidade?

Todos aqueles que puderem usar uma arma. Em primeiro lugar temos o Exército, depois a Guarda Nacional e numa terceira linha contamos com as tropas de defesa territorial, compostas por diferentes pessoas que se dizem prontas para usar uma arma. São pessoas sem experiência militar que nós treinámos agora e colocámos em diferentes divisões como as defesas antitanque e outro tipo de tropas.

Qual tem sido o impacto dos constantes ataques russos durante a noite?
Eles destroem parcialmente as nossas infraestruturas e as nossas casas, mas felizmente sem muitas vítimas. Eles usam bombas de fragmentação que são proibidas e cujo principal alvo são as forças humanas. Se as pessoas se esconderem dentro dos edifícios, pelo menos entre duas paredes, serão capazes de salvar as suas vidas. Temos prédios parcialmente arruinados e cerca de 16 edifícios foram completamente destruídos. No total 87 pessoas morreram durante os bombardeamentos e cerca de 400 pessoas ficaram feridas.

Está a falar-me de alvos civis, mas os russos também atingiram objetivos militares.

No início da guerra, atingiram quartéis entre outros alvos militares. Mas desde então apenas bombardearam zonas civis como as áreas rurais ou lugares onde as pessoas estão a dormir. Nem sequer estamos a falar de zonas industriais como padarias ou outras fábricas, mas apenas de supermercados, por exemplo.

Quantas pessoas deixaram a cidade durante esta invasão?

Não temos um número exato. Proporcionámos às pessoas a possibilidade de saírem da cidade nos nossos autocarros de transporte público para Odessa e para a Moldávia. Por enquanto, estimamos que tenham saído 40% das pessoas, pelo que contabilizamos por estimativas associadas à recolha do lixo ou uso de água. Nikolaev é uma cidade de meio milhão de habitantes. Digamos que talvez tenham saído entre 200 mil a 250 mil pessoas.

Em termos de defesa militar, considera que o destino de Nikolaev nesta guerra está de certa forma ligado ao desfecho na cidade de Kherson, que está a 100 kms daqui e está já tomada pelos russos?

Kherson está ocupada e com certeza que o nosso futuro está com certeza ligado a essa cidade. Nós empurrámo-los de volta para Kherson. Hoje em dia, o nosso principal objetivo é proteger a cidade e seguir em frente. Há um mês eles cercaram a cidade em dois terços, depois nós repelimos esse avanço e eles foram embora para a região de Kherson.

"Acho que já pagámos demasiado com vidas humanas nesta guerra e precisamos de limpar a nossa terra de tropas russas"

Admite qualquer tipo de concessão aos russos, como zonas territoriais, para obter a paz?

Se olharmos para a Ucrânia como um todo, aquelas pessoas que estão perto da zona de guerra dirão que precisamos de ter um acordo completo. Se falar com os que vivem na parte ocidental da Ucrânia, eles defendem que não deve haver acordo e apenas combates.

E o que pensa sobre isso?

Nós estamos na linha de frente, mas acho que já pagámos demasiado com vidas humanas nesta guerra e precisamos de limpar a nossa terra de tropas russas. Depois disso poderemos ter alguma conversa. A Crimeia é uma questão diferente. Eles têm que sair do nosso país ou pelo menos regressar às posições de 24 de fevereiro. Mas não acredito que esta guerra acabe tão depressa. Deve durar pelo menos mais um ano.

Que tipos de contatos internacionais tem feito a propósito da situação em Nikolaev?

Cada dia é um dia diferente com desafios diferentes. Agora temos desafios como o da água. Estamos a fazemos fortificações e as nossas empresas municipais estão a aprender técnicas para usar máquinas pesadas deixadas pelos russos. Recuperámos 38 itens como canhões, tanques e máquinas blindadas, que nós reparamos. Estamos a cavar trincheiras. Estamos a construir uma divisão do Exército.

O que aconteceu ao certo com o sistema de água aqui?

As condutas entre Nikolaev e Kherson foram destruídas por um foguete e deixaram lá um buraco lá. A água não consegue chegar a Nikolaev e nós não podemos chegar lá para reparar a conduta porque está no campo de batalha. Estamos a distribuir água em camiões-cisterna. Em segundo lugar estamos a perfurar vários furos em diferentes instituições de forma a obter água subterrânea. Esperávamos que isto acontecesse e por isso começámos a escavar já há alguns meses. Por isso quase todos os hospitais e instituições sociais já têm água.


"Nós somos pessoas da civilização ocidental e eles são bárbaros. Por isso, precisamos de mais apoio dos países europeus"

O primeiro-ministro da Dinamarca diz que quer ajudar a reconstruir sua cidade. O que é que tem aqui para ser reconstruído?

Acho que temos que descobrir como podemos obter a quantidade de água de que precisamos. Então, a primeira ajuda da Dinamarca pode ser fornecer água às pessoas de Nikolaev. Não penso que vamos precisar de ajuda para reconstruir alguns edifícios que foram arruinados por bombas russas. Precisamos sobretudo de infraestruturação e de tecnologias que nos permitam fazer isso de forma mais rápida e eficiente.

Tem uma ideia de quando isto vai começar?
Precisamos para já de vencer esta guerra. Depois da vitória, vamos com certeza pensar em como recuperar e reconstruir tudo.

As pessoas que estão a entrar na cidade vêm sobretudo de Kherson?

Sim, eles entram na cidade, podem ficar aqui por algum tempo a viver e a maioria deles avança para Odessa e para o oeste. No entanto, temos cerca de 300 pessoas que ainda vivem em Nikolaev com a esperança de voltarem para suas aldeias num futuro próximo. Todos os dias entram cerca de 150 pessoas dessas zonas e saem entre 250 a 500 pessoas de Nikolaev todos os dias, incluindo residentes.

Já há pessoas a voltar para Nikolaev?
Pedi às pessoas para não voltarem porque não é seguro estar aqui com estes bombardeamentos todos os dias. Podem ficar feridos e pode matá-los.

O Presidente Zelenskiy dirigiu-se esta semana ao Parlamento português. O que diria aos portugueses a partir de Nikolaev?

Acho que as pessoas em Portugal não devem pensar muito sobre esta guerra, a Rússia ou a Ucrânia. Com os nossos problemas do dia-a-dia não pensamos muito em situações que se passam longe de nós. Posso apenas dizer que esta não é uma guerra apenas entre a Rússia e a Ucrânia. Esta é uma guerra entre a civilização ocidental, aquela que procura a cura do cancro ou os caminhos para conhecer e explorar o espaço, e um outro país de uma civilização que se orgulha do seu passado histórico e heroico que quer trazer de volta. Por isso, precisamos de mais apoio dos países europeus, mais armas, caso contrário vamos pará-los nós mesmos.

Porque defende que a Europa é o lugar da Ucrânia?

Nesta guerra os ucranianos mostraram que nós somos um povo europeu. Há uma grande diferença entre ucranianos e russos. Nós somos pessoas da civilização ocidental e eles são bárbaros.


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